O referendo no Equador

Imagem: Diego Alexander (Quito, Pichincha, Equador)
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Por FRANCISCO HIDALGO FLOR*

Quando o governo conservador de Daniel Noboa convocou o referendo e o processo de consulta popular no início de fevereiro, seu objetivo era ganhar tudo

Este artigo analisa os resultados do processo eleitoral do Referendo realizado em 21 de abril no Equador. Argumenta que esta avaliação deve ser inserida no contexto das estratégias políticas do governo de Daniel Noboa, lidas como um aumento da ofensiva de direita que ocorre no país desde 2017, e que tem especificidades neste período presidencial. No entanto, destaca positivamente os resultados em duas perguntas do Referendo, em que o pronunciamento popular rejeitou propostas claramente neoliberais. Considera este resultado como um revés para a referida ofensiva.

Convocatória do referendo e consulta popular 2024

A convocação do Referendo e da Consulta Popular foi feita pelo próprio Daniel Noboa, num esforço para consolidar seu “capital político” e reforçar suas perspectivas de reeleição para as próximas eleições de 2025. Para o Referendo, propôs cinco perguntas, ou seja, que envolvem a reforma da Constituição, e seis perguntas para a Consulta Popular, que envolvem reformas de leis ou códigos legais.

Em seu conjunto, as onze perguntas submetidas ao voto popular correspondiam a dois temas e a uma estratégia política: para o primeiro tema, que se refere à questão da segurança e propõe o aprofundamento do papel das forças armadas e o aumento das penas, incluindo a extradição, foram nove perguntas; para o segundo, referente à remoção de obstáculos e proibições constitucionais a aspectos fundamentais do pacote neoliberal (legalização do contrato de trabalho por hora e submissão à arbitragem internacional nas áreas comercial e de investimentos), foram duas perguntas.

A estratégia política, além de buscar a consolidação política do curto regime de Daniel Noboa, era aprofundar a militarização da sociedade, acentuar o modelo repressivo e autoritário, em nome do combate ao narcotráfico, encorajar posições conservadoras na população e, juntamente com isso, acomodar a precarização do trabalho e a redução da soberania nacional.

Estes objetivos não foram plenamente atingidos no ato eleitoral: apesar de ter conseguido um pronunciamento favorável nas perguntas referentes ao tema da segurança e do controle, o mesmo não aconteceu nas perguntas sobre a temática neoliberal.

Com propósitos explicativos, este artigo tem um corte metodológico e político, centra-se no que ocorreu nas perguntas sobre a temática neoliberal, pois nos parece que há aí uma novidade que vale a pena ressaltar: são evidentes as reservas sociais e políticas que podem ser decisivas numa perspectiva de deter a ofensiva da direita.

Quando, nas urnas, em 21 de abril, o povo se pronuncia em 65% para rejeitar a arbitragem internacional e em 69% para rejeitar uma reforma trabalhista de contratação por hora, conseguiu golpear não só a figura política de Daniel Noboa, mas também a estratégia de intensificação do modelo neoliberal.

Vale a pena lembrar que não faz muito tempo, em agosto de 2023, numa consulta popular nacional, de iniciativa cidadã, sobre a questão do encerramento da exploração petrolífera na região amazônica de Yasuní, esta tese antiextrativista obteve um apoio favorável de 59% do eleitorado.

Isto revela um acumulado de consciência social e posicionamento político transcendente, democratizador, que resiste e confronta dois pilares da estratégia do capital transnacional: extrativismo mineral e precarização do trabalho.

Não devemos esquecer que o contexto eleitoral e político mais geral de agosto de 2023 e abril de 2024 é o aprofundamento da tendência de direita no país, como evidenciado pelo fato de que Guillermo Lasso, um ex-banqueiro conservador, foi sucedido por Daniel Noboa, um agroexportador, ambos com um apoio eleitoral de cerca de 53% dos votos, e que, em conjunto, implementam uma ofensiva de direita.

Seis meses de Daniel Noboa e a deriva autoritária

Durante esse curto período de Daniel Noboa na presidência da república, de dezembro até o presente, houve um processo acelerado de autoritarismo e militarização da vida nacional.

Daniel Noboa ganhou as eleições presidenciais de novembro de 2023 apresentando-se como o candidato da conciliação nacional diante da polarização política e da violência, surgiu num contexto de ansiedade e terror provocado pelo assassinato do candidato Villavicencio, com uma estrutura eleitoral de maior marketing publicitário do que formação partidária.

Uma das suas primeiras decisões foi a de gerar um pacto parlamentar envolvendo sua bancada legislativa com as duas primeiras forças políticas, as do partido Revolução Cidadã (o movimento do ex-presidente Rafael Correa) e o Partido Social Cristão, sob o lema da renúncia às ideologias a favor de um programa de paz.

Assim que assumiu o cargo deu rapidamente um giro, adotando medidas de militarização e força, e, na primeira semana de janeiro de 2024, declarou o estado de emergência nacional em nome da luta contra os grupos de narcotraficantes, ainda em vigência, pois, em 22 de abril, no dia seguinte ao referendo, renovou outra vez a emergência, agora em nome da crise energética.

