Discursos sobre a classe trabalhadora

Imagem: Alex Dos Santos
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Por JOSÉ MANUEL DE SACADURA ROCHA*

As notas de Max Horkheimer, do começo do século XX, sobre a classe trabalhadora, são ainda hoje repletas de consequências para os trabalhadores em suas lutas políticas

1.

Falamos aqui sobre a observância às condições da classe trabalhadora e os discursos que fazemos a ela. Entre 1926 e 1931 Max Horkheimer escreveu uma série de aforismas que foram coletados e editados agora no Brasil com o nome de Crepúsculo: Notas alemãs (1926-1931).[i]. Entre esses aforismos, consta à página 109 o aforismo “A importância da classe trabalhadora alemã”, que, destarte ter sido escrito noventa anos atrás, mantém absoluto vigor e atualidade, algo que só se explica pelo método do materialismo histórico que foi capaz de dar conta da situação da classe trabalhadora outrora, como de absoluta pertinência e importância para a luta de classes tanto teórica como prática nos dias atuais.

Tentaremos demonstrar essa pertinência e importância ímpares das ideias de Max Horkheimer contidas nestas notas para os contextos que envolvem modernamente os trabalhadores assalariados diante do dinamismo bastante distópico da sua existência no regime do capital. Nos move, principalmente, a dissociação das diferentes frações da classe trabalhadora – empregados, exército de reserva, lumpemproletariado – e como a partir delas se vê o movimento capitalista primar pela dispensação da força de trabalho, a partir da radical transformação da “composição orgânica do trabalho”, com consequências severas não só para a situação da classe trabalhadora como para o desfecho desesperado da superação do capitalismo.

Tal dinamismo nas sociedades mercadológicas instiga a uma leitura mais afinada e crítica dos discursos necessários da vanguarda progressista para dar conta da nova realidade do trabalho, automatismo e flexibilidade, e das aproximações devidamente circunstanciadas de comunicação da teoria marxiana no cotidiano dos trabalhadores e trabalhadoras do capitalismo de hoje.

Pensamos que, ainda que possa ser verdade algo de perda das categorias revolucionárias do marxismo nos discursos da esquerda, deve-se atentar para o fato que no mundo real as lutas de classes, para a massa de trabalhadores, mais ou menos organizados, se dão no meio de aparatos de dominação da classe hegemônica; mais precisamente, deve-se atentar para a adequação dessas categorias,[ii] por mais preciosas e fundamentais que sejam, à situação condicionante do capitalismo quanto à situação da classe trabalhadora e as frações assalariadas no espaço global da produção e circulação de mercadorias (forma mercadoria contemporânea).

Tratamos a classe trabalhadora como aquela que tem condições de produzir capital, como, portanto, a que a partir de seu trabalho produtivo, direta ou indiretamente, transforma materiais e dinheiro em capital. A classe trabalhadora é parte dos ativos reais enquanto força de trabalho que no processo de trabalho econômico realiza a um tempo o objetivo elementar da sobrevivência social enquanto produz riqueza ao capitalista pelo sobretrabalho ou mais-valor não pago.

A classe trabalhadora, neste sentido, não é apenas aquela que se opõe ao capital por interesses próprios, mas a que nesse processo luta pela emancipação de toda a humanidade em relação ao capitalismo e ao trabalho em si mesmo. O fundamento destas teses é o processo do trabalho tal como se desenvolve no capitalismo, não para o substituir por outro tipo de relação social para o trabalho, mas para a superação dele. Inicialmente, deve-se pensar que o trabalho para subsistência está circunscrito modernamente à dispensa dos trabalhadores, ampliando o tempo de trabalho social disponível, na base das inversões sempre constantes em capital fixo, máquinas e equipamentos.

Este foi o movimento que Max Horkheimer capturou no início do século XX, com fortes repercussões na consciência das frações da classe trabalhadora em suas lutas políticas. Neste caso, claramente, se exige a interpretação adequada das teorias da dialética materialista histórica, suas categorias elementares e abstratas, quanto mais são necessários o apoio e a orientação organizativa dos trabalhadores na atualidade.

2.

