Por MICHAEL HEINRICH*
A história do marxismo é, ironicamente, a história de uma traição: a transformação de um método crítico em ideologia, de uma obra inacabada em dogma acabado. Se Marx ainda nos interpela, é justamente por nos lembrar que a emancipação não tem dono
Apresentação de Marco Aurélio Palu
Em Je ne suis pas marxiste Michael Heinrich argumenta que Marx não estava interessando em uma definição “identitária” e verdadeira para o termo “marxismo”. O cientista político alemão sustenta que o assim chamado marxismo constitui-se de uma vulgarização da obra de Marx que se inicia já em vida do autor de O capital.
Nesse curto, mas vibrante texto Michael Heinrich demonstra que, desde a consolidação da Segunda Internacional, presidida pelo Partido Social Democrata Alemão, até a queda do Muro de Berlim com o PCUS, o destino da obra de Marx foi submetido a uma série de revisões ideológicas “oficiais” à cargo de instrumentos partidários e organizações políticas.
O texto de Michael Heinrich nos dá elementos para pensar se, hoje no século XXI, após a derrota do “socialismo real” e já nos estertores da globalização, se o que se chama de marxismo não estaria ainda mais distante da obra de Marx do que antes. Com a prática militante tendo se tornado um valor em si mesmo, nem mesmo contundentes provas materiais em contrário parecem fazer com que os marxistas atuais analisem sua tradição criticamente, muito menos associando a obra e o pensamento de Marx à essa empreitada.
Enxerga-se, como dito, o movimento contrário, com os políticos e militantes comunistas tendo há muito se separado das tendências e indicativos contidos na obra de Marx. Nesse sentido, também é perceptível que os marxistas da atualidade tenham perdido sobre a obra do autor alemão o controle que exerciam até as décadas finais do século XX. As publicações e os esforços editorias da MEGA², as obras completas de Marx e Engels, foram paralisadas em 1989 e retomadas em 1998, e que quando falam de Marx o fazem de forma muito rarefeita, residual e centrífuga.
Frente ao cinismo e a falta de atitude crítica na desertificação do real. Ao que parece o mal-estar pós-moderno do “realismo capitalista” proposto por Mark Fisher é inarredável inclusive para os comunistas, ou seja, nem mesmo para a imaginação desses é possível imaginar o fim do capitalismo.
Se no mundo “pós-ideológico” o capitalismo “tardio” dá mostras de colapso final, não é, no entanto, incomum encontrar no ativismo de esquerda das redes sociais como alternativa a esse quadro referências a um passado comunista “perdido”, a partir de figuras retiradas do século XX, dessa ou daquela revolução contra o imperialismo, de alguma revolução anticolonial africana, ou de alguma luta interseccional onde a categoria “classe social” tenha se feito presente.
Basta invocar palavras-chave como “luta de classes” ou “totalidade” à alguma pauta social “secundária” e, pronto, habemus marxista! Mesmo que a história diga o contrário, é repetido cinicamente que “pior tipo de socialismo é melhor que o melhor capitalismo”, o que deixa de fora, no aqui e agora, o reconhecimento de pautas sociais que existem no presente como fundamentais para a construção do futuro humano. É como dizer, “primeiro fazemos a revolução que as coisas vão se resolver”.
Com a esfera econômica ocupando “a determinação em última instância” do metabolismo social, “o estrutural” seria apenas a dimensão produtiva da vida humana. O significado da palavra socialista não identifica mais uma luta gregária no mais amplo sentido no seio das lutas sociais atuais no sentido histórico de produção e da reprodução da vida, como era para o autor do Manifesto Comunista. Não, hoje, mais do que nunca, é preciso que as lutas sejam dirigidas, num leninismo caduco, à sua própria libertação.
