Por HELENA TABATCHNIK*
Sejam gentis com a pessoa deprimida. Não a cobrem como se ela fosse normal. E, mais importante de tudo, informem-se. Vocês podem estar fazendo muito mal a alguém que amam
Troque sua boa intenção por um pouco de informação
Pessoas que não têm depressão: sei que as intenções são as melhores, mas é que de boas intenções o inferno já está cheio. E a vida do seu amigo, colega, parente, companheira ou padre já está infernal o suficiente para que você a torne ainda pior.
Então atenção: dá um Google no assunto de vez em quando e, em primeiro lugar, não venha com nenhum emplastro Brás Cubas. Pode ter certeza que a pessoa que tem depressão severa já tentou de tudo, porque seria muito bom se pudesse ser fácil. Chá de amora, acupuntura, chá de lavanda, suplementos vitamínicos A, B ou C., espiritualidade, meditação, terapia corporal… E os tradicionais “Mas vai se encher de remédios? Pra que vai por essa química toda dentro do seu corpo? Tente antes aquele emplastro Brás Cubas, você vai ver que é bem melhor”.
Só que não é. E quem fala isso invariavelmente nunca teve uma depressão severa.
Tenho minha vida devastada pela depressão há 22 anos, é óbvio que já tentei de tudo. Então parem com as soluções mágicas que vão fazer efeito rápido. Não existe efeito rápido em depressão severa. E por mais que te incomode ver seu irmão etc. sofrer, é preciso ter calma, acolher, e não ficar empurrando o paciente para soluções mágicas que inclusive ele já tentou. Muito ajuda quem não atrapalha.
A fratura
Há 22 anos, quando tive meu primeiro episódio depressivo e antes de ler muito sobre o assunto, eu também achava que era preguiçosa e que, se eu me esforçasse mais, melhoraria. Isso me causou um sofrimento imenso. Tempos depois, inventei a metáfora do quadril quebrado para tentar comunicar aquilo que ninguém entendia – e até hoje quase ninguém entende, apesar de a informação estar aí pra quem quiser.
Então pense que seu próximo que está em depressão, na verdade fraturou gravemente o quadril. Partiu ao meio mesmo, troço sério. Ele não pode sentar, ficar de pé, tomar banho ou fazer nada sem ajuda. Nada. Ele está pra baixo e sente muita dor. Você foi visitá-lo e tenho certeza que não falou:
– Mas até essa hora na cama? Abre as cortinas, sacode a poeira, vamos dar uma volta na quadra!
– Fulana está dando uma festa hoje, vamos comigo, você vai se animar!
– Menina, toma um banho, relaxa, passa uns cremes que você vai sentir melhor.
– Como assim não vai trabalhar? O trabalho vai te distrair, te fazer bem!
– Amiga, que casa suja! Desistiu de limpar, foi? Precisa fazer uma forcinha.
– Começa a se exercitar a-go-ra que vai te fazer muito bem.
– Tá indo na terapia?
Etc.
Não vou explicar a metáfora toda porque vocês são inteligentes. Mas, resumindo, o deprimido é um fraturado e você é o mala que está fazendo ele sofrer ainda mais.
Tá melhor?
Por favor, por todos os deoses, não despeje sua ansiedade em cima da pessoa deprimida. Eu imploro! Ela não tem como lidar.
Bom dia, tá melhor?
Bom dia, melhorou?
Bom dia, você acha que vai dar pra fazer aquela coisa hoje?
Bom dia, você precisa começar a terapia.
Bom dia, já começou a melhorar?
Bom dia, não tá demorando muito?
Bom dia, como se sente?
Bom dia, liga pro médico, tem que aumentar os remédios.
Bom dia, não aguento mais ver você assim…
Não tente estimular uma pessoa deprimida
Nossa, fulana, abre essa janela, troca essa cama, vamos sacudir a poeira e dar a volta por cima!
As tarefas que não estão sendo feitas, ficam rodando em looping na cabeça do deprimido. Com certeza o inferno tem técnicas muito parecidas de tortura psicológica. Quer ver como é lá dentro?
O que eu fiz hoje: lavei a louça e paguei uma conta.
O que eu não fiz (essa é a parte do looping):
Não fiz comida
Não lavei os lençóis
Não marquei dentista
Não procurei trabalho
Não estudei pra concurso
Não falei com a minha editora
Não tomei banho
Não fui consertar o celular
Cancelei aquela visita
Não consegui chegar no psiquiatra
Não fui tomar vacina
Não limpei o chão
Não passei fio dental
Não limpei a areia dos gatos
Não fui ao banco
Não guardei a louça
Não guardei a roupa
Não dei remédio pro gato
Etc.
Etc.