Max Horkheimer começa afirmando que na dinâmica do capitalismo o número de trabalhadores empregados diminui “proporcionalmente ao uso das máquinas”, em decorrência, a percentagem de empregados é cada vez menor. Isto modifica “as relações entre si” das camadas da classe proletária, bem como com os patrões. Mesmo o “emprego momentâneo”, como o “emprego permanente”, se tornam uma exceção; com isso “mais claramente se diferenciam a vida e a consciência” dos trabalhadores empregados daqueles que estão desempregados: “Com isso, a solidariedade de interesses dos proletários experimenta cada vez mais perdas”.

Max Horkheimer deixa claro que a classe trabalhadora é, na verdade, muitas classes trabalhadoras, ou que ela está separada em frações com situações bastante diferenciadas de venda da força de trabalho para o capitalista, o que resulta em um espectro amplo de consciência e de interesses em se opor aos patrões e à gerência dos capitais.

No início da industrialização era possível distinguir entre os que estavam empregados e o “exército de reserva”, e “em regra havia uma transição constante entre empregados e desempregados” (uma forma do capital regular os preços da mão de obra (salários) e manter os trabalhadores submissos pelo medo do desemprego). Se por um lado não se questionava a capacidade de trabalho dos trabalhadores, também estes não se distanciavam, pelo menos quanto aos aspectos relevantes de seus destinos como classe: “não apenas seu interesse na superação da dominação do capital era essencialmente o mesmo, mas também o era o engajamento nessa luta”.

No começo do século XX os empregados e o “exército de reserva” passam a constituir camadas do proletariado em condições bastante diversas: com o incremento das máquinas, cresce o “exército de reserva” que por sua vez também estava cindido entre aqueles que efetivamente podiam estar em condições de reaproveitamento da força de trabalho e os que não estavam aptos a trabalhar, seja pela desqualificação, seja pela situação de extrema penúria e exclusão social, o “lumpemproletariado” (MARX, 2011).[iii] Max Horkheimer considera o “lumpemproletariado” como “uma camada relativamente insignificante, na qual se recrutam os criminosos”, que agravou a cisão entre empregados e as demais frações da classe trabalhadora, principalmente porque o medo passa de estar desempregado temporariamente enquanto “exército de reserva”, para o medo de se tornar parte do “lumpemproletariado”.

Quando isto foi escrito ainda era possível, portanto, distinguir “exército de reserva” de “lumpemproletariado”, mas era clara a diminuição de trabalhadores empregados e o aumento dos trabalhadores já sem condições efetivas de voltarem a ocupar lugar entre os empregados devido ao alto incremento do capital fixo, que Marx chamou de trabalho morto, em detrimento do capital variável, que Marx chamou de trabalho vivo. Horkheimer diz que neste momento, a “classe experimenta em sua própria existência o lado negativo da ordem vigente, a miséria”.

Nestas condições a massa de operários e demais assalariados empregados “cujos salários e cujos anos de adesão a sindicatos e associações possibilitam certa segurança”, enfrentam o medo diante do “perigo de perdas enormes”, e passam a se constituírem como os empregados em oposição aos desempregados, estes que têm menos a perder, ou “àqueles que ainda hoje não têm nada a perder senão seus grilhões”.

Então, entre os que trabalham e os “que trabalham excepcionalmente ou nem isso”, isto é, os subempregados e desempregados de nosso tempo, existe uma distância tão grande quanto o “exército de reserva” e o “lumpemproletariado” do início da industrialização; isto significa, pois, que Horkheimer visualizava que não apenas os trabalhadores estão sempre destinados ao desemprego, como este desemprego se transforma mais e mais em “lumpemproletariado”, na medida em que os desempregados e subempregados dificilmente voltam a ocupar seus postos de trabalho em suas especialidades, mas logo se misturam aos ex-trabalhadores em condições de extrema miséria, ou seja, fora os que estiverem ainda em seus empregos, todas as outras camadas da classe trabalhadora estão fora do mundo do trabalho, subempregados, precarizados ou nos “trabalhos de merda” (GRAEBER, 2022).[iv]

Para a contemporaneidade existe como que uma “fusão” de diversas camadas de trabalhadores assalariados,[v] que devido à sua precariedade de trabalho ou à gradativa miserabilidade e desespero de sua existência, separam-se na consciência e no engajamento de lutas às frações de classe empregadas; Max Horkheimer falaria, então, que “trabalho e miséria se distanciam e são repartidos a portadores distintos”. Ainda que a exploração e a miséria dos trabalhadores continuem a ser a base do capitalismo, o tipo de trabalhador em atividade, diz o autor, “já não designa aquele que necessita com mais urgência de uma transformação”; por sua vez, o que unifica as camadas mais baixas do proletariado, dos desempregados, subempregados e precarizados é “o mal e o desassossego do próprio existente”.