Isso se torna tão mais evidente quanto mais unilateral e moralista, mais miserável, se acha a situação dos partidos da esquerda tradicional, reduzidos hoje a um clube como algumas dezenas ou centenas de militantes. Não seria exagero dizer, que a partir de olhar crítico-realista essas figuras partidárias compareçam historicamente como cadáveres insepultos, incapazes teórica e praticamente de autossuperar como organização e de realizar uma autocrítica séria.
Nos casos mais sofisticados vemos a coisa ganhar um verniz e um acabamento filosófico a partir de jargões como “ontologia”, “crise estrutural”, “fetichismo” – supostos abracadabras do “sistema” marxiano. Nos menos ainda comparece de prontidão a problematização manualesca de “isso é uma contradição dialética”, logo seguida da resolução “lógica” infletida a partir da palavra práxis.
O marxismo é aplicado, quase como um modelo ahistórico. A partir de uma leitura acrítica do Manifesto Comunista teses acadêmicas mirabolantes inserem o conceito de luta de classes, nódulo atemporal e transcendental, à maneira positivista, em qualquer campo da atividade e do conhecimento humano: “luta de classes na Roma antiga”; “direito e luta de classes”. Como se o movimento da história pudesse ser (re)editado a partir da agitação no ambiente virtual, a partir da vontade – agora renovada – da juventude revolucionária da vez. O revival stalinista de parte da geração Z, por exemplo, parece olhar para este passado – negligenciando claramente o adágio marxiano de que “a revolução social deve tirar poesia do futuro”.
Nesses meios, quanto mais Marx é cultuado menos é efetivamente compreendido. A despeito de sustentar sua atualidade, invoca-se uma figura mítica. Incapaz de se diferenciar da direita nos métodos. Estética militante, palavras de ordem, camarada. Procurando um lugar ao sol no ambiente político-cultural tribal da pós-modernidade, o “marxismo” parece reduzir-se a mais uma “identidade” entre outras tantas – com um discurso, uma gramática, uma ritualística, próprios.
A tão batida interpretação da tese XI, de que “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”, é agora, mais do que nunca, interpretada como exortação à ação pela ação, numa espécie de compulsão moral à militância mais irrefletida, a pretexto de mera intervenção na realidade.
Mais do que nunca, o que faz do marxista um marxista nessa chave, sua prova de valor, é sua “ação” “organizada”, não o esforço pelo conhecimento das leis dinâmicas da ciência da história. Mesmo o movimento da história, do qual desde Marx os comunistas clamam ser representantes, dando mostras de superação, categorias clássicas não são abandonadas, pelo contrário; São reafirmadas enfaticamente. A categoria imperialismo, por exemplo, é trazida como passe-partout no mundo globalizado, onde as contradições do centro já se encontram abundantemente na periferia, bem como as da periferia no centro do capital.
Da social democracia e mesmo após o ocaso material do marxismo-leninismo, o modo de encarar a obra de Marx não passou por uma mudança significativa. Os mesmos políticos comunistas tenham há muito se separado das tendências e indicativos contidos na obra de Marx acabaram por perder sobre ela o controle e que exerciam até então, ocasionado uma série de deturpações e vulgarizações: quando falam de Marx está ali de forma muito rarefeita, residual e centrífuga. Com passagens de obras datadas, reconhecidas pelos próprios autores, que são repetidas ad nauseum como tentativa de caber na realidade à fórceps.
Ao não entender e não levar a sério o período histórico em que se encontram, os “marxistas” não fazem nem uma análise imanente nem uma crítica séria dos movimentos identitários, dos quais se apressam em se separar a partir da categoria classe social.
Texto de Michael Heinrich
Aquele que visita o túmulo de Karl Marx no cemitério Highgate em Londres encontra um enorme pedestal onde há erguido um também enorme busto de Marx. É preciso olhar com mais atenção para ele.
