Chile – rompendo os diques

Gabriela Pinilla, Still de Bairro Policarpa, Acrílico sobre papel, 20 X 25 centímetros, 2011, Bogotá Colombia
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Por GILBERTO LOPES*

De Salvador Allende até a atual Constituinte

A origem de todas as coisas

Caía a noite daquele 4 de setembro de 1970. Parece distante, já faz mais de 50 anos. Fazia um friozinho, mas é difícil lembrar. Também não me lembro se da Alameda era possível vê-lo enquanto falava. Certamente sim. Eu o ouvia perfeitamente. Na verdade, sigo ouvindo-o…

“Vão para casa. Peço a vocês que voltem para suas casas com a alegria saudável da vitória limpa alcançada. Esta noite, quando acariciarem seus filhos, quando procurarem o descanso, pensem no duro amanhã que teremos pela frente…” Penso que pesava sobre nós, principalmente, um sentimento de incredulidade, um certo estupor. Salvador Allende via mais claramente: “pensem no duro amanhã que teremos pela frente…”

Sua vitória acabava de ser confirmada, e foi apertada: Unidade Popular, 1.075.616 votos (36,63%). O “independente” Jorge Alessandri, conservador, 1.036.278 (35,29%). Radomiro Tomic, democrata-cristão, 824.849 (28,08%). Um triunfo que deveria ser ratificado pelo congresso, com a democracia-cristã como fiel da balança. Numa tentativa de criar uma atmosfera irrespirável, a direita sequestrou e assassinou o comandante em chefe do exército, general René Schneider. Mais tarde assassinaria outro: o general Carlos Prats, a quem Pinochet sucedeu no comando. Seu velho compadre, que mandou matar em Buenos Aires (onde Prats tinha procurado refúgio após o golpe), juntamente com sua esposa, colocando uma bomba debaixo de seu carro. E a ditadura foi instalando-se. Mas antes disso, tinham tentado impedir a eleição de Allende no Congresso.

Os memorandos da multinacional ITT, de setembro e outubro de 1970, conhecidos meses depois, revelavam a estratégia: “Neste momento, parece difícil derrotar Allende no Congresso. O candidato democrata-cristão derrotado, Radomiro Tomic, ainda apoia Allende e pode levar consigo um setor importante do voto do PDC. “Apesar do pessimismo, os esforços continuam para que Frei ou os militares ajam para deter Allende. Também continuam os esforços para levar a extrema esquerda a uma reação violenta que produziria o clima necessário para uma intervenção militar. “Embora suas possibilidades de sucesso sejam fracas, um bloqueio da ascensão ao poder de Allende através de um colapso econômico não deve ser descartado”.

O segundo homem da ITT em Washington, John Mac Cone, ex-diretor da CIA, discutiu o assunto com o então chefe da agência, Richard Helms. Mais tarde, a decisão de derrubar Allende foi tomada pelo próprio presidente Richard Nixon, por sugestão de seu então conselheiro de segurança e depois secretário de estado, Henry Kissinger. Os documentos da ITT estão disponíveis para qualquer pessoa que os queira consultar. “Pensem no duro amanhã que teremos pela frente…”, Allende já tinha dito naquela mesma noite. “Triunfamos para derrotar definitivamente a exploração imperialista, para acabar com os monopólios, para levar a cabo uma reforma agrária séria e profunda, para controlar o comércio importador e exportador, para nacionalizar, enfim, o crédito, pilares estes que tornarão viável o progresso do Chile, criando o capital social que impulsionará nosso desenvolvimento”, disse ele naquela noite.

“Nesta noite” – acrescentou – “que pertence à história”, expressou seu “reconhecimento emocionado aos homens e mulheres, aos militantes dos partidos populares e aos integrantes das forças sociais que tornaram possível esta vitória que tem projeções para além das fronteiras da própria pátria”. “Foram o homem anônimo e a mulher ignorada do Chile que tornaram possível este fato social transcendental. Milhares e milhares de chilenos semearam sua dor e sua esperança nesta hora que ao povo pertence”. “Vão estudando os problemas e as soluções, porque teremos que pôr o país em marcha rapidamente”, disse ele aos comitês de empresas, de fábricas, de hospitais, dos conselhos de bairro e nos bairros e populações proletárias. E acrescentou: “o Chile abre um caminho que outros povos da América e do mundo poderão seguir. A força vital da unidade romperá os diques das ditaduras. A América Latina e bem além da fronteira de nosso povo olham para o nosso amanhã”.

