Por RUBENS PINTO LYRA*
A crítica de Kautsty ao comunismo soviético
Aspectos econômicos e sociais: a natureza do modo de produção
A crítica kautskiana aos aspectos econômicos relativos à implantação do regime bolchevique (comunista) na antiga Rússia Tzarista busca seu fundamento em postulados axiais da teoria marxiana, relacionados com a transição para o socialismo. De acordo com Marx, esta só poderia se efetivar em um país onde o modo de produção capitalista já fosse dominante.
Portanto, onde o nível de desenvolvimento das forças produtivas pudesse garantir a existência de riquezas a serem repartidas com a população. Nesse diapasão, socialismo da penúria expressa uma contradição nos termos, um contra senso para quem defende uma concepção materialista da sociedade.
Com efeito, a teoria marxiana demonstra que as possibilidades de uma transição para o socialismo são materialmente determinadas: o modo de produção socialista teria que ser, necessariamente, fruto, na dinâmica evolutiva do capitalismo, das contradições entre o desenvolvimento crescente das forças produtivas, da capacidade destas de gerar riquezas, com relações de produção enrijecidas, limitadoras dessa potencialidade produtiva.
Ora, na Rússia soviética, o estágio atrasado de desenvolvimento está na base da escassez de operários e quadros qualificados para o impulsionar a produção. Sem estes, pouco adianta importar meios de produção avançados. Por outro lado, o baixíssimo nível de consumo, face à pobreza e à miséria generalizadas, conspira contra a produtividade dos trabalhadores. Tal situação está também associada à privação das liberdades que limita a capacidade de iniciativa dos que produzem, e consequentemente, o seu rendimento. (KAUTSKY, 1982:10-11).
Face tais limitações, Kautksy se empenha em demonstrar que a coletivização forçada do campo constitui uma “fuga para a frente” do regime. E que a indústria, criada ao preço de desperdícios e de sofrimento nunca vistos, se caracteriza pela fraca produtividade e pela má qualidade de seus produtos (1982:130-145).
Que modo de produção estaria então sendo construído pelos bolcheviques? Para Kautsky, o capitalismo de Estado, o qual “se limita a substituir os patrões privados – expropriados da propriedade de seu capital – por funcionários que, no essencial, conservam as antigas relações de produção, fundadas sobre o poder absoluto do diretor da empresa e da classe dominante no Estado” (1931: X).
Assim, na concepção leninista “a grande indústria exige uma unidade de vontade rigorosa, absoluta”, o que somente pode ser obtido pela “submissão da vontade de milhares de pessoas a de uma só” (LÊNIN:1968:659).
O entendimento de Kautsky, também sobre esta questão, é diametralmente oposto ao de Lênin. Para ele, sem democracia, a propriedade coletiva dos meios de produção não é senão uma ficção jurídica que dissimula a apropriação das forças produtivas pelos detentores do poder político: a burocracia de Estado. E propõe que, com o fim do regime bolchevique, as empresas socializadas sejam regidas por um conselho composto de representantes dos trabalhadores, dos consumidores e do Estado (BERGOUNIOUX E MANIN,1979;80).
Em conclusão, para Kautsky, “Um modo de produção socialista significa a organização da produção pela sociedade e exige auto-administração econômica por toda a massa do povo. A organização estatizada da economia pelo Estado ou por uma só camada do povo não é socialismo. Isso pressupõe numerosas organizações livres, tanto econômicas quanto políticas e a mais completa liberdade de associação. A organização socialista do trabalho não deve ser um militarismo” (KAUTSKY, 1979:34).
Regime jurídico-político
Kautsky, em suas obras, critica, com freqüência, o caráter antijurídico do regime bolchevique, encoberto por normas supostamente legais, que legitimam a arbitrariedade. A título de exemplo, cite-se aquela que permite aos eleitores organizar o procedimento eleitoral, a qual, em nome de um suposto “sentido de justiça das massas”, confere aos bolcheviques “a possibilidade de se desembaraçar de todo elemento inconveniente de oposição no próprio proletariado” (1979:53).
