Cabe todo mundo na democracia?

Imagem: Gül Işık
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Por SANDRA BITENCOURT*

A expulsão do bizarro e do criminoso da democracia se dá pela resistência e organização do humanismo, pela lisura e pela boa aplicação da lei

Edson tinha 4 anos e a Janaina 9. Eles foram levados para assistir os pais Amelinha Teles e César Teles sendo brutalmente torturados. O jovem casal foi incapaz de “contar” o que os torturadores desejavam ouvir, mesmo submetidos ao desespero de saber do terror dos filhos ao verem os pais tão machucados. Uma infância assassinada sem piedade.

Essa história sombria deu origem, em 2008, à primeira condenação que confirmou como torturador o chefe do Doi-Codi e herói do Bolsonaro coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Ustra comandou com crueldade e sadismo torturas em centenas de pessoas. A Comissão da Verdade contabilizou 434 mortes e desaparecimentos no país.

Um candidato à vereador em Porto Alegre convenceu 2.669 almas a se inspirarem na crueldade mais abjeta. Primo distante do primeiro torturador condenado no Brasil, o tenente-coronel do Exército Marcelo Ustra da Silva Soares conseguiu se eleger, com apoio do Bolsonaro e na carona de duas votações expressivas do Partido Liberal. Usou o slogan “Pra cima deles” e se mostrou orgulhoso do torturador, o pavor de Dilma, conforme homenagem de Jair Bolsonaro em pleno Congresso nacional.

Pra cima deles, vindo de um elogio a um torturador, significa o que mesmo? Isso cabe na democracia? Para meu estarrecimento, alguém (prefiro não mencionar o nome) me disse que havia um equilíbrio, já que duas travestis haviam sido eleitas para a Câmara de Porto Alegre. Achei extremamente curioso o argumento que iguala um adepto da tortura criminosa do estado a uma pessoa com orientação sexual distinta.

É a isso que se referem quando nos ensinam que estamos num regime de polarização? De um lado o elogio à violência e do outro um pouco de voz em que padece dela? O que este pleito nos ensina? Qual manchete teríamos que privilegiar?

Para além da batida ideia de festa da democracia, sobretudo porque nessa festa cada vez mais os donos da cidade, que pagam a banda, definem a música. Tem ainda os que mentem, enganam como método, deturpando o processo. Mas, vá lá. O que queremos alcançar com a defesa democrática? Quais os princípios básicos que precisamos mirar, sobretudo, neste momento de stress democrático, de esgarçamento de limites, de sintomas violentos diante da crise de acumulação capitalista? De tal modo perigoso que guerras nucleares e extinção do planeta estão no horizonte.

A igualdade é um princípio básico das democracias. E o que seria isso? A igualdade tem diversas manifestações que incluem aquelas contempladas nas leis e aquelas que queremos ver na prática e no dia a dia. A garantia que todas as pessoas possam gozar dos mesmos direitos perante a lei, sem qualquer exceção, deve se somar à prática de incluir a grande diversidade de seres humanos que fazem parte da sociedade e que as suas realidades particulares sejam tidas em conta.

Podemos chamar de igualdade estática, contemplada nas leis, que nem sempre leva em conta individualidades, gerando injustiças. E igualdade dinâmica aquela que leva em consideração as necessidades específicas de vários grupos sociais e adapta essa igualdade para transformá-la em um método de equidade. Pode ser que a eleição de um sujeito adorador da tara da tortura seja legal, estivesse em dia com as exigências formais para uma candidatura. Mas na igualdade dinâmica, gera injustiça e repulsa.

Eu, particularmente me envergonho de pertencer a uma comunidade que vota na expressão mais baixa da conduta humana. De todo modo, é importante (e não equilibrado) ter a representação da Natasha e da Atena, PT e PSOL, respectivamente, considerando que se trata de grupos LGBTQI+ vulneráveis e oprimidos por violência extrema.

Estamos longe, miseravelmente distantes, contudo, de uma igualdade que assegure e reconheça direitos a todos. E esse vazio é imenso. A distância entre os bairros elegantes e a periferia pobre, aquela que mais padeceu com a lama e o esgoto nas cheias, é inaceitável. Vivemos numa cidade ambientalmente falida, que não tem sequer condições de medir a qualidade do ar ou réguas atualizadas para medir o avanço das águas.

Que tem suas árvores devastadas em benefício da especulação imobiliária, uma cidade cujo transporte coletivo diminui em conforto e abrangência, a educação se situa na vergonhosa posição de penúltimo lugar, as filas de atendimento em saúde pública são o único indicador que cresceu vertiginosamente.

E os exemplos não cessam. O jornalismo na cidade, contudo, opera numa falsa simetria. Lhe serve a aritmética para justificar sua inanição crítica em defesa da cidadania: alegam tempos iguais e argumentos dos dois “lados”. E assim vamos assistindo uma hegemonia extremista e segregadora, com a força da grana que define nossas feições tão medíocres.

Respondendo à pergunta do título: não, não cabe todo mundo. Mas a expulsão do bizarro e do criminoso se dá pela resistência e organização do humanismo, pela lisura e pela boa aplicação da lei. Essa é a beleza democrática. Em outros sistemas, a eliminação se faz com pais agonizantes diante dos olhos aterrorizados dos filhos.

Este é o tempo de mais uma vez reunir forças, chamar os progressistas, conversar com os decentes. É cansativo, mas é necessário.

De todas as imagens inspiradoras que apreendi nestes dias de campanha, a que me marcou foi a de uma escadaria. Na Rua Santa Maria, no Murialdo, Zona Leste da cidade. Tarso Genro me mostrou a obra que mais orgulhou sua gestão naquela Porto Alegre radiante, farol da participação, da tolerância e de um novo mundo possível. A escadaria uniu a cidade formal e a informal, ofereceu jardins e dignidade e parece um sonho feito em obra de engenharia criativa para superar o problema de drenagem e erguer o projeto mais generoso que tivemos por aqui.

Espero realmente que tenhamos uma engenharia política capaz de ganhar degraus sólidos na democracia e na igualdade, onde crianças tenham creche e escola e não mais sessões de terror.

*Sandra Bitencourt é jornalista, doutora em comunicação e informação pela UFRGS, diretora de comunicação do Instituto Novos Paradigmas (INP).


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