Por PETER SLOTERDIJK*
Introdução do autor ao livro recém-editado
Observação preliminar
Como o título deste livro soa ambíguo, é preciso esclarecer que a seguir não se falará nem do céu dos astrólogos, nem do céu dos astrônomos, tampouco do céu dos astronautas. O céu de que se fala não é um objeto passível de percepção visual. No entanto, desde tempos imemoriais, ao olhar para o alto se impunham representações em forma de imagem acompanhadas de fenômenos vocais: a tenda, a caverna, a abóbada; na tenda ressoam as vozes do cotidiano, as paredes das cavernas repercutem antigas cantorias de magia, na cúpula reverberam as cantilenas em honra do Senhor nas alturas.
Da totalidade do céu diurno e noturno resultou desde sempre uma concepção arcaica do que é abrangente. Nela era possível pensar o misterioso, o aberto, o amplo, em conjunto com o protetor, doméstico em um mesmo símbolo de integridade cósmica e moral. A imagem da deusa egípcia do céu, Nut, que, coberta de estrelas, lança sobre a terra uma ponte inclinada para frente, oferece o mais belo emblema transmitido pela Antiguidade da proteção oferecida por algo que abarca. Graças à reprodução dessa imagem o céu também está presente no interior de sarcófagos. Um morto que abrisse os olhos no interior do sarcófago teria a companhia da deusa olhando para um espaço aberto benfazejo.
No curso da secularização, o céu perdeu sua importância como símbolo cósmico de imunidade e se converteu, então, em suprassumo da voluntariedade, na qual, aos poucos, deixam de ressoar as intenções humanas. O silêncio dos espaços infinitos passa a provocar terrores metafísicos em pensadores que auscultam o vazio. Heinrich Heine, em sua narrativa em versos Alemanha, um conto de inverno (1844), ainda tingira essa tendência com fina ironia, quando decidiu deixar à mercê dos anjos e dos pardais o céu, a respeito do qual uma menina cantava ao som da harpa a “velha canção da renúncia”.
Charles Baudelaire, por sua vez, em Flores do mal (1857), produziu a imagem de um pânico neognóstico próprio de prisioneiros, ao descrever o céu com uma tampa preta posta sobre uma grande panela, na qual se cozinhava a vasta humanidade invisível.
Detalhe do papiro de Greenfield (século X antes da nossa era). Foto: Wikimedia Commons.
A deusa do céu, Nut, curva-se sobre o deus da terra, Geb (deitado), e do deus do ar, Shu (ajoelhado). Representação egípcia de céu e terra.
Considerando os diagnósticos contrários dos poetas, é aconselhável ouvir opiniões de terceiros e de outros mais. O que se pretende, no que se segue, é falar de céus comunicativos, luminosos e que convidam a arrebatamentos, porque, correspondendo à incumbência do esclarecimento poetológico, eles constituem zonas de origem comum de deuses, versos e aprazimentos.
DeuSeS no teatro
“Deus ex machina, deus ex cathedra e sem parábolas nada lhes dizia” (Mateus 13, 34)
A vinculação de representações do mundo dos deuses com a poesia é tão antiga quanto o início da tradição europeia; remonta às mais antigas fontes escritas das civilizações em todo o mundo. Quem se lembra do marulhar atemporal dos versos de Homero saberá como o poeta faz os deuses olímpicos deliberarem sobre os destinos dos combatentes na planície de Troia. Ele faz os celestiais falarem sem rodeios, nem sempre com a compostura esperada de seres do seu nível.
Inclusive no começo da Odisseia se ouve como Zeus toma a palavra para desaprovar as manifestações voluntariosas de sua filha Atena. Ele dirige a palavra majestaticamente a ela: “Minha filha, que palavra te escapou da barreira dos dentes?”[i] Nem mesmo o primeiro dos habitantes do Olimpo pode, sem mais nem menos, ordenar a uma deusa, a quem compete a sabedoria, que se cale. Para externar sua indignação, o pai dos deuses precisa fazer um esforço retórico e até apelar para fórmulas poéticas.
