Como surgem charlatões na política?

Foto: Wendelin Jacober
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Por MICHEL AIRES DE SOUZA DIAS*

O sucesso de Pablo Marçal e Jair Bolsonaro se dá quando a sociedade não é mais capaz de cumprir as promessas de liberdade, justiça social e felicidade para todos

Em uma sociedade em que o aparato técnico e o mundo industrial se tornam forças onipotentes, adquirindo um grande poder social, o indivíduo perde sua capacidade de reagir frente à totalidade que o oprime. Na sociedade de massas, o indivíduo autônomo é liquidado, ele torna-se uma célula isolada do contato ativo e consciente do meio social que o envolve. Em seu isolamento cego, ele não tem consciência das forças e das relações de poder que o subjugam.

Ele não possui conteúdo algum que não seja socialmente constituído. Significa que ele é vazio e só age em benefício de sua autopreservação. Desse modo, a subjetividade se cristaliza a partir das formas da economia política, moldada pela organização do mercado. Como bem avaliou Theodor Adorno (2008, p. 145): “Justamente na sua individualização o indivíduo reflete a lei social estabelecida da exploração”.

O capitalismo é uma forma de organização social que aniquila o indivíduo autônomo. É um sistema propício para charlatões como Pablo Marçal e Jair Bolsonaro, que apenas buscam vantagens econômicas, sem nenhuma preocupação com o social ou com a população. O sucesso do discurso desses charlatões se deve ao fato de que eles personificam a imagem dessa totalidade reificada, que reduz todas as relações humanas a relações entre coisas.

A visibilidade desses personagens decorre dos próprios valores veiculados pela cultura de massa, que incentiva a competição, o mérito, o individualismo e a busca desenfreada pelo dinheiro. Com ideias extravagantes e mistificadoras eles se tornam mercadorias da indústria cultural, satisfazendo a necessidade da população de outsiders que podem mudar a política. Nesse sentido, eles são tão falsos como os produtos mercantilizados pela cultura de massa, como a teologia da prosperidade, os livros de autoajuda, o coaching e os cursos de Traders para enriquecer.

O grande sucesso de charlatões, seja na política, na religião ou em livros de autoajuda evidencia o processo de regressão do indivíduo causada pela cultura de massa. Theodor Adorno procurou mostrar em seu ensaio, “Indústria cultural”, que a cultura de massa produz em seus consumidores um processo de regressão das suas capacidades críticas e reflexivas. Ao consumirem os produtos culturais estandardizados de forma passiva, sem nenhum esforço intelectual, os indivíduos perdem a capacidade de pensar criticamente a realidade. Há um enfraquecimento da sensibilidade e do entendimento, que os torna propensos a toda forma de heteronomia.

O indivíduo massificado, interiormente frustrado, impotente diante do aparato tecnológico, torna-se propenso ao discurso do líder charlatão. Esse mecanismo de atração por um líder foi chamado por Freud, em seu livro Psicologia das massas e análise do Eu, de identificação: “O mecanismo que transforma a libido no vínculo entre líder e seguidores, e entre os próprios seguidores, é o da identificação” (Freud, 2019, p. 104).

O líder charlatão mantém o grupo unido por um estado de identificação mediante seu amor e através de uma catarse sobre seus membros, agindo hipnoticamente sobre eles. Desse modo, ele assume a figura de um “ideal do Eu”, tornando-se um modelo para todo o grupo. O líder personifica as exigências e normas sociais, os valores e ideais culturais. É por essa razão que os valores conservadores e autoritários adquirem maior relevância para esses líderes. O apelo às questões morais e religiosos torna-se um instrumento para manipular as massas

Em A teoria freudiana e o padrão de propaganda fascista Theodor Adorno procurou mostrar que o discurso de líderes fascistas tem muito mais um apelo emocional, demagógico e psicológico, do que racional e objetivo. É por isso que os líderes da extrema direita não discutem planos de governo ou questões objetivas, eles apelam sempre para as questões polêmicas e conservadoras. Discutir questões como ideologia de gênero, Kit gay nas escolas, aborto, conspiração comunista e narrativas anticientíficas sempre foi uma estratégia para defender interesses políticos e econômicos.

Outro fato observado por Theodor Adorno é que o discurso de líderes fascistas “ataca fantasma”, ele constrói uma narrativa do homossexual, do negro, do estrangeiro e dos pobres, criando uma falsa imagem e não mostrando como esse imaginário se relaciona com a realidade. Entre todos os grupos, os comunistas são os que mais são atacados como o grande inimigo da nação, como um fantasma que está ocultamente governando o nosso mundo.

O sucesso de charlatões como Pablo Marçal e Jair Bolsonaro também evidencia uma crise mais profunda das democracias ocidentais. Eles aparecem quando a sociedade não é mais capaz de cumprir as promessas de liberdade, justiça social e felicidade para todos. O que há de peculiar nesses líderes, é que eles são capazes de adivinhar as demandas, insatisfações e necessidades psicológicas dos indivíduos. O que eles possuem em comum é o discurso antissistema, antipolítica.

Eles são capazes de assimilar a insatisfação e as frustrações das massas em relação às instituições democráticas. O desejo de mudança está intimamente ligado ao sofrimento psicológico dos indivíduos no mundo capitalista, relacionado a questões sociais e econômicas. Essa insatisfação e demonstrações de ódio são testemunhos do declínio do indivíduo e de seu enfraquecimento no mundo industrial capitalista.

Em nossa atualidade, as democracias modernas não conseguiram reconciliar os interesses particulares com os interesses universais. É nesse momento que o discurso conservador e autoritário de Jair Bolsonaro e de Pablo Marçal se torna atraente. A personalidade autoritária é reforçada pelo ódio, que se produz e reproduz pela insatisfação, liberando os impulsos destrutivos contra a civilização. Como aponta Bueno (2009), o indivíduo conservador, com um déficit de formação cultural, canaliza seu ódio que deveria se voltar contra um mundo injusto, frio, bárbaro, em direção à própria sociedade.

O grande problema é que essa agressividade não é desviada contra as instituições, mas é desviada contra os mais frágeis na hierarquia social: negros, pobres, nordestinos e desempregados. Em outros termos, o ódio que deveria ter por alvo as condições objetivas do sistema capitalista, é descarregado contra os desamparados reais ou imaginários. Como apontou Theodor Adorno (1995), algo que sempre ocorreu na história da civilização é a perseguição e a violência contra os impotentes e socialmente fracos e, ao mesmo tempo, seja isso verdade ou não, são os que se consideram felizes.

*Michel Aires de Souza Dias é professor na área de educação no Instituto Federal do Mato Grosso do Sul (IFMS).

Referências

ADORNO, Theodor. Minima Moralia: reflexões da vida lesada. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.

ADORNO, Theodor. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

BUENO, Sinésio. Da dialética do esclarecimento à dialética da educação. Revista Educação: Adorno pensa a Educação, ano 2, no. 10, p. 36-45, 2009.

FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu. Porto Alegre: LP&M, 2019.


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