A essência de seu discurso é segurança, militarização e guerra. A sequência de medidas é muito reveladora: em 8 de janeiro, declarou estado de emergência e, em 10 de janeiro, decretou “conflito armado interno”, qualificou cerca de vinte grupos de narcotraficantes como “grupos terroristas armados” e colocou o exército no controle das prisões e dos chamados “territórios perigosos”.

Ao lado disso, são decisivos o discurso de combate à corrupção e de judicialização da política, com um papel determinante da procuradora-geral da república, Diana Salazar, que neste semestre promoveu dois casos notórios, denominados “metástase” e “purga”, com acusações de acordos e ações comuns entre chefes do narcotráfico e juízes e deputados.

Também nestes meses se consolidaram os tratados de acordo militar e de ações conjuntas contra o narcotráfico entre o governo equatoriano e o aparato militar, de espionagem e antidrogas dos Estados Unidos da América.

Estes são os pilares da ofensiva da direita no Equador, que tem seu ponto mais grave nos acontecimentos do início de abril, o assalto militar e policial à embaixada do México em Quito, a violação do direito de asilo e da inviolabilidade das sedes diplomáticas.

Nessa ocasião, Daniel Noboa apresentou, em voz própria e por intermédio do vice-ministro das relações exteriores Dávalos, na sessão da OEA de 9 de abril, a tese da “revisão e atualização” da compreensão dos direitos humanos em geral e do direito de asilo em particular. Uma posição justificada diante da situação de conflito interno e da luta contra a corrupção.[i]

Este discurso tem sido amplificado e justificado por aparelhos ideológicos midiáticos, a partir de instrumentos tradicionais e novos, e sustentado por estruturas de poder muito fortes, em nível interno, os setores agroexportadores e o capital transnacional, e, em nível internacional, a principal potência militar da região e do mundo.

Com os lamentáveis acontecimentos em torno da embaixada mexicana, Daniel Noboa deixou de ser um presidente quase despercebido – é difícil encontrar intervenções públicas suas em fóruns nacionais e internacionais que durem mais de quinze minutos e em que mencione qualquer outro assunto que não seja a segurança – para se tornar o protagonista da direitização no continente. Foi a gravidade do acontecimento que gerou tal relevância; nem as ditaduras militares se atreveram a tanto.

Posições sobre o Referendo

É evidente que estamos diante de um regime autoritário com muito apetite de poder. É lógico pensar que, quando convocou o referendo e o processo de consulta popular no início de fevereiro, seu objetivo era ganhar tudo; as previsões também lhe eram favoráveis, abrindo caminho à sua reeleição.

Além disso, partia de um acordo parlamentar, no qual estava comprometida a principal força política, “Revolução Cidadã”, cuja posição inicial era qualificar esta convocatória de referendo como “inconsequente”.

Quem se comprometeu na oposição às teses presidenciais? No início, foram as organizações sindicais, como a Frente Unitária de Trabalhadores e a União Geral de Trabalhadores, a esquerda tradicional, como a Unidade Popular, o movimento indígena, tanto a Conaie como o Pachakutik, setores do movimento ambientalista, como os Yasunidos, e dos movimentos feministas.

É interessante notar que apenas dez organizações políticas foram inscritas para fazer campanha pública neste Referendo,[ii] num país com 260 partidos e movimentos políticos registrados.

Era importante que houvesse uma acumulação social e política a partir das lutas antineoliberais do início dos anos 2000 e que foram consagradas na Constituição de 2008. Mas não só isso, pois as novas gerações se opuseram a um futuro marcado pela precariedade do trabalho e pela perda de direitos.

Também foi relevante que o regime mostrasse sua pior face autoritária no assalto à embaixada do México, o que precipitou a reviravolta do partido Revolução Cidadã, que se declarou em oposição e só então entrou na campanha do Não.

E, na última semana antes do Referendo, desencadeou-se uma crise de energia elétrica, regressando os longos apagões do passado, o que demonstrou a incapacidade do regime para lidar com uma emergência anunciada.

Resultados e votação sobre questões trabalhistas e arbitragem internacional

Os resultados do Referendo e da Consulta Popular favoreceram parcialmente o regime, mas revelaram também um acumulado de consciência e posicionamento social e político antineoliberal relevante.

A tese do Sim venceu em nove perguntas, e a que teve maior apoio foi a primeira pergunta do Referendo, referente à legalização da presença das Forças Armadas no combate interno às quadrilhas de narcotraficantes, em que obteve 73% dos votos.

Continuamos onde o Sim ganhou: na pergunta B (extradição) obteve 64%, na pergunta C (justiça especializada) obteve 59%, na pergunta F (exército no controle de armas) obteve 69%, na pergunta G (aumento de penas) obteve 67%, na pergunta H (cumprimento de condenações) obteve 66%, na pergunta I (porte de armas) obteve 63%, na pergunta J (armas para a polícia) obteve 64%, na pergunta K (perda de bens e valores) obteve 60%.[iii]

Sem dúvida, as posições de militarização, aumento de penas e restrição de direitos conseguiram obter importante adesão social e política, o que afirma as posições conservadoras sobre a problemática.