Pode-se afirmar que Homero foi o poeta que trouxe ao mundo deuses que fazem poesia? Seja qual for a resposta a essa pergunta capciosa, como poetas os deuses de Homero teriam atuado apenas de modo diletante, na medida em que poesia é um ofício que precisa ser estudado, a despeito do boato das maravilhas operadas pela inspiração indouta. Perseverar na posição do diletto falava a favor da aristocracia olímpica. Nenhum poder do mundo poderia ter forçado um deus em exercício a aprender um ofício até obter o grau da maestria.
Os deuses do tipo olímpico, da Grécia antiga, comportam-se em relação ao mundo, na maior parte do tempo, como espectadores distraídos. Não interferem nas ações terrenas mais do que costumam fazer os civis que acompanham um exército por curiosidade ou diversão; eles assistem às guerras de dentro de seus camarotes como visitantes que apostam em seus favoritos. Envolver-se não é com eles.
São como feiticeiros que dominam perfeitamente tanto o súbito aparecimento quanto o súbito sumiço. Mesmo quando não corporificam mais meros poderes difusos da natureza, fenômenos meteorológicos e forças motrizes da fecundidade botânica e animal, mas propiciam a personificação de princípios éticos, cognitivos e também políticos mais abstratos, eles mantêm um traço de leveza. Poderíamos considerar os deuses olímpicos como uma society de oligarcas que piscam o olho uns para os outros, assim que a fragrância dos fogos sacrificiais se eleva até eles.
A escolha de seu local de residência denuncia que se trata de criaturas da antigravidade. Elas desaprenderam como existir, como estar no campo da gravidade com o qual seus predecessores da geração dos deuses titânicos se afligiam. Os amorfos titãs forçudos eram predestinados a perecer na escuridão à medida que os formosos conquistavam a supremacia – excetuando Hefesto, que, entre os deuses, era o que tinha limitações para locomover-se, que na condição de ferreiro e claudicante morador de oficina nunca se tornou inteiramente sociável.
Os portadores da coroa olímpica, o povo de deuses de segunda geração, inquietam-se desde a queda dos seus predecessores com a premonição de que, um dia, o que foi derrotado poderia retornar. Os deuses desse estágio sabem que todas as vitórias são provisórias. Se deuses tivessem um inconsciente, nele estaria gravado: somos espíritos de mortos que chegaram longe.[ii] Devemos a nossa ascensão a um impulso anônimo da vida, e não é possível descartar que, um dia, ele nos transcenda.
Em tudo isso, um aspecto em particular se reveste de importância para o que se segue: que os deuses de Homero foram deuses falantes. E foram também o que Aristóteles disse dos seres humanos: seres vivos “que têm a fala”. A poesia os pôs ao alcance da audição humana. Os seres superiores podem ter se comunicado apenas entre si na maior parte do tempo, mas, eventualmente, as conversas dos imortais também foram ouvidas por mortais – como cavalos que ouvissem as apostas dos espectadores antes da corrida.
Séculos depois de Homero, o fenômeno dos deuses falantes foi acolhido na cultura teatral grega. O teatro de Atenas promovia encenações diante da cidadania reunida que, por sua compreensibilidade universal, favoreciam a conexão emocional do público citadino. A democracia começou como populismo afetivo; desde o início, ela se aproveitou do efeito contagiante das emoções. Como Aristóteles resumiria mais tarde, no teatro a plateia sentia “temor e compaixão”, fóbos e éleos, ou melhor: tremor e pena, em geral nas mesmas passagens das peças trágicas.
As comoções encenadas pelos atores eram vivenciadas em uníssono pela maioria dos frequentadores, tanto pelos homens quanto pelas mulheres; eles se depuravam de suas tensões, participando, quase sem nenhum distanciamento, das dores dos dilacerados no palco. A língua grega dispunha de um verbo específico para esse efeito: synhomoiopathein[iii], sofrer da mesma maneira em simultâneo. Também nas comédias que se seguiram às tragédias, o povo geralmente ria nas mesmas passagens.