Tá bom? Lembrando que de boas intenções o inferno tá lotado, não tire da cartola a sua forma de lidar com um deprimido. De novo, isso só aumenta nosso sofrimento. Antes de sair falando, dá um Google, segue uma página no Instagram, a informação tá aí, nem precisa ler um livro. Mas se quiser pode ler “O demônio do meio dia” que é um livro muito importante.
Não entendo muito bem o fato de que todo mundo sabe o que é bom para depressão sem nunca ter lido uma mísera linha sobre o assunto. Famílias assistem por décadas o sofrimento agudo do deprimido é mesmo assim não consideram se informar sobre assunto. Tem coisa que eu também não entendo. Se fosse diabetes as pessoas iriam se informar antes de falar. Acho.
Pessoas que fazem coisas
Ouço meus vizinhos cantando alegremente na cozinha. Eles são um casal bastante feliz. Trabalham com coisas bacanas, ganham o suficiente, passeiam o cachorro todo dia, dão festas, sabem inglês e ainda correm pra manter a saúde e a forma.
Tenho a impressão que fui assim até meus 28 anos. Fiz faculdade de letras junto com minha formação em dança. Ia para a faculdade pela manhã e, à tarde, fazia 200 aulas de dança em 200 lugares diferentes, o que implicava andar muito de uma aula pra outra. Voltava pra casa cansada e feliz, era normal. E fui excepcionalmente bem nas minhas duas formações: Letras e Dança-teatro.
Já no mercado de trabalho, trabalhava exaustivamente em escolas particulares a semana toda. Cansava muitíssimo mais que dançar, e nos fins de semana fazia faxina, participava de grupos de estudo e ensaiava com a banda, ia à feira e cozinhava. Era cansativo, mas era normal.
De 20 anos pra cá, nada foi a mesma coisa. Passei a maior parte do tempo fazendo um esforço oceânico para manter a cabeça fora da lama. E só isso. Nesses momentos que são quase todos, eu não danço, não estudo, não limpo a casa e, inclusive, não leio – o que faz eu me sentir uma grandicíssima duma impostora, já que sou escritora.
É como ser obrigada a fazer uma casa funcionar com a chave geral desabada. Não há energia pra absolutamente nada. Chega depois do almoço, não fiz quase coisa nenhuma e minha energia acaba, bum! Como se fosse uma grande queda de pressão. E eu durmo. Quando posso. Quando não posso, rastejo para ir onde tenho que ir e sinto dor o tempo todo. Chego em casa inválida. E todo dia é assim.
Pulsões
O sofrimento e a pulsão de morte de uma pessoa em depressão profunda podem ser insuportáveis para você. Pense bem antes de se aproximar e não piore as coisas tentando fazê-la sentir diferente.
Uma dor incomunicável
Nunca me faltaram palavras para comunicar o que quer que fosse. Tenho sorte com elas, estão sempre aqui, muito minhas amigas. Também por isso é muito frustrante para mim não encontrar palavras para expressar a dor da depressão. O que vou fazer é listar aqui as metáforas que inventei ou aprendi para tentar comunicar uma dor que só se diz em sentido figurado. É difícil.
As metáforas e comparações que se seguem tentam descrever a depressão, a ansiedade e a angústia.
– É como perder a pele e caminhar num mundo feito de sal
– É com ser esfaqueado por muitas facas, o tempo todo, repetidamente, sem pausas
– Dói na alma
– A morte encarnada num corpo vivo
– A certeza de que o mundo é inviável
– Uma dor tão insuportável que a morte passa a ser uma alternativa considerável, contanto que faça a dor parar
– Uma dor que devora por dentro a partir do estômago
– Um apagão de energia e a dor de manter o corpo funcionando mesmo assim
– A sensação de que vou morrer agora
– Incapacidade total de sentir prazer
– Pensamentos obsessivos de depreciação, culpa e autocobrança
– Viver em queda num poço sem fim
– É encostar o olho no olho bovino da morte
– É o câncer da alma
– Ter certeza que não deveria existir e se sentir um peso para os outros
– Sentir-se fracassado em tudo
– Enxergar o horror do real o tempo todo, sem pausas
– Sentir pavor do mundo e nunca enxergar saída
– Como no World Trade Center, a dor de morrer queimando é tão excruciante que é preferível pular
– A certeza de que morrer seria bem mais tranquilo
Lembrem-se de que a pessoa com depressão nunca exagera. Ao contrário, como não pode comunicar, ela disfarça sua dor. Nem ela suportaria escutar os próprios gritos.
Sobre o que funciona
Falei aqui sobre as soluções milagrosas, tipo emplastro Brás Cubas que se oferecem por aí e que eu inclusive já tentei, porque a pessoa com depressão crônica de nível gravíssimo é uma pessoa desesperada. Quando vem alguém do nada oferecendo um emplastro qualquer, isso me irrita e me adoece muito.
Mas tem coisas que comprovadamente funcionam, e daí o irritante são outras pessoas não considerarem que tenho depressão há 22 anos e, portanto, talvez eu saiba do óbvio.