Logo abaixo do busto está escrito em letras douradas “trabalhadores de todo o mundo, uni-vos”, e mais abaixo, também em dourado, “Karl Marx”. Embaixo deles uma simples e pequena lápide está posicionada dentro do pedestal, a qual dá nome sem ouro nem pompa aos que estão enterrados ali: ao lado de Karl Marx, há sua esposa Jenny, seu neto Harry Longuet, sua filha Eleanor, e Helene Demuth – que por décadas foi a governanta de Marx.
Após a morte de sua esposa o próprio Marx escolhera uma lápide simples. Não era do tipo exibido. Ele foi explícito no pedido por um funeral sereno, restrito a um pequeno círculo de amigos. Somente onze pessoas se fizeram presentes. Friedrich Engels conseguiu impedir os planos do Partido Social Democrata Alemão de erguer um monumento à Marx no cemitério. Ele escreveu a August Bebel que a família era contra tal monumento, já que a lápide simples “seria profanada aos seus olhos se substituída por um monumento” (MECW 47, p. 17).[i]
Cerca de setenta anos depois, não sobrou ninguém para guardar o túmulo de Marx. O monumento que hoje lá está foi encomendado pelo Partido Comunista da Grã-Bretanha e inaugurado em 1956. Só o regulamento do cemitério impediu que ele fosse ainda maior. Os marxistas, portanto, se colocaram contra Marx.
“Je ne suis pas marxiste”, foi a declaração de um Marx bastante irritado ao seu genro Paul Lafargue, quando esse o reportou das ações de “marxistas” franceses. Friedrich Engels fez circular essa declaração inúmeras vezes, incluindo cartas a periódicos – certamente pensando no consumo público.
A distância entre Marx e os marxistas também é expressa em outros comentários. Quando esteve na França, em 1882, ele escreve a Engels que “os “marxistes” e “anti-marxistes” […] em seus respectivos congressos em Roanne e Saint-Étienne” tinham “ambos feito o seu melhor para arruinar minha estada em França”. (MECW 46, p. 339)
Em todo caso, o “marxismo” não agradava a Marx. E mais do que isso: quando o economista Adolf Wagner analisa pela primeira vez a teoria marxiana em seu manual e escreve sobre “sistema socialista” de Marx, este último, indignado, anota sob a forma de glosas que “nunca estabeleceu nenhum sistema socialista” (MECW, 24, p. 533). “Sistemas” e qualquer “ismo” como visão de mundo nunca foram do seu estilo.
Pode-se procurar em vão por passagens em sua obra em que ele define a si mesmo como pai fundador de algum “ismo”. Além de se ver como um homem de “partido” (o qual ele referia não como uma organização específica, mas sim a totalidade de forças em luta contra o capitalismo e pela emancipação social), Marx dizia-se um homem de ciência. O capital, que ele considerava “o mais terrível projétil que já fora lançado na cabeça da burguesia (incluindo os arrendatários)” (MECW 42, p. 358), estava, segundo ele, incluído nas “tentativas científicas de revolucionar a ciência” (MECW 41, p. 436).
A ênfase em “científicas” é de Marx. E, quando Marx escreve no Prefácio ao primeiro volume de O capital, “dou boas-vindas à toda opinião crítica cientificamente embasada” (MECW 35, p. 11), ele não estava simplesmente sendo retórico. Marx tinha plena consciência da natureza provisória e da falibilidade das afirmações científicas.
“De omnibus dubitatum” – “duvidar de tudo” –, escreveu ele em resposta à questão sobre o seu mote de vida num questionário biográfico que sua filha o apresentou. A enorme massa de manuscritos que ele deixou sem publicar, as muitas e consideráveis revisões de textos já publicados, em certa medida atestam o fato de que nem mesmo sua própria obra estava isenta de dúvidas. Mas na história do marxismo tal obra foi frequentemente tratada de maneira diferente.
