Por PAULO CAPEL NARVAI*
Nem a Universidade Harvard, nem a Universidade de Queensland, nem nenhum “top medical journal”, chancelam as aventuras sanitárias terraplanistas implementadas, sob o comando de Donald Trump, pelo governo dos EUA
1.
Enquanto no Congresso Nacional dos Estados Unidos da América (EUA) prossegue o embate contra o negacionismo antivacinação e antifluoretação da água, mantido por Robert F. Kennedy Jr, o secretário de saúde do governo Trump, alguns Estados aprovaram normas que dão sustentação à interrupção dessa importante ação de saúde pública. É o caso de Utah e Flórida.
Porém, contrariando o que se supunha que seria uma avalanche de cidades estadunidenses interrompendo o uso dessa tecnologia de saúde pública, reconhecidamente eficiente e eficaz, conforme dados disponíveis inclusive para São Paulo, a maior cidade brasileira, o avanço dessa posição obscurantista de Kennedy Jr não vem tendo nada de avalanche.
Embora as investidas não tenham parado, é lento o ritmo das adesões à posição defendida pelo “ministro da Saúde” trumpista. Impossível saber até quando será assim, pois nesses embates parece valer tudo, até mesmo o suposto “apoio” da Universidade Harvard, talvez a universidade dos EUA mais intensamente agredida até o momento pelo cretinismo instalado na Casa Branca.
Um estudo, publicado em março de 2014 pela revista científica ‘The Lancet Neurology’, intitulado ‘Neurobehavioural effects of developmental toxicity’, voltou a ser mencionado em círculos negacionistas, pretendendo dar sustentação às posições de Kennedy Jr sobre a fluoretação da água.
A notícia de que “uma pesquisa realizada na Universidade Harvard” havia finalmente provado que a fluoretação da água de abastecimento público causaria danos à saúde das pessoas e que, portanto, a fluoretação deveria “ser interrompida, imediatamente”, não apenas no Brasil, “mas em todo o mundo”, começou a circular no Brasil ainda em 2014, e se intensificou em 2015, mas principalmente no primeiro semestre de 2016.
Lembro-me bem, pois como um sanitarista que pesquisa o tema no Brasil, durante aquele período fui, semanalmente, solicitado por amigos, colegas, estudantes e jornalistas, a comentar a pesquisa, opinando sobre que “providências o Brasil deveria tomar para proteger a saúde das pessoas”. Isso aconteceu também, conforme testemunhei, com vários colegas em todo o Brasil.
De imediato, tratava-se de conhecer a pesquisa “da Universidade Harvard”, analisar propósito, método, resultados e, então, começar a divulgar o que se pensava no Brasil sobre o estudo feito na prestigiada mundialmente universidade norte-americana.
2.
O artigo que analisa efeitos neurocomportamentais da toxicidade no desenvolvimento, incluindo autismo, transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, dislexia e outros comprometimentos cognitivos, é assinado por dois pesquisadores, Philippe Grandjean e Philip J Landrigan, docentes vinculados, respectivamente, ao Departamento de Saúde Ambiental da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard, em Boston, e à Escola de Medicina do Hospital Monte Sinai, de Nova Iorque.
À época, comentei que li o artigo que motivou os questionamentos, respondi a todos que me perguntaram sobre a pesquisa e não dei maior importância ao fato.
Estava seguro de que, qualquer leitor, profissional de saúde ou não, que dispusesse de conhecimentos elementares a respeito da fluoretação da água, não teria dúvidas sobre o que concluir da leitura do artigo assinado por Grandjean e Landrigan, pois ele não se referia à fluoretação da água, tal como essa tecnologia é compreendida, atualmente, nos meios odontológico e de Saúde Pública.
A alguns desses interlocutores cheguei inclusive a recomendar um vídeo contendo trechos de uma palestra que fiz em 10/12/2015, no 5º Seminário Estadual Água e Saúde, realizado sob responsabilidade do CVS – Centro de Vigilância Sanitária da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.
Nesse vídeo conto, em linhas gerais, a história que levou ao início da fluoretação das águas na cidade de São Paulo, em 1985, e outros municípios da sua região metropolitana, o absoluto sucesso epidemiológico dessa iniciativa, e explico por que motivos os argumentos contrários à medida, no passado e no presente, não encontram respaldo na literatura científica sobre o tema
Não obstante essas explicações, dadas também ao público por outros pesquisadores brasileiros, a interpretação, equivocada, de que “a pesquisa da Universidade Harvard prova que a fluoretação da água deve ser interrompida imediatamente”, seguiu sendo difundida em redes sociais digitais, aqui no Brasil e em outros países, incluindo a Austrália e a Nova Zelândia (ver foto do outdoor).

Como frequentemente acontece nessas situações, invertem-se argumentos, com negacionistas acusando cientistas brasileiros de “não estarem atualizados cientificamente” e de seguirem baseando “suas crenças” em “conhecimentos ultrapassados”.
3.