Portanto, os que agora têm interesse na revolução são as frações mais desamparadas e desesperadas da classe trabalhadora, precisamente aquelas que têm menos preparo e capacidade de formação e organização, consciência de classe e credibilidade, longe daqueles que por estarem ainda empregados estão integrados ao funcionamento do capitalismo. Esse espectro apresenta-se cada vez mais bipolar e dividido: ele vai da extrema penúria que constitui as massas de ex-assalariados ou que nunca foram integrados ao trabalho, até os que estando integrados e cooptados não se arriscam em engrossar as massas disformes e desorganizadas daquele grupo de desempregados, precarizados e pauperizados.

Os mais jovens sempre se constituíram como uma camada da sociedade em que se depositava muitas esperanças que fossem os intelectuais orgânicos; contudo, Max Horkheimer afirma que lhes falta, “mesmo com toda a fé, a compreensão da teoria”.

3.

Sendo assim, estamos diante de realidades em que o interesse pelo socialismo e as características humanas oscilam de forma tal que não há como interferir seguramente na consciência do operariado e das demais camadas subalternas de trabalhadores, o que condiciona, sobremaneira, as atividades revolucionárias da vanguarda e, fundamentalmente, os discursos e aproximações quanto aos processos de comunicação no campo da esquerda.

Se não compreendemos isso, e se não sobrepesamos nossas deficiências de linguagem e narrativas teóricas ao socialismo, tendo em conta que o processo capitalista trás essa separação entre o conjunto de trabalhadores excluídos e marginalizados e os que estão ainda integrados à produção capitalista, serão pouco eficientes ou até vazios e desestimulantes nossos esforços teóricos e práticos, sejam quais forem as qualidades do discurso e da teoria na prática.

Na época do escrito destas notas, na Alemanha de Weimar do início do século XX, as divisões entre os trabalhadores, mormente, entre os “integrados” e os “desempregados/desassistidos”, fizeram com que, a partir de sua consciência teórica e interesses imediatos, se espalhassem entre os partidos trabalhistas (Partido Social-democrata da Alemanha (SPD)), “e, além disso, por meio da flutuação de grandes camadas de desempregados entre o Partido Comunista e o Partido Nacional-socialista”.

É relevante que o filósofo e sociólogo alemão chame a atenção para esta “flutuação” dos desempregados e possivelmente para as camadas mais baixas dos trabalhadores, que se incluem naquilo que Hannah Arendt chamou de “ralé”,[vi] em direção ao nazismo, porquanto isto parece ser exatamente o que revela a penetração da extrema-direita atual entre essas mesmas populações, o que agrava ainda mais a práxis revolucionária em nossos dias, não tanto pela falta de elementos e categorias marxistas, mas porque esta realidade de insegurança, medo e pauperização leva a que as frações mais ameaçadas e desprotegidas da classe trabalhadora tenham interesse pelos movimentos de radicalização à direita e suas falsas promessas.

Max Horkheimer afirma que a repartição oriunda do processo econômico capitalista “condena os trabalhadores à impotência fática”, mas os trabalhadores precarizados, subempregados, desempregados – dadas as circunstâncias de medo e vulnerabilidade –, e camadas significativas dos empregados/ integrados, que se movem em direção à extrema direita (fascismo; nazismo), não nos permite afirmar que os trabalhadores são levados à “impotência” –  este “detalhe” pode ser significativo quando definimos o público ao qual dirigimos a teoria e os discursos na prática: os trabalhadores escolhem, inclusive participar dos planos de existência da burguesia e da extrema direita.

Nosso autor é didático e bastante atual quando afirma: “Com o volume de material elaborado pela teoria, os princípios não assumem uma forma adequada à atualidade, mas são retidos de modo não dialético. A práxis política também não logra, então, aproveitar todas as possibilidades para o fortalecimento das posições políticas e se esgota de modos variados nos comandos vãos e na repreensão moral dos desobedientes e dos desleais”. Pode-se perguntar: é o caso, pois, de falta de categorias nas formas teóricas e discursivas?