Historicamente falando, a partir da popularização dos últimos trabalhos de Engels, especialmente do Anti-Dühring, constituiu-se o ponto de partida para a construção do marxismo. Mas é um tanto tendencioso fazer de Engels o “inventor” do marxismo, como fez a editora Propylän, quando deu à tradução alemã da biografia de Engels escrita por Trisram Hunt o subtítulo de “o homem que inventou o marxismo”.
A edição original em inglês leva um título mais preciso “o comunista de casaca”. Foi somente com a pressão de Bebel e Liebknecht na década de 1870 que Engels confrontou as opiniões do professor universitário alemão Eugen Dühring, quem paulatinamente estava ganhando adeptos na social-democracia alemã. Uma vez que Eugen Dühring havia montado um novo e abrangente “sistema” de filosofia, história, economia, e ciências naturais, Engels precisou seguí-lo em todas essas áreas, mas não sem enfatizar no prefácio que seu texto “de modo algum pode visar apresentar outro sistema como alternativo ao ‘sistema’ de Herr Dühring” (MECW 25, p. 6).
Mas não adiantou. Historicamente o Anti-Dühring se tornou precisamente o ponto de partida para esse “sistema” que ganhou fama sob o nome de “marxismo”. Seu primeiro representante importante foi Karl Kautsky. Até a Primeira Guerra, Lênin também o seguiu sem qualquer crítica.
Enquanto Engels ainda zombava da pretensão de Dühring de uma “verdade última e final” (MECW 25, p. 28), agora tal pretensão, juntamente com todas as fantasias de onipotência nela baseadas, era feita por muitos marxistas: “A doutrina marxista é onipotente porque é a verdadeira”. Os recortes aplicados pelo marxismo social-democrata antes da Primeira Guerra foram seguidos pelos do marxismo-leninismo, que se tornou a doutrina canônica na União Soviética após a morte de Lênin.
Para que fique claro: minha intenção não é desacreditar todas as conquistas políticas e analíticas de Kautsky, Lênin e muitos outros marxistas.
Se alguém deseja avaliar essas conquistas o fará em cada caso e sempre individualmente
O que eu estou tratando são essas simplificações descritas como “marxismo”, essas misturas de materialismo simplório, ideias burguesas de progresso, e um hegelianismo vulgar que se apresentam como “materialismo dialético” e “materialismo histórico” –, termos que em vão se buscam obra de Marx.
Agora, os marxistas instruídos, modernos e não-dogmáticos vão prontamente objetar que esses cultos à personalidade não são sua praxe, e que o velho marxismo dogmático também não é. Somente o seu iluminado ponto de vista pode ser considerado “marxismo”, todo o resto é descartável – das concepções deterministas de história à redução das relações de gênero como “contradições secundárias”, tudo é enviado ao gulag stalinista-, e que não tem nada a ver com o supostamente real e verdadeiro marxismo. No entanto, se alguém se perguntar no que consiste o tal verdadeiro marxismo, a dúvida subitamente se desmancha no ar, e isso não é um mero acaso.
Se esse mesmo alguém procurar dar um corpo substancial ao termo “marxismo” irá se deparar necessariamente com um dilema. Caso se insira muito conteúdo então a determinação se torna muito concreta e muito facilmente acaba contradizendo a ciência decorrente dele. O “lysenkismo” é tão somente o mais famoso exemplo disso. Mas caso se deixe as coisas num nível vago e abstrato corre-se o risco de que aquilo que é apresentado como marxismo permaneça ao nível dos clichês: tudo o que é real é também material, a história se desenvolve por meio de contradições, etc.
Para muitos marxistas, György Lukács é considerado como aquele que desatou esse nó. De acordo com Lukács, mesmo que alguns resultados parciais da teoria de Marx tenham se provados falsos, seu “método”, no entanto, permanecia correto: manter a “dialética materialista” como método de pesquisa era supostamente o centro nervoso do chamado “marxismo ortodoxo”.