Após analisar o artigo que teria investigado o suposto papel da fluoretação da água em deficiências do desenvolvimento neurológico, assinalei que o texto tem 47 parágrafos e que em apenas um parágrafo o elemento flúor é mencionado e analisado.
Grandjean e Landrigan assinalam que eles haviam identificado em 2006 cinco produtos químicos industriais como neurotóxicos para o desenvolvimento: chumbo, metilmercúrio, bifenilas policloradas, arsênio e tolueno. Em seguida, dizem, “estudos epidemiológicos documentaram seis neurotóxicos adicionais para o desenvolvimento — manganês, flúor, clorpirifós, diclorodifeniltricloroetano, tetracloroetileno e os éteres difenílicos polibromados”, ponderando que “mais neurotóxicos permanecem desconhecidos”.
Na revisão da literatura científica que fizeram, os autores identificaram 214 produtos químicos industriais que poderiam estar implicados nessas deficiências.
A menção ao flúor justificou a inclusão do parágrafo dedicado a esse elemento químico no artigo da ‘The Lancet Neurology’. O referido parágrafo baseia-se em uma revisão sistemática, cuja meta-análise incluiu 27 pesquisas que analisaram efeitos tóxicos da exposição a águas naturalmente fluoretadas com concentrações de flúor superiores a 2,5 mg F/L. Tais efeitos foram confirmados.
Sabe-se, porém, desde meados do século XX, que águas com tais concentrações de flúor (ou fluoretos) são impróprias para consumo humano. É por essa razão que o valor máximo permitido de flúor em águas para consumo humano é de 1,5 mg F/L. A concentração ideal de fluoretos, que sempre estão presentes em diferentes concentrações nas águas que consumimos, é de 0,7 mg F/L.
Por essa razão, é importante compreender que a tal “pesquisa da Universidade Harvard”, não se refere à fluoretação da água como tecnologia de saúde pública, que consiste justamente em avaliar a concentração de fluoretos naturalmente presente nas águas e ajustar essa concentração até o nível considerado ótimo para a saúde humana.
Aliás, os autores do artigo são explícitos ao mencionar que a análise que fizeram não se refere aos efeitos da exposição de humanos a águas de abastecimento público em concentrações mais baixas (0,7-1,2 ppmF ou mgF/L). Ou seja, não se referem ao que conhecemos como “fluoretação da água”. Tais efeitos, cabe enfatizar, são bem conhecidos e benéficos.
Águas com baixos teores de fluoretos são as que se busca obter com a “fluoretação da água”, tecnologia de Saúde Pública amplamente utilizada no Brasil, nos Estados Unidos, na Austrália, Canadá e outros países.
Alegar a incompreensão desse argumento constitui apenas uma falsificação dos conhecimentos científicos e motivação para a propagação de fake news, com propósitos variados.
4.
Os estudos realizados na Universidade Harvard foram muito mal interpretados no Brasil e em outros países. Não há conhecimento científico novo que prove que a fluoretação da água de abastecimento público deve ser interrompida, muito menos “imediatamente”, nem aqui nem nos EUA, como quer Robert Kennedy Jr.
No caso brasileiro, trata-se do oposto, pois dadas as nossas conhecidas desigualdades e dificuldades para prover acesso universal a cuidados odontológicos, a fluoretação não apenas deve ser mantida, mas ampliada com urgência e o mais amplamente possível, uma vez que não são questionadas sua eficácia preventiva, sua eficiência econômica e sua segurança para a saúde humana.
É essa também a posição política da ADA, a Associação dos Dentistas dos EUA, que em nota pública reafirmou, em abril de 2025, seu apoio à continuidade da fluoretação da água naquele país.
Brett Kessler, presidente da ADA, rebateu o elogio de Kennedy Jr ao Estado de Utah por assumir a liderança “em tornar a América saudável novamente”, afirmando que “como dentistas, vemos as consequências diretas que a remoção do flúor tem sobre nossos pacientes e é uma verdadeira tragédia quando as decisões dos formuladores de políticas prejudicam crianças e adultos vulneráveis a longo prazo. Apelar cegamente pela proibição da água fluoretada prejudica as pessoas, custa dinheiro e, em última análise, prejudicará nossa economia”.
A nota da ADA menciona a investigação científica realizada por pesquisadores da Universidade de Queensland, e publicada em dezembro de 2024, sobre o impacto da exposição à água fluoretada sobre o neurodesenvolvimento cognitivo (QI). A amostra foi selecionada dentre participantes do Estudo Nacional de Saúde Bucal Infantil (NCOHS) de 2012 a 2014. A principal conclusão foi a constatação de que a exposição ao flúor na primeira infância não afeta o neurodesenvolvimento cognitivo.
Assim, nem a Universidade Harvard, nem a Universidade de Queensland, nem nenhum “top medical journal”, chancelam as irresponsáveis aventuras sanitárias terraplanistas implementadas, sob o comando de Donald Trump, pelo governo dos EUA.
*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP. Autor, entre outros livros, de SUS: uma reforma revolucionária (Autêntica). [https://amzn.to/46jNCjR]
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