E começou o percurso

Durante três anos, os olhos do mundo olhavam para Santiago. O caminho começava. A chave para tudo era asfixiar a economia, como tinha proposto desde o início a ITT. Eram quatro pontos:

(1) Os bancos não devem renovar os créditos ou devem adiar sua renovação;

(2) As empresas norte-americanas devem arrastar os pés quando enviar dinheiro, fazer entregas, despachar peças de reposição, etc. …;

(3) As empresas chilenas de poupança e empréstimo têm problemas. Se forem pressionadas, terão que fechar suas portas, criando mais tensão;

(4) Devemos retirar toda ajuda técnica e não prometer qualquer assistência no futuro. As empresas que puderem devem fechar suas portas no Chile.

O resultado foi ficando evidente. A economia começou a falhar, a direita começou a articular-se melhor, o jornal El Mercurio, bem financiado por Washington, organizava as ideias. No final, tiveram mais força. Com o governo manietado, os militares voltaram-se para o golpe e a ignomínia começou. E ainda não terminou.

“Faremos o impossível para que Daniel Jadue não ganhe as eleições”, disse o senador Iván Moreira, da conservadora UDI [União Democrática Independente], poucos dias depois dos resultados da Constituinte, após o Partido Comunista (ao qual pertence Jadue) e a Frente Ampla formalizarem sua participação conjunta nas eleições primárias para definir a candidatura que levarão às eleições presidenciais de novembro. Jadue continua sendo um candidato com grandes possibilidades, o que assusta a direita. Prefeito da comuna Recoleta, foi reeleito com 64% dos votos. Atrás estava o candidato da UDI, com menos de 24%. Ainda mais à direita, os republicanos obtiveram 12%.

Um dia algo tem que acontecer

Terminava o segundo governo de Michelle Bachelet. Era novembro de 2017. Piñera espreitava novamente. Fui vê-lo em sua casa, na Providencia. “Em frente – disse-me apontando para a casa do vizinho –, comemoram o golpe, com bandeira e canção nacional. É um bairro de gente abastada. É o Distrito 10, um dos mais importantes do país, bastião tradicional da direita”. Mas, dessa vez, Vamos por Chile, o conglomerado que a representou nestas eleições, obteve 91.752 votos (21,6%). Apruebo Dignidad, agrupação de esquerda, recebeu 97.244 votos (22,9%). Fernando Atria, acadêmico, advogado constitucionalista, foi a primeira maioria: 52.443 votos (12,3%).

Mas esta história começou antes. O governo de Bachelet estava terminando. Sentamos com Atria na sala de sua casa e começamos a entrevista. “Há uma mudança de época na política chilena desde as manifestações de 2011. Essas manifestações, que não foram apenas  estudantis, produziram a impugnação do modelo neoliberal. Durante este governo, aprendemos qual é realmente o nosso problema: é uma forma política incapaz de produzir transformações significativas no país”, disse ele.

Atria analisou o que percebia então como uma característica da política chilena, de sua crise. A política, disse ele, “tornou-se indiferente à posição dos cidadãos, o que leva à sua deslegitimação”. “Esta política, neutralizada, não tem força para enfrentar o poder econômico. Só funciona quando responde aos interesses desse poder econômico”. E cita exemplos: “as Instituciones de Salud Previsional (isapres) foram condenadas durante dez anos pelas mudanças que fazem em seus planos de saúde. Todos sabem que, se apresentarem queixas perante os tribunais, estas alterações serão declaradas inconstitucionais. Mas, apesar disso, apenas 10% dos membros das isapres vão ao tribunal quando se sentem afetados. Os outros 90% não vão”. “A política está do lado do abusador, contra o cidadão”, diz ele. “Isto significa que a política é cada vez mais encarada com desconfiança, com desencanto. Estamos vendo uma forma política que está sendo deslegitimada. Algum dia algo tem que acontecer; não amanhã, talvez, mas algum dia. É o que estamos vivendo hoje no Chile. A forma política dos últimos 27 anos já alcançou sua data de vencimento”, disse Atria.