Mesmo que se ignore o fato de que não há consenso entre os marxistas sobre no que consiste o tão propalado método dialético, essa advertência lukácsiana não almejava ser um tipo de recomendação oficial para aferrar-se a um método mesmo que ele conduzisse a resultados incorretos. E de modo algum estou contestando que há ali conceitos razoáveis de materialismo e de dialética. O que duvido muito é de que a partir deles se possa reunir os fundamentos de uma ontologia e de um método geral.
Ainda que não se possa aduzir claramente uma determinação conceitual daquilo que o marxismo é, permanece sempre entre os marxistas a possibilidade de fazer uso do termo de maneira puramente descritiva.
Assim, uma definição possível da palavra “marxismo” é “o marxismo engloba todas as práticas dos últimos 150 anos nas quais se refere positivamente ou que dá continuidade às obras de Karl Marx, bem como aos autores e ativistas que ulteriormente se referiram a Marx”; em seguida fala-se em “assédio constante ao marxismo nas mãos do stalinismo e do fascismo”.
Aparentemente, o stalinismo não conta como uma parte do marxismo, embora esta corrente se refira sempre positivamente à “obra de Karl Marx”, assim como a maioria de seus contemporâneos nunca tenha duvidado que o stalinismo fizesse parte do marxismo – entre eles alguns de não pouco espírito crítico, como Ernst Bloch. Se o stalinismo é retrospectivamente excluído do marxismo – entendido em sentido descritivo – então está se procedendo de uma forma não tão diferente da de Stálin, que também procurou apagar dos registros e das fotografias aqueles que caíram em desgraça.
O fato de que não seja fácil para os marxistas determinar o que o “marxismo” realmente é de alguma forma também é responsabilidade de Marx. Há que se admitir que esse não facilitou a vida daqueles. Sua obra consiste não somente em um conjunto de textos publicados, mas também por uma variedade imensa de manuscritos que não foram publicados em vida.
Os projetos teóricos fundamentais que Marx se debruçou permaneceram todos inacabados. Manuscritos não publicados como os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 ou a coletânea de 1845/46 que ficou conhecida como A ideologia alemã permaneceram fragmentados e inacabados. Muitos dos textos são ou sínteses provisórias, como o Manifesto comunista, de 1848, ou são partes de projetos inacabados, tal como o primeiro livro da Contribuição a crítica da economia política (1859), ou o primeiro volume de O capital (1867/1872).
Análises políticas como O 18 de brumário (1852), ou A guerra civil na França (1871) tratam de forma exaustiva de seus respectivos tópicos, mas a teoria do Estado e da política que Marx aspirava só é abordada de forma implícita e incompleta. Marx não somente deixou um projeto inacabado, ele deixou uma série de projetos inacabados. Não há razão para duvidar que a discussão desses projetos, em seu respectivo alcance, nas suas lacunas, bem como a relação entre eles, proporcionou, e ainda proporciona, um rico material de debate.
Além disso, os trabalhos póstumos de Marx foram sendo publicados de pouco em pouco (até hoje ainda estão sendo publicados).
Cada geração de leitores foi confrontada com diferentes conjuntos de obras completas (oeuvre) de Marx, e em muitas ocasiões durante o século XX se proclamou que agora – finalmente – poder-se-ia conhecer o verdadeiro Marx! No entanto, os trabalhos póstumos em geral foram intensamente revisados pelos seus respectivos editores antes virem à publicação.
Esse foi o caso já do segundo e do terceiro volumes de O capital, publicados por Engels, e é ainda mais o caso dos Manuscritos econômico-filosóficos e de A ideologia alemã, publicados entre os anos 1920/30. Os materiais de Marx e Engels foram completamente publicados pela primeira vez e sem tais intervenções editoriais na segunda Marx-Engels Gesamtausgabe (MEGA), publicada desde 1975, mas até o momento (2015) momento apenas metade dela apareceu.