As posições de esquerda e de proteção de direitos sobre a questão do tráfico de drogas, o aumento da violência criminal e as causas estruturais do tráfico de drogas não obtiveram consenso social e permanecem minoritárias.

Mas os resultados também nos mostram outro lado do debate político e social: as teses neoliberais e extrativistas não conseguem obter consenso nacional, enquanto as teses de resistência e por alternativas de trabalho com direitos e em defesa da natureza conseguem manter um forte apoio no conjunto da população.

Observemos os dados em torno destas duas perguntas:

A pergunta D era a seguinte: “Você concorda que o Estado equatoriano reconheça a arbitragem internacional como método de solução de controvérsias sobre investimento, contratuais ou comerciais?”

Aqui, o Não obteve nacionalmente 65%, e 34% responderam Sim, divididos da seguinte forma, em nível provincial.[iv]

Gráfico nº 1: Resultados da pergunta D do Referendo 2024.

Em primeiro lugar, a tese do Não triunfou em todas as províncias do Equador, com maior apoio em Sucumbíos, onde atingiu 78%, e o menor em Tungurahua, com 59%.

Em segundo lugar, acima da média nacional, estão 11 províncias, das quais duas se situam na região amazônica: Sucumbios e Orellana; sete na região andina: Cotopaxi, Imbabura, Carchi, Bolívar, Chimborazo, Azuay e Pichincha; duas na região do litoral: Manabí e Santa Elena.

Por sua vez, destas 11, sete correspondem a províncias com grandes populações indígenas, pelo menos duas são redutos do correísmo, e há o centro da atividade política: Quito.

Vejamos agora os detalhes da pergunta E, que dizia o seguinte: “Você concorda com a mudança da Constituição e do Código de Trabalho para o contrato de trabalho a prazo fixo e por hora, quando celebrado pela primeira vez entre o mesmo empregador e trabalhador?”

Aqui o Não obteve nacionalmente 69% e o Sim 31%, com a rejeição da pergunta subindo quatro pontos (de 65% para 69%) e que se reparte da seguinte forma, em nível provincial:

Gráfico nº 2: Resultados da pergunta E do Referendo 2024.

Tal como na pergunta anterior, predomina o voto Não em todas as províncias do país, com o maior apoio novamente em Sucumbíos, com 82%, e o menor em Pastaza, com 63%.

Em segundo lugar, mais uma vez temos 11 províncias acima da média nacional, que são as mesmas da pergunta D, ou seja, mostram uma coesão no posicionamento antineoliberal, um pouco mais acentuada do que o anterior.

Poderíamos avançar uma análise combinando dados e contextos políticos, para afirmar leituras como as seguintes: (i) há uma recuperação da votação proveniente de setores indígenas e rurais, (ii) sustenta-se uma votação articulada com o progressismo, sobretudo nos centros urbanos e províncias do litoral, (iii) é possível indicar que a influência dos movimentos sindical e ambientalista é relevante, (iv) é previsível que a votação dos setores juvenis se alinhe na rejeição da precarização do trabalho.

Podemos ver que há consistência neste acumulado de posicionamento antineoliberal, ele está presente em nível nacional, tem pontos fortes em determinadas regiões do país e influencia partidos e movimentos sociais.

Desafios suscitados por estes resultados

O percurso que fizemos em torno deste acontecimento da conjuntura política do Equador: os resultados do Referendo de 2024, evidenciando que existem acumulados sociais e políticos antineoliberais, ao mesmo tempo em que mostra possibilidades, condições, para que as forças democráticas de esquerda, movimentos e partidos, indivíduos e coletivos possam deter a ofensiva conservadora e autoritária dos setores de direita e militaristas.

Há um acumulado ao qual recorrer e potencializar, recuperar e nutrir, reservas de consciência nacional e democrática que, em certos momentos e condições, alcançou vitórias relevantes, como as posições em defesa de Yasuní, ou maiorias circunstanciais, embora importantes, como a resistência à precarização do trabalho neste Referendo de 2024.

É necessário implantar esforços de organização e propostas capazes de inverter a tendência, no país e no mundo, de uma direita que emprega discursos de medo, ódio e segregação. Direita que cresce num mundo de guerras.

*Francisco Hidalgo Flor, sociólogo, é professor da Universidade Central do Ecuador.

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Notas


[i] Sobre as teses apresentadas pelo governo do Equador na sessão da OEA de 9 de abril de 2024, ver o portal Primicias.ec.: https://www.primicias.ec/noticias/politica/consejo-permanente-oea-crisis-diplomatica-ecuador-mexico-glas/

[ii] Para as organizações registradas para fazer campanha no Referendo de abril de 2024, ver: https://www.cne.gob.ec/10-organizaciones-calificadas-para-campana-del-referendum-y-consulta-popular-2024/

[iii] Sobre os resultados do Referendo e da Consulta Popular, consultar o portal do Conselho Nacional Eleitoral do Equador: https://consulta2024.cne.gob.ec/#

[iv] A fonte de dados em nível provincial também corresponde aos relatórios oficiais do CNE: https://consulta2024.cne.gob.ec/#


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