Guerra na Ucrânia, ano IV

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Por DANIEL AARÃO REIS*

A política de potência, proposta Donald Trump, uma vez assumida por Vladimir Putin e Xi Jin Ping, recairá como pesadas bombas – simbólicas e reais – sobre os países do sul Global

O que muitos não esperavam aconteceu, a guerra na Ucrânia entrou no seu quarto ano de horrores e destruição. Como em todos aniversários, o momento sugere diagnósticos e prognósticos.

De acordo com o que já sustentei em outros textos, a guerra, como qualquer guerra, não começou no primeiro dia de combates: 24 de fevereiro de 2022. Ela foi suscitada por dois processos convergentes: de um lado, a marginalização da Rússia de uma esfera de segurança e prosperidade, integrando os Estados europeus e os EUA. De outro, o crescimento exponencial de um agressivo nacionalismo russo.

Examinemos o primeiro processo: uma esfera de segurança e prosperidade incluindo a Rússia era possível, foi prometida, mas apenas ensaiada nos anos 1990 e cedo abandonada pelos governos que se sucederam nos EUA e na maior parte dos Estados europeus.

Contra as advertências prudentes de personagens insuspeitos, como H. Kissinger e J. Matlock, último embaixador dos EUA na União Soviética, entre muitos outros, os EUA e seus aliados, contrariando acordos estabelecidos, aproveitando-se da atmosfera de desintegração cultural e política que reinava em Moscou desde a dissolução da União Soviética, em 1991, levaram a OTAN, revitalizada, às fronteiras da Rússia.

No mesmo movimento, incentivaram abertamente movimentos e tendências anti-russas nas sociedades da Europa Central e nas ex-repúblicas soviéticas, em particular nos estados bálticos, na Ucrânia e na Georgia. Estes propósitos alcançaram êxito, eis que grande parte da Europa Central e das ex-repúblicas soviéticas tinham horror da Rússia e dos russos e havia razões para isso. Entretanto, ao invés de apaziguar e integrar, os EUA e seus aliados preferiram jogar gasolina no fogo, explorando ressentimentos e antipatias viscerais. Assim, a Ucrânia, que poderia ser uma ponte entre a Europa e a Rússia, transformou-se um foco de conflitos que se radicalizavam.

O segundo processo efetuou-se desde fins dos anos 1990. Sob a liderança de Vladimir Putin, a Rússia conseguiu superar uma conjuntura desfavorável. Ressurgiu um Estado centralista, domando as tendências centrífugas. Beneficiando-se dos altos preços de suas principais matérias primas (gás e petróleo), Moscou retomou o protagonismo internacional. Ao mesmo tempo, deu-se livre curso ao crescimento de tendências nacionalistas radicais, extraindo força do ressentimento provocado pelas terras perdidas e pela catastrófica dissolução da União Soviética.

Em sua ambição de se perpetuar no poder, Vladimir Putin incentivou e virou campeão destas tendências, reprimiu sem piedade as oposições e se tornou um virtual ditador do país, convertendo as eleições em meros rituais de consagração.

O choque destes antagonismos produziu, afinal, a guerra, deflagrada, em termos bélicos, pela invasão das tropas russas em território ucraniano.

A invasão foi um fracasso histórico. A Rússia pretendia tomar toda a Ucrânia de assalto num curto prazo, mas foi surpreendida pela resistência dos ucranianos, contando com o apoio decisivo dos EUA e dos principais Estados europeus. A ofensiva foi detida, mas os ucranianos não conseguiram expulsar os russos dos territórios conquistados. A Criméia, invadida e incorporada desde 2014, permanece sob domínio de Moscou. Além disso, cerca de 20% do território ucraniano mantém-se até hoje sob controle russo.

Definido um relativo equilíbrio de forças, ao invés de procurar explorar as possibilidades de uma concertação, o governo democrata de então, liderado por Joe Biden, e seus aliados estimularam os ucranianos à guerra, alimentando propósitos irrealistas de desagregar o poder de Moscou, alguns pretendendo inclusive que o conflito deveria prosseguir até a derrubada e a prisão de Vladimir Putin. Dispunham-se a lutar…até o último soldado ucraniano. Apostavam também na eficácia de uma política severa de sanções, destinada a sufocar a Rússia, submetendo-a a uma derrota estratégica.

