Por GARCIA NEVES QUITARI*
Aos olhos do grande capital, África parece ter voltado a ser apenas uma reserva de recursos naturais e minerais em disputa pelas poderosas nações. Já os governos africanos, vão tentando driblar os seus “animigos” antes do xeque-mate
1.
Como anda e para onde vai a África em meio às múltiplas crises que o mundo enfrenta? Neste século, a última vez em que parte do mundo virou-se para o continente africano com preocupações humanistas, que eu me lembre, foi durante a pandemia da Covid – 19.
Durante este período, as atenções foram motivadas, principalmente, pelo receio que se tinha em relação a uma eventual hecatombe, a pior de todas que aconteceriam, já que o continente era o que possuía uma estrutura de saúde mais precária. A própria OMS encabeçava esta preocupação.
Até agora, se alguém sabe o que aconteceu por aqui, ainda não compartilhou. Ficou-se por saber quais terão sido as razões que explicariam a baixa letalidade da Covid 19 em África: os regimes securitários vigentes terão tido mais sucesso na implementação de medidas restritivas do estado de emergência? Terá contribuído a experiência com surtos e epidemias recorrentes? Teriam os africanos alguma resistência natural ao coronavirus?
São muitas as perguntas que podem ser feitas a respeito disso. Mas, certamente, não caberia espaço para respondê-las aqui, assim como também precisaria de muitas valências para fazê-lo. Mas como perguntar não faz mal, então deixaremos muitas perguntas sem respostas.
Mas, e hoje? A quantas anda a África em meio a tanta balbúrdia nas relações internacionais entre os estados, em meio às marés das fake news, de tantas ameaças, como a crise ambiental, a ameaça da guerra nuclear e tantas outras ameaças que afligem a humanidade? Mais preciso ainda, como anda este continente na escalada do imperialismo, da extrema direita e do trumpismo, em particular?
África não está imune, no todo, ao caos, à desordem do mundo. Pelo contrário, como quem chora nos porões, o que se passa aqui deixou de novo de ser ouvido lá fora. Num cenário em que sistemas multilaterais encontram-se quase que completamente desacreditados – em que relações históricas entre países e blocos foram abalados, em que os alinhamentos ideológicos ora são importantes ora são eclipsados pelas tentativas de diplomacias pragmáticas – cada país se agarra onde pode.
Na melhor das hipóteses, cada país procura o seu o bloco. Assim é também neste continente, onde, além da União Africana, alguns outros blocos regionais tentam oferecer fólego para as agendas de desenvolvimento dos seus pares. Mas não sem grandes dificuldades.
África sobreviveu à Covid 19, mas não ao mundo que emergiu depois desta crise de saúde pública. De fato, o caos pós-pandemia foi apenas mais um condimento na caldeira, pois o continente já se debatiam naquela altura com os seus múltiplos e antigos desafios como a pobreza, a insegurança alimentar e nutricional, agravados por prolongadas recessões econômicas.
2.
Em decorrência de tudo isso, este continente afundou-se em mais endividamentos, estando quase todo ele mergulhado em crises econômicas e financeira, propulsores do aumento da miséria e da tensão social. África se encontra hoje quase completamente manietada pelas instituições financeiras internacionais ocidentais e pela China. Nem da crise mundial de matéria-prima a África consegue tirar alguma vantagem. Pelo contrário, tornou-se no elo mais fraco na escalada do imperialismo euro-estaduninense.
Largados à própria sorte, desamparados e, em alguns casos, até desprotegidos pelas suas matrizes ideológicas, cada governo africano tenta a sua própria arte de governar, de tal modo que as autocracias se proliferam, agora também sob modelos trumpista e bolsonarista, segundo aos quais cada presidente tentará fazer tudo o que quiser. Isso numa altura em que os níveis de democracias vinham relativamente aumentando, principalmente,através das alternâncias pacíficas de poder.