Para se atingir o efeito edificante do drama era fundamental que, na expectação das reviravoltas do destino no palco, todos chegassem juntos ao limite, a partir do qual não se faziam mais perguntas. O oculto, o suprarracional ou, como se diz também, o numinoso preenchiam o cenário com sua presença real. Como esse efeito raramente era obtido e soçobrou nas peças medíocres do período pós-clássico, o público ateniense perdeu o interesse. No século iv antes da nossa era, os espectadores que haviam sacrificado um dia inteiro assistindo às apresentações chochas do teatro de Dionísio foram indenizados com um óbolo teatral.
Sobre esse pano de fundo é preciso abordar mais detidamente uma engenhosa invenção da arte teatral ática. Os dramaturgos (“artífices de acontecimentos”) – ainda quase idênticos aos poetas – tinham entendido que conflitos entre pessoas que lutam por coisas incompatíveis tendem a chegar a um ponto morto. Nesse caso, não há saída com meios humanos. Esses momentos foram assimilados pelo teatro antigo como pretextos para introduzir um ator no papel de deus. Mas, como um deus não podia simplesmente entrar em cena pela lateral como se fosse um mensageiro, foi necessário idealizar um procedimento que o fizesse entrar levitando do alto.
Com essa finalidade, os engenheiros do teatro ateniense construíram uma máquina que possibilitava aparições de deuses do alto. Apò mechanès theós: fazia-se pender para dentro do cenário uma grua, em cuja extremidade estava fixada uma plataforma, um púlpito — a partir dali o deus falava para dentro do cenário humano mais embaixo. Entre os atenienses, o aparato era denominado theologeîon.
Quem atuava na assombrosa grua não era, por natureza, nenhum sacerdote que estudara teologia – não havia nada desse tipo, e seu conceito ainda não havia sido cunhado —, mas um ator por trás de uma máscara sublime. Ele devia representar o deus ou a deusa como instância que resolvia os problemas imperiosamente.
Claro que os dramaturgos não tinham nenhum escrúpulo de atuar de forma “teúrgica” – para eles, aparições de deuses eram efeitos factíveis, do mesmo modo que alguns cabalistas, mais tarde, ficariam persuadidos de conseguir realizar procedimentos teotécnicos, repetindo os truques com letras do Criador. Outros teatros helênicos se contentavam em instalar o theologeîon como uma espécie de galeria ou balcão mais elevado na parede de fundo do teatro, nesse caso, renunciando à dinâmica fascinante do ato de pender para dentro.
A mais impactante das epifanias de palco acontece quando, na peça Eumênides, de Ésquilo (encenada em Atenas no ano de 458 aec), Atena aparece no final do drama para intervir no caso do matricida Orestes, decidindo o impasse entre a parte que queria vingança e a que almejava o perdão a favor da opção reconciliadora – convertendo, assim, as Eríneas vingativas nas “bem-intencionadas”. Algo análogo é encenado (no ano de 409 aec) quando, no Filoctetes, do velho Sófocles, Hércules, divinizado, paira sobre o palco para convencer o renitente inimigo dos gregos, que persistia no seu sofrimento, a entregar o arco sem o qual a Guerra de Troia não poderia, em conformidade com a vontade dos deuses, ter um fim favorável aos gregos.
O theologeîon não é uma tribuna de orador nem um púlpito de pregação, mas uma instalação absolutamente própria do teatro. Representa uma “máquina” trivial, no sentido original da palavra, um efeito especial feito para prender a atenção da plateia. Sua função não é trivial: transpor um deus do estado de invisibilidade para o de visibilidade.
