Por BRÁULIO MARQUES RODRIGUES*
O grande trunfo do tecnofeudalismo na captura do poder passa pela própria ressignificação do afeto e sua equivalência ao poder
No livro Everything was forever, until it was no more (2006), o antropólogo Alexei Yurchak explora o colapso da União Soviética, um evento aparentemente inevitável, mas também inesperado. Por meio de uma descrição do clima político e cultural que envolvia o regime, Alexei Yurchak aponta uma sensação de eternidade que permeava o contexto vital soviético e criou uma ilusão de permanência, mesmo quando as estruturas que sustentavam essa realidade já estavam em franco desmantelamento no período da administração de Mikhail Gorbachev.
Os anos 1980, em especial, em seus últimos anos, apareciam como um tempo de grandes esperanças. De repente, expressões artísticas, como, por exemplo, a apresentação da banda Kino no Leningrad Rock Club, demonstraram como a crítica à política tornara-se legal. Tudo parecia caminhar para um capitalismo de Estado, mas as contradições entre os anseios liberalizantes da Perestroika e da Glasnost e os interesses oligárquicos mais uma vez foram vencidas pelos últimos.
Essa narrativa sobre o cancelamento do futuro — a ideia de que o progresso linear e garantido é apenas uma miragem — ressoa no contexto contemporâneo do Oeste, onde a democracia liberal, em franco declínio, se esconde, segundo Yanis Varoufakis, sob a sombra de um novo tipo de ordem social emergente: o tecnofeudalismo. A comparação entre o momento atual de desmonte do Estado de bem-estar social e a cena icônica do filme Adeus, Lenin! (2003), dirigido por Wolfgang Becker, oferece uma analogia que acredito ser ilustrativa: ilusões coletivas e individuais podem mascarar transformações profundas na estrutura do social.
No filme, Alex Kerner, o protagonista, elabora um engenhoso plano para proteger sua mãe, Christiane, de um colapso emocional ao fingir que a Alemanha Oriental (RDA) ainda existe, mesmo após a queda do Muro de Berlim e a reunificação alemã. Essa metáfora cinematográfica ressoa a forma como vivemos hoje, em meio ao esfacelamento das promessas modernas de segurança, igualdade e progresso de um Estado de bem-estar social (Welfare State) reduzido a mero mediador entre os interesses do mercado rentista e a produção de riqueza.
No contexto do filme, o ato de ludibriar Christiane não é apenas uma questão de amor filial, mas também uma tentativa de preservar um mundo que já não existe mais. Uma estratégia midiática que Alexei Yurchak descreve como “hipernormalização”. A RDA, apesar de autocrática e burocratizada, representava para o cidadão engajado um conjunto de valores — solidariedade e proteção social — que eram parte de sua identidade pessoal e política.
Quando Alex recria esse universo fictício dentro do apartamento da mãe, ele está, de certa forma, resistindo à inevitabilidade da mudança histórica, tentando estender artificialmente a vida de um sistema que já havia sido substituído por outro completamente diferente.
De maneira semelhante, o fim do Estado de bem-estar social nos dias atuais pode ser visto como uma transição silenciosa, e por vezes até invisibilizada, muitas vezes encoberta por narrativas que, usando o aparato político, minimizam ou distorcem a realidade. Durante grande parte do século XX, especialmente no pós-Segunda Guerra Mundial, o Estado de bem-estar social foi apresentado como um contrato social duradouro: educação gratuita, saúde pública acessível, previdência robusta e políticas redistributivas eram promessas que garantiam dignidade e mobilidade social para milhões de pessoas. Contudo, com o avanço do neoliberalismo, essas garantias parecem esvanecer.
Tudo que é líquido se vaporiza no ar
Assim como Christiane, que se agarra à ideia de uma RDA idealizada enquanto o mundo ao seu redor muda radicalmente, muitos de nós continuamos a acreditar na permanência dessas conquistas sociais, mesmo quando elas estão sendo corroídas sob nossos olhos. O fenômeno é alimentado por uma combinação de negação coletiva, desinformação e a manutenção de aparências na organização popular.
Governos e elites econômicas frequentemente utilizam discursos que sugerem que o Estado de bem-estar social ainda existe, enquanto implementam cortes orçamentários, privatizações e políticas de austeridade que o tornam cada vez mais inacessível. Por exemplo, programas sociais que antes eram universais agora são apresentados como “benefícios condicionais”, disponíveis apenas para aqueles que se encaixam em critérios restritos. A educação pública, outrora vista como um direito fundamental, enfrenta sucessivos ataques, com redução de verbas e precarização dos professores.
Da mesma forma, sistemas de saúde pública sofrem com a falta de investimentos, levando à deterioração da qualidade dos serviços e ao aumento das desigualdades no acesso. Tudo isso ocorre em um contexto onde os responsáveis pelas mudanças insistem que “nada está realmente mudando” – exatamente como Alex tenta convencer sua mãe de que a RDA ainda existe.
Os protestos de professores e povos indígenas, ocorridos recentemente no estado do Pará, com a ocupação do prédio da Secretaria de Estado de Educação (Seduc) por estudantes e professores é um exemplo de como a encruzilhada civilizatória afeta, ainda mais sensivelmente, regiões periféricas como a Amazônia.