Sobre o “reformismo” é preciso que se diga que ele também faz parte do processo econômico do capitalismo; quando pensamos pela dialética materialista, vemos que seu desenvolvimento tecnológico altera a composição do capital na produção e circulação em detrimento do emprego de força de trabalho, e assim, se “rebaixa” não apenas a empregabilidade da classe trabalhadora, mas igualmente os discursos e as práticas de suas lideranças na busca por garantias de trabalho e alguns direitos. Este tipo de “luta defensiva” é concretamente dado pela organicidade do mundo de trabalho: os discursos “fleumáticos”, as palavras de ordem “rebaixadas” à insignificância diante do fato da iminência do desemprego e da miséria, “atendem” à realidade desesperadora da classe trabalhadora contra a qual as vanguardas e as lideranças pouco ou nada podem fazer.

Aquilo que se chama de “reformismo real” na teoria revolucionária é, boa parte das vezes, alimentado pelo dinamismo do capitalismo contra os trabalhadores assalariados e nem sempre se deve à perda de conteúdo ou categorias, mas, como Max Horkheimer diz, “a aversão à pura repetição dos princípios pode ter, nos domínios espirituais mais afastados – a sociologia e a filosofia -, também ainda uma importância justificada pela situação: ela se volta contra o que há de vão ali”.

Quando a realidade fática muda tão radical e desesperadoramente para a classe trabalhadora, é necessário verificar a teoria, o discurso e a prática em um percurso de “volta zero”.[vii] Quer isto dizer que o movimento operário está condenado ao reformismo? Não! Apenas ele está circunscrito em uma realidade do momento de intenso crescimento de capital fixo na produção e demais atividades necessárias e conexas com a reprodução do capital. Entretanto, muitas vezes, por não se equacionar antecipadamente a dinâmica do capital, só resta ao “reformismo profissional” negociar em piores condições possíveis com o capital.

Na maioria das vezes, de boa ou de má fé, se entende mal a dialética materialista, sem se atentar para os fenômenos subjacentes e inevitáveis dos sistemas mercadológicos financeiros. E então, “muitos buscam com todos os meios, inclusive abrindo mão da simples fidelidade, manter-se em seus postos; o medo de perder sua posição se torna cada vez mais o único motivo que explica suas ações”.

 O “reconhecimento dos fatos”, no entanto, para as massas de trabalhadores e trabalhadoras desempregados(as), subempregados(as), precarizados(as), e os mais abaixo, parece cair bem, e com isso acabam caindo na armadilha dos profetas, das filosofias que lhes parecem imparciais, e um bálsamo, quando apregoam o conformismo e “a fé vaga em um princípio transcendental ou religioso completamente indeterminado”.

Quando hoje os intelectuais falam das teorias que perderam “sua fé” na análise do concreto – denunciam o resultado pífio das alas progressistas que deixaram de lado os conteúdos e categorias que outrora fizeram tanto sentido e foram tão exitosas no movimento operário mundial, inviabilizando, assim, o enfrentamento dessas vãs filosofias –, falam exatamente o que Max Horkheimer denunciava como o pior reformismo: “No lugar da explicação causal, põe a procura de analogias; quando não rejeita totalmente os conceitos marxistas, formaliza-os e os acondiciona à academia”.

Max Horkheimer nos fala dessa “infeliz afeição pelo ‘concreto’”, no sentido em que é o fato da dispensação da mão de obra do trabalho, portanto, a ameaça permanente de perder-se o emprego que forja esse reformismo entre os intelectuais, o sindicalismo e os “esquematismos” das lideranças da classe trabalhadora. O problema não seria reivindicar emprego e melhores salários etc., mas ficar apenas nisso, quer dizer, “não algo que se organiza pela tomada consciente de posição na luta histórica, acima da qual eles (reformistas) acreditam antes pairar”.

Aqui, parece claro que, menos que levar em consideração o “concreto” das relações de trabalho e empregabilidade, deve-se atuar “pela tomada consciente de posição na luta histórica” dos trabalhadores. No entanto, o que seria essa “tomada consciente de posição na luta histórica” ao tempo em que a realidade fenomenal do capital está compelida à substituição da contratação da força de trabalho por investimento em tecnologia produtiva e serviços?