Ademais, não só se veem o deus, a deusa, pairarem sobre o palco, como também se ouvem ele ou ela falarem e darem instruções. Sem dúvida, é “mero teatro”, mas não haveria o teatro incipiente se todos os atores, tanto mortais quanto imortais, não tivessem sido tomados temporariamente pela suposição da representabilidade. Se os deuses não se mostram por iniciativa própria, é preciso fazer com que apareçam.
Efeitos desse tipo são tratados pelo termo latino posterior deus ex machina, cujo sentido, na técnica dramática, poderia ser precisado da seguinte maneira: somente uma figura que intervém a partir de fora pode apontar a reviravolta libertadora de um conflito irremediavelmente intrincado. Num primeiro momento, o fato de o deus ou a deusa surgirem coram publico [diante do público] no ponto de mutação do enredo não passa de uma exigência dramatúrgica; contudo, sua aparição também representa um postulado moral e até o dever do teatro.
Isso poderia ser denominado de “prova dramatúrgica [da existência] de deus”: deus é usado para desatar o nó do drama, logo, ele existe. Seria desrespeitoso, mas não totalmente errado, designar o deus que aparece de repente de provedor do happy end. Soluções desejáveis, não importa em que campo, muitas vezes só se alcançam com a ajuda de poderes superiores, ainda que sejam meras ideias decorrentes da presença de espírito.
“Soluções” tornaram-se memoráveis como prestação de serviços do céu[iv]– muito antes de entrar em circulação como respostas a tarefas matemáticas e problemas empresariais. Acrescentemos aqui a observação de que numerosos libretos de ópera do século XVIII, época avessa à tragédia, nem sequer poderiam ser concebidos sem o deus oriundo da máquina.
Tendo a teodramática grega como pano de fundo, pode-se levantar a pergunta se a maior parte das “religiões” desenvolvidas possuía um equivalente para a grua do teatro ou para o balcão reservado aos entes superiores. Por enquanto, mantenho a preferência pelo nefasto termo “religião”, ainda que seja sobrecarregado de confusões, especulações e suposições – sobretudo desde que Tertuliano inverteu, em seu Apologeticum (197), as expressões “superstição (superstitio)” e “religião (religio)” contra o uso linguístico romano: ele chamou de superstição a religio tradicional dos romanos, ao passo que o cristianismo deveria se chamar “a verdadeira religião do verdadeiro deus”.
Desse modo, ele produziu o modelo para o tratado agostiniano De vera religione [Da religião verdadeira] (390), que marcou época, mediante o qual o cristianismo se apropriou definitivamente do conceito romano. Entrementes, ele equivale a tudo o que anula o bom senso cotidiano com sugestionamentos oriundos da penumbra e da matéria escura[v], embora não faltem esforços para demonstrar a possível congruência de racionalidade e revelação, visando salvar o conceito de religião.[vi]
Seguramente, o theologeîon, no sentido estrito do termo, foi inventado apenas uma vez e assim denominado apenas uma vez. Em sentido ampliado e com outros nomes, os procedimentos para pressionar os deuses superiores a aparecer e a falar podem ser comprovados de múltiplas formas, caso não sejam onipresentes.
O que a dramaturgia tratou nos palcos áticos, de modo a ser representativa de quase todas as outras culturas, foi nada menos que a questão de saber se os espectadores de uma ação solene sempre tiveram de se contentar com efeitos teotécnicos ou se, “no final das contas, os deuses mesmos” marcavam presença por trás da magia do espetáculo teatral. Desde tempos imemoriais, xamãs, sacerdotes e gente do teatro compartilharam a observação de que até a mais profunda comoção se encontra no domínio do factível.