Não foi o que aconteceu.

Apoiada numa aliança “sem limites” com a China, contando com a neutralidade indiferente ou a simpatia ativa de importantes estados do chamado sul Global, a Rússia suportou o impacto das sanções, conteve tendências internas disruptivas, construiu uma economia de guerra, mantendo a pressão, por terra, sobre a Ucrânia. Com o domínio dos ares, destruiu e continua destruindo as infraestruturas básicas do país, obrigando uma parte considerável de suas populações ao exílio interno e externo.

Com o passar do tempo, o desgaste da guerra cobrou seu preço. A Rússia, com mais reservas demográficas e econômicas, suportou melhor o embate. Na Ucrânia, o impulso nacionalista foi decrescendo com as tremendas perdas impostas. Nos estados europeus e nos EUA a opinião pública, medida em pesquisas, desertava do apoio aos ucranianos.

Autorizadas por este contexto, surgiram as propostas do novo governo de Donald Trump. Trata-se de uma virada histórica, em contraste com as políticas defendidas pelo anterior governo. No plano mais geral, reapresenta de forma aberta e truculenta, à maneira do século XIX, um retorno à política de potência, baseada no uso e abuso da força bruta. Em termos mais específicos, tenta estabelecer uma cunha no eixo formado por Moscou e Pequim, retomando, em outros termos, o jogo triangular empreendido por Henry Kissinger no começo dos anos 1970. Na época, se tratava de isolar a URSS. Agora, a China. Se vai ou não alcançar seus objetivos é matéria de debate entre especialistas.

Supreenderam-se os que quiseram vendar os olhos, pois Donald Trump anunciou, em sua campanha eleitoral, tudo o que vem fazendo depois que se investiu como Presidente dos EUA desde janeiro passado.

A guerra, como sempre, suscitou polarizações extremadas. Os partidários da resistência ucraniana, desde o início do conflito, denunciam apenas a agressão russa, cegos ao contexto de marginalização de Moscou. Os partidários da Rússia sequer chamam a invasão russa pelo nome. Vladimir Putin preferiu um grosseiro eufemismo: “operação militar especial”. Ato contínuo, criminalizou, por lei, outras denominações para o processo. Alguns de seus acólitos têm ido mais longe: configuraram a invasão como uma “contraofensiva”.

Trata-se, antes e acima de tudo, de uma guerra suja. Sob o governo democrata, os EUA e os estados europeus a incentivaram e assistiram à destruição quase completa da Ucrânia. Agora, Donald Trump e os republicanos ensaiam abandoná-la à própria sorte, só interessados em seus recursos minerais. Do outro lado, como se disse, os nacionalistas russos anseiam pela recuperação dos territórios perdidos quando da dissolução da União Soviética. Propõem sem meios termos inclusive o recurso à arma atômica, se for o caso.

O triste é observar grande parte da intelectualidade de esquerda, inclusive no Brasil, tomar partido pela Rússia de Vladimir Putin, de forma aberta ou velada, sem sequer uma crítica à repressão e à ditadura russas. Não se importam com a catástrofe moral em curso, presente em todas as guerras. Nenhuma palavra sobre as chacinas e os traumas suportados por ucranianos e russos. Raciocinam como pretensos especialistas em geopolítica internacional, observando o cenário como jogadores de xadrez, do alto e de longe.

Não se dão conta, aparentemente, que a política de potência, proposta por Donald Trump, uma vez assumida por Vladimir Putin e Xi Jin Ping, recairá como pesadas bombas – simbólicas e reais – sobre os países do sul Global. Quando e se vier o tempo do arrependimento, já será tarde.

*Daniel Aarão Reis é professor titular de história contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor, entre outros livros, de A Revolução que mudou o mundo – Rússia, 1917 (Companhia das Letras). [https://amzn.to/3QBroUD]


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