Vamos ao óbvio:
– Atividade física é muito bom, sabia?
Claro que sabia. Inclusive acho que minha primeira depressão veio aos 28 anos e não aos 18 porque eu era bailarina. Quando eu deprimi, tinha parado de dançar há um tempinho. Mas existem outros fatores. É preciso medicar o doente para que ele possa levantar da cama e fazer alguma atividade. Remédios são necessários, antes de mais nada para que a pessoa doente possa fazer o recomendado.
– Já pensou em fazer terapia?
Claro que sim, né? Eu comecei a fazer terapia aos 7 anos, ludoterapia, e foi ótimo. Depois fiz psicanálise aos 13. Não lembro quantos anos fiquei, mas pelo menos 2. Quando tive meu primeiro episódio, aos 28, fui fazer análise com um analista sensacional e fiquei com ele por 10 anos. E foi um processo muito corajoso de tentativa de me restaurar. Nas palavras do meu analista, a paciente mais corajosa que ele já teve. Eu.
Mas, de novo, antes é necessária a medicação ou o paciente não consegue ir. Ou não consegue aproveitar o encontro (quando estou muito ruim, simplesmente não entendo ou esqueço imediatamente o que falam comigo).
Então vamos lá:
Atividade física é necessária em todos os aspectos da vida e pode sim ser fundamental na superação de um episódio depressivo. Mas não é cura; atletas também deprimem.
Terapia é necessária em todos os aspectos da vida e pode sim ser fundamental na superação de um episódio depressivo. Mas não é cura, é perfeitamente possível o paciente deprimir de novo, como eu.
Remédios são necessários antes de qualquer outra coisa e podem ajudar a superar um episódio depressivo. Mas também não curam. Todos os medicamentos que existem atuam na remissão dos sintomas. Ainda não há cura para a depressão. Por isso sigo escrevendo.
O que perde uma pessoa com depressão grave?
O emprego (a gente não tem saúde pra enfrentar 8h por dia, a gente perde a memória, foco, capacidade de organização e uma boa dose da nossa capacidade cognitiva em geral Então, demissão).
A carreira. Se você passa a maior parte do seu tempo nadando pra não afundar ou afundando, não há como construir uma carreira sólida ao longo da vida. Impossível.
Amizades (de tanto os amigos nos chamarem pra sair, vão aos poucos desistindo. Não os culpo, mas entristeço).
Família (tem gente que não consegue lidar com tanta pulsão de morte, então, ou entram em negação e viram o agressor que diz “levanta e anda”, ou deduzem que você tem graves problemas psicológicos, “é doido, coitado”, e se afastam).
Eu já disse que a pessoa deprimida perde boa parte da capacidade cognitiva?
Também tem os encontros maravilhosos com amigues que a gente perde.
Nos últimos meses eu perdi uns cinco, todos importantes.
Duas consultas e um exame, tudo urgente
Um monte de eventos legais
A capacidade de ler
A autoestima
Considerações finais: o sofrimento ensina?
Tem aquilo de dizer que o sofrimento ensina. Uma ova! Estou há 22 anos nadando incansavelmente contra a corrente – a alternativa a isso seria largar o corpo e seguir o fluxo que leva invariavelmente à morte. Sabe o que eu aprendi? Que sou mais frágil do que pensava. Ganhei um shot de humildade e foi só. Eu nem precisava da depressão pra aprender isso, bastava passar dos 25 ou 30 anos, ou entrar no mercado de trabalho ou ter um casamento fodido etc. E como eu passei por tudo isso, não precisei da depressão para aprender absolutamente nada. Venho suportando um sofrimento agudo, morrendo e voltando a toda hora, sempre cansada de tanto nadar pra não sucumbir. A depressão não é boa em nenhum aspecto. Nenhum.
Assim, sempre esgotada do esforço que me manter viva exige, não desenvolvi minha carreira de professora – e eu era uma professora das boas, das muito talentosas. Mas logo não tive mais energia para suportar o ambiente escolar. O mesmo com minha carreira acadêmica, eu era muito talentosa, mas logo não tive mais energia para suportar o ambiente acadêmico.
O único aspecto da minha vida que não está arruinado por essa doença é a escrita literária. Ela é uma tábua de salvação que me permite tomar um fôlego enquanto escrevo. Isso é bom. Mas depois volta o exercício diário e exaustivo de nadar e nadar, sem nunca sair do lugar.
Sejam gentis com a pessoa deprimida. Não a cobrem como se ela fosse normal. E, mais importante de tudo, informem-se. Vocês podem estar fazendo muito mal a alguém que amam.
*Helena Tabatchnik é escritora. Autora, entre outros livros de Tudo que eu pensei mas não falei na noite passada (Hedra). [https://amzn.to/4griBRa]
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