É certo que, na medida em que não sucumbissem ao cinismo latente do seu ofício, eles próprios acreditavam que o comovente como tal adquiria uma presença mais consistente no curso do procedimento sagrado. Como a todos os “jogos profundos”, também às ações rituais é inerente a possibilidade de que aquilo que é representado desperte para a vida como aquilo que representa. Mesmo que o deus “esteja próximo e seja difícil de captar”, sua falta de nitidez não exclui a seriedade da nossa entrega a ele e de nossa imersão em sua presença atmosférica.[vii]
Surgem equivalentes à máquina dos palcos helenistas, nos quais deuses das mais diversas origens, inclusive os de constituição monoteísta e dotados de fortes predicados de sublimidade, começam a cumprir o dever de aparecer, isto é, de atender ao chamado à condescendência com a percepção dos sentidos humanos. Em princípio, os deuses poderiam ter permanecido totalmente ocultos, já que, por sua natureza, são latentes, transcendentes e subtraídos à percepção mundana.
Não é por acaso que são denominados invisíveis. Sobretudo os deuses subterrâneos gostavam de ser discretos; contentavam-se com a prova anual de poder da primavera; eles foram encenados especialmente entre os povos mediterrâneos com reforço do aspecto cultual, como nas falofórias atenienses, isto é, nos desfiles da ereção, que ofereciam às matronas da cidade, por ocasião do culto primaveril a Dionísio, a oportunidade de carregar enormes falos costurados com couro escarlate pela cidade em um estado de zombaria devocional.
Para os habitantes do além de outrora, o “aparecimento” não pode ter representado mais do que um atividade secundária; Epicuro acertou o ponto essencial quando comentou que deuses seriam demasiado bem-aventurados para se interessar pelos assuntos dos seres humanos. Seu predecessor, Tales, chega a afirmar: “Tudo está repleto de deuses” – mas isso podia significar coisas bem distintas: ou que das centenas de divindades gregas sempre havia uma prestando serviço no ponto de passagem para o mundo humano, comparável a uma ambulância celestial, ou que, por todos os lados e constantemente, estamos rodeados pelo divino, sem que nós, embotados pelo cotidiano, percebamos sua presença.
Homero observa en passant que os deuses gostavam de participar de banquetes humanos sem serem notados e encontrar-se com peregrinos solitários[viii] – eles só são reconhecidos em algum momento posterior por sua luminescência enigmática.
Dos episódios epifânicos, como quer que fossem interpretados, resultaram com o tempo comprometimentos cultuais. Assim que os cultos se tornaram estáveis, os deuses se enquadravam no ecossistema das evidências que circunscrevia seu espaço de manifestação.
Deuses são vaguidades delineadas com mais precisão pelo culto. Em tempos antigos, quase sempre foram convidados, para não dizer compelidos, a “aparecer”, em geral em lugares criados exclusivamente para isso, ou seja, espaços aptos à epifania que lhes eram associados como templos (em latim: templum, área restrita) e em tempos fixados que, por isso mesmo, eram denominados “festas”. Eles cumpriam suas tarefas de aparição ou revelação preferencialmente graças a oráculos que proferiam aforismos ou profecias de múltiplos sentidos ou com o auxílio de comunicações por meio de escritos envoltos por uma aura de santidade; a alguns deles não desagradava a ideia de aparecerem em sonhos lúcidos, durante a soneca no templo ou na véspera de decisões importantes.
Sua condição preferida era a paciência que beirava à indiferença, que lhes dava condições de tolerar as invocações dos mortais. Era permitido dirigir-se a eles em oração, envergonhá-los com hecatombes, acusá-los, atribuir-lhes injustiças, questionar sua sabedoria e até xingá-los e amaldiçoá-los, sem correr o risco de receber respostas imediatas.[ix] Os deuses podiam se dar ao luxo de fazer de conta que não existiam. Graças à sua postura abstinente, o céu invocado em excesso migrou através dos tempos.
Por fim, esses que foram invocados em demasia também se deram a conhecer por meio da encarnação pessoal: algumas vezes tomaram a liberdade de recorrer a corpos aparentes que iam e vinham conforme lhes aprazia. Ou se condensaram, “na plenitude do tempo”, em um Filho do Homem, em um Messias salvador.