É assim que a ditadura bolchevista “ditadura de um partido, no interior do proletariado” vai assumindo os seus primeiros contornos, ainda em 1918, com a dissolução da Assembléia Constituinte, no dia 19 de janeiro, e com a expulsão dos mencheviques e de parte dos socialistas revolucionários do Comitê Executivo Central dos Sovietes, no dia 14 de junho do mesmo ano. Destarte, a repressão às outras tendências socialistas começa “bem antes da guerra civil; na realidade, ela começa com a própria tomada do poder’” (FAUSTO, 2001:42).
Por outro lado, na visão de Kautsky, a burocracia, comandada pelos bolcheviques, exerce o controle absoluto do Estado e, por tabela, dos meios de produção. Dessarte, ela se comporta como exploradora coletiva do proletariado e do campesinato. Trata-se de um de um regime político, entrelaçado, de forma indissociável, por elementos econômicos e (anti) jurídicos, por ele qualificado de despotismo burocrático de tipo oriental, que se mantém pela violência, ao arrepio da lei e dos direitos dos povos. Um despotismo sui generis porque se fundamenta no poder econômico e na tecnologia moderna. Para o teórico mais proeminente da Segunda Internacional, tal regime, sob Stalin, não é senão uma variante do fascismo: “O fascismo não é senão o equivalente do bolchevismo e Mussolini a imitação de Stalin” (l931:112).
Massimo Salvadori lembra que, na sua obra, intitulada Terrorismo e Comunismo, Kautsky afirma que a ditadura do Partido Bolchevique, só podendo manter-se através do terrorismo, termina por produzir um regime de privilegiados políticos e sociais: uma ‘nova classe de funcionários’, cuja vocação é o bonapartismo, ou seja, um “despotismo exercido por uma minoria armada sobre uma maioria inerme” (1982:337).
Com base nessas conclusões, o “Papa do marxismo” considera o regime bolchevique uma aberração histórica, ainda mais nociva ao proletariado do que o capitalismo. Neste, os trabalhadores tem liberdade de reivindicar e podem se organizar para mudar o sistema em vigor enquanto no comunismo soviético os trabalhadores sofrem, além da opressão econômica, a ditadura política. Assim, “o capitalismo industrial, de privado, transformou-se em capitalismo de Estado. Antes, o operário se apoiava, ora em um, ora em outro. Agora a burocracia do Estado e a do capital se fundiram. É esse o resultado da grande transformação socialista trazida pelo bolchevismo. Trata-se do despotismo mais opressivo que a Rússia jamais conheceu” (1982: 113).
Portanto, na opinião de Kautsky, o regime bolchevique realiza uma potenciação da burocracia que esmaga os trabalhadores em uma medida em que o capitalismo não é capaz de realizar.
Em síntese, Kautsky entende que “socialismo sem democracia não é digno de consideração. Por socialismo moderno não entendemos somente a organização coletiva da produção, mas, igualmente, a organização democrática da sociedade. Por conseguinte, consideramos que o socialismo está indissociavelmente ligado à democracia. Não há socialismo sem democracia” (1979:6).
*Rubens Pinto Lyra é Professor Emérito da UFPB e autor, entre outros livros, de La Gauche en France et la construction européenne (Paris, 1978) e Socialismo: impasses e perspectivas (org.) (Scritta).
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Referências
BOTTOMORE, Tom. Social-democracia. In: Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
FAUSTO, Ruy. A polêmica sobre o poder bolchevista. Revista Lua Nova, nº 53, p. 29-67. São Paulo, 2001.
FOA, Lisa. Bolchevismo. In: Bobio, Norberto. Dicionário de Política. Brasília: UNB, 1985.
KAUTSKY, Karl. A ditadura do proletariado. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979, p.1-90.
___________Le bolchevisme dans l’impasse. Paris: Presses Universitaires de France, 1982 (2ª edição). 162 p.
___________Terrorisme et communisme. Paris: Ed. Jacques Povolovsky,1919. QUINIOU, Yvon. Morte de Lênin, vida de Marx. In: LYRA, Rubens Pinto (org). Socialismo: impasses e perspectivas. São Paulo: Scritta, 1992. 203 p.
MARX, Karl e Engels, FriedrichManifiesto Comunista. São Paulo:Ed. Claridad,1967,213 p.
ALVADORI, Massimo. Kautsky entre a ortodoxia e o revisionismo. In: História do Marxismo. Vol. II. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1982. 338 p.