Entretanto, no desenvolvimento histórico dos vários marxismos os textos de Marx e Engels jogam um papel limitado. De início, as pessoas ficavam satisfeitas com algumas formulações pequenas e marcantes, como a de que a história é sempre a “história da luta de classes”, ou de que o “comunismo” é “o movimento real que abole o atual estado de coisas”. Mas o contexto no qual Marx fez essas afirmações, e o modo como elas foram sendo modificadas pelos ulteriores desenvolvimentos da teoria marxiana – se provaram de menor interesse. Para o marxismo, Marx não interessava como um pensador que estava constantemente aprendendo e desenvolvendo suas concepções teóricas, mas sim como alguém que produziu verdades finais – o “marxismo”.
Muito dos modernos e instruídos marxistas também mantém uma certa distância em relação a um compromisso firme para com a obra de Marx. É frequente a ênfase de que não “fazem filologia”, ao contrário, dizem, preferem tratar politicamente a obra de Marx. Não raras vezes, porém, esse distanciamento acaba concorrendo para o objetivo de manter intocada a própria noção de teoria de Marx e do marxismo.
Se, por exemplo, referimos o conceito de práxis nas Teses ad Feuerbach, que muitos consideram conter o cerne da teoria de Marx, ao contexto específico do debate com os Feuerbach e os neo-hegelianos – tirando das Teses ad Feurbach o seu estatuto de documento fundamental –, ou se sublinhamos que, no caso do Manifesto Comunista, o verdadeiro debruçar de Marx na análise do capitalismo começa após o Manifesto, com algumas das teses ali contidas sendo até mesmo rejeitadas, então perderemos muitos amigos.
A mesma coisa acontece se notamos que nem todas as afirmações contidas em O capital estão gravadas em pedra, e que, por exemplo, há indícios de que nos anos 1870 Marx poderia ter considerado mais criticamente a “lei da queda tendencial da taxa de lucro”, conforme demonstram os manuscritos 1864/65 do terceiro volume de O capital. Ao fim e ao cabo, isso tudo seria tão somente “filológico”.
Uma vez mais, e para se claro: o fato da crítica ao capitalismo não se esgotar na filologia é banal. Outro fato, tão banal quanto, é que se quisermos trabalhar com os conceitos da obra de Marx temos primeiro que se apropriar deles criticamente e não somente partir de manuais. Mas, na maior parte das vezes, é precisamente essa apropriação crítica que fica faltando.
Uma última coisa: entre os cientistas sociais críticos, e particularmente na Associação para Pesquisa Social Crítica [Assoziation für kritische Gesellschaftsforschung], Michael Foucault goza de certa popularidade. Suas análises da relação entre poder e saber são sempre generosamente referidas. No entanto, os marxistas – mesmo aqueles modernos e não-dogmáticos – encontram dificuldades para conceber o marxismo como um tipo de complexo de saber-poder. Em uma conferência organizada pela APSC, o marxismo como forma de dominação não foi nem sequer tópico de discussão.
Isso, no entanto, foi tema discutido o marxismo na RDA (GDR), onde a história do marxismo fora sempre uma história de exclusão e de dominação. Mas não pertencem a esse tópico somente o stalinismo e a história dos partidos comunistas autoritários. Nos grupos de esquerda e seminários acadêmicos do Ocidente, as supostas verdades absolutas do “marxismo” também produziram vários balizamentos entre o que “ainda” é o que “já não é mais” considerado marxismo, ou seja, entre aquilo que é incluído e o que é excluído de seus discursos e práticas sociais.
Mesmo que alguns queiram pensar dessa forma, a microfísica do poder não começa onde acaba o marxismo (ocidental). O “curto verão do marxismo acadêmico” (Elmar Altaver) que existiu nas universidades da Alemanha Ocidental na década de 1970, do qual alguns ainda se ressentem, era, em grande medida, uma pseudo-prosperidade que se assentou nos efeitos discursivos de poder.