Como destacou o prefeito de Valparaíso, Jorge Sharp, também reeleito com uma confortável maioria, os resultados das eleições na região representam “a completa falência do sistema partidário tradicional da cidade”. Em Valparaíso, Rodrigo Mundaca foi eleito governador regional com 43,67% dos votos, enquanto que, em Viña del Mar, Macarena Ripamonti venceu a corrida pela prefeitura. Ambos fazem parte da Frente Ampla. Ou em Santiago, onde Karina Oliva, do pequeno partido Comunes, enfrentará no segundo turno das eleições para governador o democrata-cristão Claudio Orrego, de tradição conservadora. O governista Vamos por Chile ficou em quarto lugar. E o conservador Felipe Alessandri, que buscava a reeleição como prefeito da capital, ficou em segundo lugar, atrás da comunista Iraci Hassler.

O próprio presidente Piñera reconheceu, à sua maneira, o fracasso do governo: “Os cidadãos enviaram uma mensagem clara e forte ao governo e às forças políticas tradicionais. Não estamos devidamente sintonizados com os desejos dos cidadãos”. Sonhavam em ter pelo menos um terço da Assembleia, o “terço de bloqueio” que se estabeleceu, contra o qual nenhum artigo constituinte poderia ser aprovado. Mas com apenas 20,5%, ficaram muito distantes da possibilidade de bloqueio que sonhavam assegurar.

A solução para a crise política chilena teria que estar à altura do problema, disse Atria. E a única coisa que está à altura do problema, acrescentou ele, “é uma Assembleia Constituinte”. “Uma nova constituição é urgente para o país. Há possibilidade de convocação dessa Constituinte? Não! Mas o problema constitucional será resolvido, por bem ou por mal”.

Por mal

Foi resolvido por mal. Não existiam condições para convocar essa Constituinte. Faltavam dois anos para a irrupção de outubro de 2019. Todos ficaram surpresos com sua magnitude. Na velha Plaza Italia, na Alameda, na Providencia, havia milhões de pessoas. Uma irrupção que demoliu todas as resistências.

A consulta sobre a convocatória de uma Constituinte foi aprovada por mais de 70%. Foi decidido também que seria composta por representantes eleitos diretamente. A outra proposta era integrá-la de forma mista, com uma mistura de representantes eleitos e parlamentares em exercício.

Agora o caminho recomeça novamente. Colocar em marcha a Constituinte, mas também mirar nas eleições, sobretudo nas eleições presidenciais de novembro próximo. Talvez este não seja o calendário mais apropriado. Será inevitável que a campanha eleitoral seja inserida na Constituinte. Será contaminada.

Para as eleições constituintes, a direita governamental agrupou-se no Vamos por Chile, enquanto a oposição foi dividida numa lista em que se destacavam o PC e a FA, e outra, que agrupava os partidos da velha Concertación, principalmente o Partido Socialista, o Partido Democrata Cristão e o Partido pela Democracia (PPD), um conglomerado de posições difusas. A estes somaram-se dezenas de listas independentes, a “Lista do Povo”, que acabou conseguindo uma representação importante.

Mas a perspectiva eleitoral os divide novamente, como se tornou evidente na última quarta-feira, quando tiveram que apresentar as listas para as primárias, nas quais definirão seus candidatos presidenciais. O PC e a FA terão uma primária entre eles. Mas os partidos da antiga Concertación e os independentes não participarão destas primárias e é muito provável que, pelo menos no primeiro turno, tragam seus próprios candidatos.

Entretanto, a Constituinte terá que se organizar. Uma das primeiras batalhas é sobre as regras de funcionamento. Uma das apostas é conseguir a libertação dos presos políticos. Outra é abrir um espaço para a participação das pessoas, para que possam apresentar iniciativas constitucionais. “Transparência, publicidade, audiências públicas. Há aí uma primeira batalha importante”, disse a líder ambiental e ecofeminista Camila Zárate, candidata independente recém-eleita. “Temos que discutir também as grandes questões: eliminar as AFPs [Administradoras de Fundos de Pensão], a desprivatização da água. Penso que estes são os principais debates, mas também a reforma ou eliminação dos Carabineros do Chile, como será reorganizado o poder, os mecanismos de democracia direta, com referendos revogatórios. Vai haver vários pontos interessantes. Mas o cenário é favorável”, diz ela. “Queremos uma constituição feminista e uma constituição que proteja os animais. Queremos construir um estado plurinacional no país. Há um cenário muito promissor”.

Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor de Crisis política del mundo moderno (Uruk).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

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