A mobilização, motivada pela falta de investimento na educação pública, cortes orçamentários e a deterioração das condições de ensino, mostra, claramente como o tecnofeudalismo opera: enquanto as elites, políticas e econômicas, acumulam recursos e consolidam seu domínio sobre setores estratégicos da economia, serviços essenciais como a educação são sacrificados em prol da chamada responsabilidade fiscal, deixando assim populações inteiras sem perspectivas de ascensão social.
O futuro é dos trilionários
O contrato firmado entre o governo do Pará e a Starlink, subsidiária da SpaceX de Elon Musk, para fornecer acesso à internet via satélite como solução para a educação remota em áreas rurais e desassistidas é uma contemporização de como o tecnofeudalismo se manifesta na prática, corroborando a análise sobre o fim do Estado de bem-estar social.
Esse caso ilustra não apenas a substituição de políticas públicas universais por soluções tecnológicas privatizadas, mas também a erosão dos pilares tradicionais do contrato social moderno — escolas presenciais, professores qualificados e infraestrutura pública — em favor de um modelo que prioriza a lógica do mercado e da dependência tecnológica.
Essas manifestações revelam também algo ainda mais crucial: o tecnofeudalismo não é apenas um rearranjo econômico, mas também uma reconfiguração simbólica das relações de poder. Ele reflete uma lógica feudal, na qual pequenos grupos detêm controle quase absoluto sobre recursos, tecnologia e informação, para não dizer do próprio sentido de verdade, enquanto as maiorias são reduzidas à condição de súditos digitais, dependentes de plataformas e algoritmos que ditam o ritmo de suas vidas. Nesse cenário, o futuro prometido pelas narrativas modernizantes do século XX parece ter sido cancelado, dando lugar a uma realidade fragmentada e absurdamente desigual.
A proposta de utilizar a tecnologia da Starlink para oferecer aulas remotas pode parecer inovadora à primeira vista, especialmente em um estado como o Pará, onde vastas regiões enfrentam sérios desafios de conectividade e acesso à educação. No entanto, ao adotar essa abordagem, o governo está, na verdade, transferindo responsabilidades fundamentais do Estado – garantir educação de qualidade para todos – para uma corporação privada global.
A narrativa de que a tecnologia pode resolver problemas estruturais de exclusão social mascara a ausência de investimentos em infraestrutura educacional básica, como construção de escolas, contratação de professores e formação continuada.
Essa estratégia reflete o que o filósofo italiano Franco Berardi chama de “solução mágica”: a ideia de que a tecnologia pode remediar problemas sociais sem questionar as causas subjacentes dessas desigualdades. Ao promover a educação remota como alternativa às escolas presenciais, o governo do Pará não está apenas abandonando sua obrigação constitucional de oferecer educação pública de qualidade; ele está também perpetuando uma visão neoliberal que reduz o espaço público a um shopping, mediado por plataformas digitais e algoritmos, em vez de um direito humano fundamental gerido e tutelado em praça pública pela cidadania.
Um prometeu desencantado para uma vida cafetinada
Assim como Alexei Yurchak descreveu o paradoxo soviético de “tudo era para sempre, até que não era mais”, hoje testemunhamos uma versão atualizada dessa mesma ambiguidade. Vivemos em um mundo que insiste em manter aparências de normalidade, mesmo quando as bases de nossa convivência coletiva estão sendo corroídas. O tecnofeudalismo não é apenas uma ameaça; ele já está aqui, moldando nossas instituições, nossas lutas e nossas esperanças. Lideranças políticas e os novos senhores feudais do Vale do Silício reúnem-se em um pacto tal como os senhores feudais e os monarcas absolutistas de outrora.
O direito divino invocado é o da fortuna ilimitada aos mercadores da técnica. Como bem posto por Marilena Chauí, as telas são instrumentos de servidão. Por meio delas servimos aos ideais de como devemos ser, viver, trabalhar, amar e morrer. O outro, uma vez da privação do face a face, foi totalmente inviabilizado.
As redes sociais tornaram-se um auditório virtual para o mero entretenimento dos seus donos, que vêm discípulos e partidários defendendo furiosamente a legitimidade de suas cifras. Mais do que isso, vivemos em tempo de erosão do humano e dos afetos. O ser e a identidade humana foram despojadas do seu conteúdo sensível de modo que o seu trabalho, e principalmente, a sua renda, determinam quem você é e para quê você serve.
Pode-se dizer que o grande trunfo do tecnofeudalismo na captura do poder passa pela própria ressignificação do afeto e sua equivalência ao poder. Enquanto bilionários são idolatrados, políticos vendem secretarias ao grande capital, playboys passeiam de Porsche enquanto cometem crimes, influenciadores usam plataformas para patrocinar golpes em massa e a família tornara-se apenas um contrato para a estabilidade financeira.
Em suma, como diz Suely Rolnik, a vida é cafetinada e a Terra sofre: devastação e poluição destroem nossas florestas e rios, apagam o horizonte. Resta saber se teremos alguma paisagem e conseguiremos existir até que não sobre nada mais do que dinheiro.
*Bráulio Marques Rodrigues é doutor em direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Referências
BERARDI, Franco. Depois do futuro. São Paulo: Ubu, 2019.
ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 Edições, 2018.
VAROUFAKIS, Yanis. Technofeudalism: what killed capitalism. Nova Jersey: Melville House, 2024.
YURCHAK, Alexei. Everything Was Forever, Until It Was No More: The Last Soviet Generation. Princeton: Princeton University Press, 2006.
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