Sendo a práxis a falar em última instância da consciência nos modos de sobrevivência social, a forma pela qual os trabalhadores assalariados do capital necessitam de teoria para a prática de engajamento e enfrentamento do capital passa, gostemos ou não, por essa realidade, quer dizer, pelas práticas imanentes do desenvolvimento do capitalismo em que os trabalhadores estão inseridos. Tal fato não obriga o movimento operário e demais assalariados a se movimentarem levando em consideração tal realidade de intensificação de tecnociências na produção e nos serviços?

4.

Segundo Max Horkheimer, os intelectuais de esquerda se prendem “à literalidade do texto” e fazem a teoria materialista “um culto às pessoas”. E aqueles que estão integrados no processo de trabalho capitalista, conhecedores, portanto, do “mundo efetivo”, tornaram-se infiéis ao “marxismo”. Daí, sem a teoria do materialismo os fatos se tornam “signos cegos” ou “recaem no âmbito dos poderes ideológicos que dominam a vida espiritual”. Por parte dos intelectuais falta a prática e a analítica do “real” para preparar a revolução; e às camadas de trabalhadores empregados faltam os conhecimentos teóricos e mesmo o interesse para tal.

Sintomaticamente, nosso autor identifica, em seu tempo, as divergências da social-democracia com os comunistas: os da social-democracia, como consequência de aderirem incontinentes às circunstâncias e aos contextos, fazem reverência à objetividade ou pragmatismo político e incorrem no erro da arrogância: “humilham seus opositores ignorantes”. Por sua vez, diz Horkheimer, os comunistas “têm razões de menos”, e “frequentemente recorrem não a razões, mas apenas à autoridade”, baseados em sua “força moral” e “também com a força física”: reivindicam a verdade e desconsideram os pontos de vista individuais.[viii]. Diz lucidamente Max Horkheimer: “A superação dessa situação teórica depende tão pouco da mera boa vontade quanto a supressão da situação prática que a condiciona, a dissociação da classe trabalhadora”.

Para a dialética materialista, as diversas situações no processo econômico devem ser relevantes na análise dos momentos ou contextos em que se encontra a realização da vida social em seu devir histórico: “As próprias categorias nascem de uma experiência histórica real” (HARVEY, 2013. P. 566). Isto é absolutamente claro em Max Horkheimer. O momento-contexto fenomenal em que escreve Horkheimer sobre “a impotência da classe trabalhadora alemã”, no início do século passado, é reveladora de uma “mesma” necessidade do capital “que mantém grande parte da população afastada das vagas de trabalho desde seu nascimento e a condena a uma existência sem perspectivas”.

Só a partir desta realidade pode a teoria se desdobrar para acompanhar a situação e posição desconfortável dos trabalhadores(as). Nenhuma teoria pode ser viável fora da compreensão de seu tempo; ela é sempre mais uma possibilidade de “rumo” do que uma “trilha” consolidada.

É desesperador, compreensivelmente, que aquele que “constata a situação” queira se subtrair aos diagnósticos bem intencionados das teorias. Pode mesmo acontecer que muitos dos conteúdos e categorias não absorvam mais adequadamente a realidade que perfaz os interesses das frações de classe, como no caso dos trabalhadores assalariados do capital.

Não é claro, contudo, que é chegado o momento de preparar a sociedade para o tempo de trabalho disponível e não ficar apenas no “sindicalismo de emprego”, pois como Marx afirma: “(…) o capital aqui – de forma inteiramente involuntária – reduz o trabalho humano, o dispêndio de energia, a um mínimo. Isso beneficiará o trabalho emancipado e é a condição de sua emancipação.” (2011, p. 585).[ix] Isto seria também reformismo?

Possivelmente nem conceitos e nem categorias possam existir acabados para a “volta zero” da realidade do trabalho em nosso tempo, e acontece que, nas disputas pela adesão dos trabalhadores e trabalhadoras, as melhores práticas, “das quais o futuro da humanidade depende”, podem, possivelmente, estarem escritas há muito tempo para nossa interpretação acurada no fluxo inexorável da emancipação humana.

*José Manuel de Sacadura Rocha é doutor em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Mackenzie. Autor, entre outros livros, de Sociologia jurídica: fundamentos e fronteiras (GEN/Forense) [https://amzn.to/491S8Fh]

Referências


ARENDT, Hannah. O sistema totalitário. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978.

GRAEBER, David. Trabalhos de merda: uma teoria. São Paulo: Edições 70, 2022.

HARVEY, David. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

HORKHEIMER, Max. Crepúsculo: Notas alemãs (1926-1931). São Paulo: Editora UNESP, 2022.