Na tentativa de se mostrar na vanguarda, foi lugar comum – independentemente do tópico abordado – a referência à “contradição entre valor de uso e valor de troca”. Durante este período, foram elaboradas muitas análises da teoria marxiana, bem como as contribuições dela decorrentes, que são dignas de serem lidas. Mas também há uma quantidade enorme de bobagens.
De todo modo, o próprio Marx não estava buscando verdades absolutas. Ele estava muito mais interessado era no trabalho crítico de demolir verdades absolutas na intenção de se abrir para novos espaços de pensamento e ação – os quais não dão resultados claros e imediatos.
Em contraste com o “marxismo” que Marx rejeitou, com sua identidade calcada em verdades absolutas, esse Marx crítico e inacabado tem um efeito extremamente subversivo e estimulante. Quais de suas análises e conceitos são úteis, o que pode e o que não pode ajudar a mudar o mundo, não está definido de antemão. Há sempre a necessidade de discutir e fazer novos juízos “De omnibus dubitatum”.
*Michael Heinrich é cientista político. Foi professor na Universidade de Ciências Aplicadas, na Universidade de Viena e na Universidade Livre de Berlim. É colaborador da MEGA2. Autor, entre outros livros, de Karl Marx e o Nascimento da Sociedade Moderna: Biografia e Desenvolvimento de sua Obra. 1818-1841 (Boitempo) [https://amzn.to/3RbNDBz]
Tradução: Marco Aurélio Palu.
Publicado originalmente e disponível aqui.
Nota do tradutor
[i] Michael Heinrich usa citações que constam na edição das Marx-Engels Complete Works (MECW), que começaram a ser editadas em 1975, depois que os princípios gerais de edição foram acordados pelos representantes dos três lados (Instituto Marxismo-Leninismo [Edições Progresso] de Moscou, os Comitês Centrais dos PCs na Grã-Bretanha e nos EUA e suas editoras [Lawrence and Wishart], Londres e Nova York [International Publishers]) em uma conferência em Moscou, em dezembro de 1969. Mais de quarenta volumes foram publicados antes da queda da URSS; os poucos volumes restantes foram concluídos e publicados em 2004.Grande parte dos primeiros escritos de ambos os autores, muitos de seus artigos de jornal (por exemplo, do Neue Rheinische Zeitung 1848-49) e a maioria de suas cartas, bem como muitos dos manuscritos econômicos de Marx, foram publicados em inglês pela primeira vez nas MECW. No total, os 50 volumes compreendem 1.968 obras e outros documentos (dos quais 805 foram publicados em inglês pela primeira vez) e 3.957 cartas (das quais 2.283 nunca haviam sido publicadas em inglês antes). As MECW consistem em escritos de Marx entre 1835 e sua morte em 1883, e de Engels entre 1838 e sua morte em 1895. Os primeiros volumes (vols. I-II) incluem a juvenillia, como a correspondência entre Marx e seu pai, a poesia de Marx e cartas de Engels para sua irmã. A edição também contém várias obras importantes e conhecidas de Marx e Engels, como A condição da classe trabalhadora na Inglaterra (vol. IV), O manifesto comunista (vol. VI), O 18 de Brumário (vol. XI) e O anti-Dühring (vol. XXV). A coleção está dividida em três partes. Os volumes I a XXVII reúnem os escritos políticos, filosóficos, históricos e jornalísticos dos autores, em ordem cronológica. Os volumes XXVIII -XXXVII reúnem especificamente os escritos de Marx sobre economia política, incluindo uma grande quantidade de material de rascunho e manuscritos que culminaram nos três volumes de O capital (vols. XXXV-XXXVII). Por fim, os volumes XXXVIII-L reúnem as cartas e a correspondência pessoal dos autores. As traduções baseadas na MECW são as mais disseminadas e usadas até os dias de hoje, e consagram os esforços editoriais da MEGA².
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