Depois que Ciro II, o rei dos persas famoso por sua tolerância religiosa, permitiu aos judeus que tinham sido levados em cativeiro para a Babilônia o retorno à Palestina no ano de 539 AC, pondo fim a um exílio de quase sessenta anos, a elite espiritual dos judeus ficou muito mais receptiva a boas-novas de cunho messiânico – o Segundo Isaías deu o tom para isso. Panegíricos a Ciro, o instrumento de deus, deram origem a ideias de Messias que repercutiram por mais de dois milênios e meio.
Vale para toda uma era mundial o que Adolf von Harnack observou a respeito de Marcião, o proclamador da doutrina do deus desconhecido: “Religião é redenção — nos séculos i e ii, o ponteiro da história da religião apontava para este ponto; ninguém mais podia ser deus sem ser salvador.”[x] Os codinomes “salvador” ou “redentor” (sotér) já haviam sido usados por Ptolomeu i, que se havia alçado à condição de regente do Egito após a morte de Alexandre Magno; ele instituiu o culto ao “deus redentor”. Seu filho, Ptolomeu ii, recebeu o “nome de hórus de ouro” que competia ao faraó: “Seu pai o fez aparecer”.
Deuses que apareciam permitiam à sua clientela que visse, ouvisse e, ocasionalmente, lesse apenas o necessário para sua condução, vinculação e instrução – via de regra, o suficiente para manter a “estrutura de plausibilidade”, mediante a qual era assegurada a adesão de uma comunidade de cunho ritual a suas representações cultuais (em termos antigos: o apego aos costumes dos antigos, patrioi nomoi, mos maiorum; em termos cristãos: fides, “fidelidade em manter o que dá sustentação”). Plausibilidade quer dizer aqui: a aceitação não teórica da validade de usualidades, incluindo as relativas a coisas transcendentes.
A invenção do theologeîon entre os gregos explicitou, com o auxílio de uma inovação mecânica, um dilema com que tiveram de se debater todas as formações religioides superiores. Ele evidenciava a tarefa de ajudar o além, o superior, o outro – ou como quer que seja designado o espaço supraempírico, habitado por vaguidades poderosas – a lograr uma manifestação cuja evidência fosse suficiente no mundo da vida humana.
O estágio mais antigo de evidência de fontes sensíveis e suprassensíveis se mostra em forma de comoção dos participantes gerada por um “espetáculo”, um rito solene, uma hecatombe fascinante. Para provocarem tais efeitos, culturas mais antigas recorriam com frequência a procedimentos mediúnicos e expedientes divinatórios – ambos oferecem às grandezas ocultas oportunidades de anunciar suas intenções.
Via de regra, os do além aproveitavam as possibilidades de aparição em presenças induzidas pelo transe, ocasionalmente por frenesis em que os receptores passavam dos limites da automutilação voluntária. Os emissores do lado de lá pareciam convocar seus médiuns cultuais a serem mensageiros no limiar entre as duas esferas. Oportunamente eles se faziam ouvir por meio de vozes emitidas pelos celebrantes; mais tarde, o balbuciar dos médiuns foi substituído pela leitura serena de passagens das Sagradas Escrituras.
Os deuses davam orientações pela forma de um fígado de ovelha ou pela trajetória dos voos dos pássaros – prelúdios das artes denominadas decifração de signos e leitura. Um triunfo precoce da leitura foi celebrado pela astrologia mesopotâmica quando ela adquiriu a capacidade de decifrar a posição de corpos celestes uns em relação aos outros como textos e poderes que exercem influência sobre os destinos humanos.