LUKÁCS, Georg. Das Antinomias Burguesas ao Problema da Consciência de Classe. Sandrine Aumercier. Revista GRUNDRISSE. Disponível em: https://grundrissedotblog.wordpress.com/2024/06/02/georg-lukacs-des-antinomies-bourgeoises-au-probleme-de-la-conscience-de-classe.

MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011.

MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.

Notas


[i] HORKHEIMER, Max. Crepúsculo: Notas alemãs (1926-1931). São Paulo: Editora UNESP, 2022). Todas as citações referentes a Horkheimer foram coletadas nesta edição.

[ii] Segundo Harvey: “O aparecimento de novas questões a serem respondidas, novos caminhos a serem seguidos pela investigação, provoca simultaneamente a reavaliação dos conceitos básicos – como o de valor -, a eterna reformulação do aparato conceitual usado para descrever o mundo.” (HARVEY, David. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 529).

[iii] Em “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, [1852], cap. V, Marx referia-se a esta camada ou fração da população como: “Sob o pretexto da instituição de uma sociedade beneficente, o lumpemproletariado parisiense foi organizado em seções secretas, sendo cada uma delas liderada por um agente bonapartista e tendo no topo um general bonapartista. Roués  [rufiões]  decadentes  com  meios de subsistência duvidosos e de origem duvidosa, rebentos arruinados e aventurescos da burguesia eram ladeados por vagabundos, soldados exonerados, ex-presidiários, escravos fugidos das galeras, gatunos,  trapaceiros,  lazzaroni  [lazarones],  batedores  de  carteira,  prestidigitadores, jogadores, maquereaux [cafetões], donos de bordel, carregadores, literatos, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de tesouras, funileiros, mendigos, em suma, toda essa massa indefinida, desestruturada  e  jogada  de  um  lado  para  outro,  que  os  franceses  denominam la bohème [a boemia]; com esses elementos, que lhe eram afins, Bonaparte formou a base da Sociedade 10 de Dezembro.”. Neste sentido, é admissível que se coloque nesta camada da sociedade a fração da classe trabalhadora que já foi totalmente excluída do trabalho produtivo, ou que nunca chegou a fazer parte dele. (MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011).

[iv] GRAEBER, David. Trabalhos de merda: uma teoria. São Paulo: Edições 70, 2022.

[v] Podemos considerar que o welfare state pós 2ª. Grande Guerra, foi um momento de inflexão no processo de incremento no tempo de trabalho disponível e dispensação de mão de obra produtiva: no período do fordismo, que devido às guerras da primeira metade do século XX, se estendeu até o final dos anos 1970,  o exército industrial de reserva era ainda uma fração dos trabalhadores aproveitada na produção, intercambiada com os trabalhadores empregados – eram todos desempregados funcionais do capital (na medida em que a ameaça do desemprego é a guilhotina permanente sobre as suas cabeças); a partir dos anos 1980, no pós-fordismo, o desemprego estrutural passa a empurrar cada vez mais e continuamente os desempregados (do exército de trabalhadores de reserva) para o grupo dos desalentados, desqualificados, empobrecidos que não constituem, portanto, mais uma função na reprodução do valor e do capital – o “lumpemproletariado” hoje são todos os desempregados, subempregados e precarizados, trabalhadores disfuncionais do capitalismo, que muitas vezes insistimos em os empurrar para os trabalhos insanos e medíocres do tecnocapitalismo atual.

[vi] A expressão “ralé” figura taxativamente em Arendt: O sistema totalitário: caps. às págs. 163, 209 e 417; Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1978. [No Brasil: Origens do totalitarismo (Cia. De Bolso, 2013)].

[vii] “Não é um mero adendo ao que já sabemos, mas constitui um ponto de partida totalmente diferente daquele no qual é baseada a teoria d’O Capital.” (HARVEY, 2013, p. 562).

[viii] Na teoria marxista ocidental, Lukács distinguiu “ponto de vista da totalidade”, que a classe proletária pode acessar em sua consciência, do “ponto de vista do indivíduo”, que é própria da consciência da classe burguesa. A propósito, veja-se: Sandrine Aumercier. Georg Lukács: Das Antinomias Burguesas ao Problema da Consciência de Classe, GRUNDRISSE (wordpress.com), 02/06/2024.

[ix] MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011.


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