A zona de sinais cresce paralelamente à arte de interpretação.[xi] O fato de não estar acessível a todos se explica por sua natureza semiesotérica: Jesus já censurou seus discípulos por não entenderem os “sinais do tempo” (semaîa tòn kairòn).[xii] Decerto ele próprio foi mais do que uma constelação, e, no entanto, a estrela de Belém, na medida em que não tenha sido mera fantasia de Mateus[xiii], teria posto um sinal no céu por ocasião do seu nascimento, que serviu de guia aos até hoje populares astrólogos do Oriente.[xiv]
Práticas extáticas e métodos divinatórios de indagação constituíram procedimentos para confrontar o além com perguntas que ele não podia deixar completamente sem resposta. Em geral, partia-se do pressuposto de que havia intérpretes capazes de associar um sentido prático aos símbolos codificados. Como mostram pesquisas recentes, na Antiguidade ocidental se praticou a signologia política em um nível altamente elaborado – sobretudo entre os gregos e romanos.[xv]
Ainda não se falava expressamente de “teologia política”. Mas, para os conhecedores dos signos, não havia dúvida de que os deuses têm suas opiniões sobre os assuntos humanos e tomam partido com base nelas, e que, em casos isolados, até planejam empreendimentos políticos de longo prazo em que a colaboração dos atores humanos é indispensável – como na fundação indireta de Roma pelo príncipe troiano Eneias.
Nenhum imperialismo ascende sem que tenham sido interpretadas as posições atuais das constelações no céu temporal, tanto no caso de detentores do poder quanto de aspirantes a ele. Somam-se a elas conselhos do submundo: “Tu regere imperio populos, Romane, memento.”[xvi] Da boca do pai falecido Eneias escuta a admoestação dirigida a ele, o precursor dos romanos, para que imponha aos povos seu regime beneficente. Virgílio, contemporâneo de Augusto e encarregado de sua glorificação, criou com essa ordem de dominação um modelo de vaticínio após o evento.
Os modernos sucessores dos áugures que decifram os “sinais da história” são os historiadores capazes de ter uma visão geral e que se dedicam à tarefa de apresentar a sucessão cega de eventos como sequência plena de sentido de uma “história mundial”.
*Peter Sloterdijk é filósofo. Autor, entre outros livros, de Crítica da razão cínica (Estação Liberdade).
Referência
Peter Sloterdijk. Fazendo o céu falar: sobre teopoesia. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo, Estação Liberdade, 2024, 352 págs. [https://amzn.to/3A57AnI]
Notas
[i] Homero, Odisseia, Rapsódia i, verso 64 (trad. Antônio Pinto de Carvalho, p. 17).
[ii] Cf. Émile Durkheim, Die elementaren Formen des religiösen Lebens, Berlim, Verlag der Welt Religionen, 2017 [1912], p. 427: “Um grande deus de fato não passa de um antepassado especialmente importante”, isto é, um que extrapola o âmbito de um clã. O enunciado de Durkheim se refere ao mundo de representações dos aborígenes australianos, principalmente os da tribo dos Arunta.
[iii] Aristóteles, Retórica iii, 7, 4, 140a.
[iv] Incluindo o dinheiro do resgate (lýtron) que o céu paga pela resolução do nó do pecado no ser humano ou então como quantia paga para que o ser humano possa passar da servidão ao diabo para a liberdade sob deus.
[v] Cf. Ludwig Feuerbach, Das Wesen des Christentums, Colônia, Jazzybee Verlag, 2014 [1841], p. 347: “A noite é a mãe da religião.” O conceito generalizado de religião surge após o século xvi como híbrido da missão cristã mundial e da antropologia iluminista. Aquela supôs que todos os seres humanos na terra estariam esperando pela mensagem salvífica da superação da morte. Esta tira do fato de a morte ser universal a conclusão de que a religião igualmente deva sê-lo. É verdade que muitas pessoas em diversas culturas sepultaram seus parentes mais próximos com algum esmero (religio), ocasionalmente com valiosos adereços sepulcrais — o que é atestado, por exemplo, por sepulcros de príncipes e de crianças da Idade da Pedra; mas isso não altera em nada o fato de que a maioria dos seres humanos, na maioria das culturas, teve de contentar-se com o simples “descarte do cadáver” (Jörg Rüpke) com tênue perfil cultual.
[vi] Jan Rohls, Offenbarung, Vernunft und Religion: Ideengeschichte des Christentums,
v. 1, Tübingen, Mohr Siebeck, 2012.
[vii] Em sua obra Kulte des Altertums: Biologische Grundlagen der Religion (Munique, C. H. Beck, 2009), pp. 18 e ss., Walter Burkert explica o conceito de adelótes (falta de nitidez, indeterminação) usado por Protágoras, como uma característica definitória da esfera religiosa.
[viii] Homero, Odisseia, canto vii, v. 201-205.
[ix] O locus classicus de uma blasfêmia proferida no calor da emoção, na literatura do século xx, encontra-se na segunda parte da tetralogia José e seus irmãos, de Thomas Mann, quando Jaacob, em seu luto pela presumida morte de seu filho predileto, José, protagoniza um excesso de queixume que o deixa constrangido depois de se acalmar: “Com silencioso sentimento de vergonha ponderou sua atitude intempestiva de revolta e disputa com deus no primeiro assomo de lamentação e achou que deus absolutamente não foi tardo, mas de fato elegante e santo por não o ter estraçalhado sumariamente e por ter deixado passar com tácita aceitação a insolência causada por sua desdita” (Thomas Mann, Joseph und seine Brüder, roman I: Die Geschichten Jaakobs; roman II: Der junge Joseph, ed. e rev. crít. Jan Assmann, Dieter Borchmeyer e Stephan Stachorski, colab. Peter Huber, Frankfurt am Main, S. Fischer, 2018 [1933], p. 656).
[x] Adolf von Harnack, Marcion: Das Evangelium vom fremden Gott. Eine Monographie zur Geschichte der Grundlegung der katholischen Kirche, Leipzig, J. C. Hinrichs, 1921, p. 17.
[xi] A “etnoastronomia” descobre o arbitraire du signe [arbitrário do signo] de Saussure a seu modo, como que a partir do lado oposto, ou seja, como arbitraire du signifié [arbitrário do significado]: a constelação das sete estrelas principais, designada pelos gregos de Ursa Maior, recebeu de outros povos os mais diversas nomes: os antigos egípcios a viam como “o grupo que puxava uma procissão; os antigos romanos, como sete bois debulhadores; os árabes, como um caixão seguido de três carpideiras; índios norte- -americanos mais recentes e franceses, como uma concha; os ingleses, como um arado; os chineses, como um funcionário da Corte recebendo pedintes; europeus medievais, como o ‘grande carro’” (apud Carsten Colpe, Weltdeutungen im Widerstreit, Berlim/ Nova York, De Gruyter, 1999, p. 119).
[xii] Mateus 16,13.
[xiii] Mateus 2,1-11.
[xiv] Em sua obra Der Stern der Erlösung [A estrela da redenção] (1921), Franz Rosenzweig fez uma tentativa de desastralizar o motivo do sinal no céu, visando enquadrá-lo em uma continuidade das orientações judaicas como parâmetro ético-transcendente da História da humanidade.
[xv] Kai Trampedach, Politische Mantik: Die Kommunikation über Gotteszeichen und Orakel im klassischen Griechenland, Heidelberg, Verlag-Antike, 2015.
[xvi] Virgílio, Eneida, vi, 850. A frase dita por Anquises (“Tu, romano, lembra-te de governar os povos sob teu império […], poupar os vencidos e dominar os soberbos”) é a palavra-chave do vaticínio virgiliano. Ele tem efeito retroativo para a transmissão do império e da fortuna de Troia para Roma; ela se comprova como efeito antecipado para a transferência do império de Roma para Bizâncio — e subsequentemente para Aachen, Viena, Moscou, Londres, Washington. Que a série de transferências de império não estava terminada com a operação virgiliana entre Troia e Roma, isto é mostrado, entre outros, pelo livro de Rémi Brague, Europa, seine Kultur, seine Barbarei: Exzentrische Identität und römische Sekundarität (Wiesbaden, Verlag Für Sozialwissenschaften, 2012).
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