Não são poucos os líderes políticos africanos que agora vão assumindo uma nova roupagem populista e demagoga com todo o aparato técnico-informacional para mobilização de apoiantes e meios militares para contenção política dos descontentes, deslocando-se assim os regimes políticos de autocracias “puras” para uma espécie de “democracias autocráticas”, se assim se pode designar.
Com poucos exemplos progressistas, pouca vontade política, incapacidade de enfrentamento ideológico e militar contra os seus principais algozes capitalistas, não é mais estranho assistir a estreitamentos de relações diplomáticas e comerciais entre países como Angola e a Argentina de Javier Milei. Ou acordos de deportação entre os Estados Unidos da América e o Ruanda, por exemplo. No geral, as “novas” relações bilaterais parecem juntar agora amigos improváveis.
Nos últimos anos, África regrediu drasticamente no combate à fome e a pobreza, voltando a ter milhões de pessoas famintas, principalmente, na subregião meridional do continente. As reformas estruturantes não aconteceram ou não alcançaram os resultados desejados, a exemplo da reforma agrária na África do Sul. As guerras já duram décadas sem que o mundo deite uma lágrima a mais por isso.
Ironicamente, as guerras entre a Ucrânia e a Rússia e no Oriente Médio foram as piores notícias que os países africanos puderam ter nos três últimos anos. Não somente em razão da guerra em si, já o bastante suficiente, mas também por desviarem parte da atenção dos doadores internacionais. Estas ajudas viraram-se quase toda para estes dois conflitos deixando os africanos em acampamentos em que já encontravam à decadas sob os cuidados de forças militares conjuntas ou de tropas da ONU, esta moral e financeiramente desgastadas. São os casos do Sudão do Sul, República Democrática do Congo e até mesmo de Moçambique, para citar apenas alguns exemplos.
3.
A África ainda precisa muito destes apoios internacionais, situação que se agrava com os cortes financeiros feitos pelo governo de Trump aos programas de apoio aos muitos países do continente, dentre os quais, no combate ao HIV/SIDA, Tuberculose e controle da malária.
A situação militar no continente parece ser agora uma estratégia de dominação do Ocidente. Seria como uma chama acesa com oxigénio suficiente para não precisar de mais combustível, por enquanto, mas que bombeiro local nenhum consegue extinguir. São como guerras que podem esperar, mas sempre na presença militar das potências mundiais que mantém reforçados adidos militares no continente em números e importância consideráveis.
A crise ambiental grassa. Suas cidades emergentes espelham uma urbanização inacabada com graves problemas de saneamento básico e de mobilidade urbana, ficando cada vez mais distantes das soluções que se aventam para a melhoria da qualidade de vida das pessoas no planeta. Secas, inundações, pragas de insetos, e tudo mais, anulam as tentativas de uma produção agrícola capaz de alimentar as populações ao mesmo tempo em que acesso aos fundos de financiamento ambiental se deparam com os entraves político-institucionais próprios à (re)produção da desigualdade entre as nações ricas e pobres.
O caso das vacinas da própria Covid-19 foi emblemática no sentido de demonstrar como os países centrais do capitalismo, através dos organismos internacionais, atuam na reprodução da pobreza em África, por exemplo, ao impedirem a África do Sul e o Senegal de produzirem uma vacina que pudesse ajudar o continente naquela altura. As soluções tecnológicas made in Africa enfrentam e continuarão a enfrentar estes entraves como formas de manutenção da hegemonia eurocêntrica.
A pobreza se alastra, impulsionando a emergência de movimentos sociais que lutam contra má governação, contra o desemprego, abusos de poder, etc. A contenção política nem sempre é só opressora pela força. É também argumentativa de tal forma que as narrativas do desenvolvimento não toleram questionamentos sobre os malefícios e falácias em torno do agrenegócio ou do empreendedorismo, por exemplo.
Aos olhos do grande capital, África parece ter voltado a ser apenas uma reserva de recursos naturais e minerais em disputa pelas poderosas nações. Já os governos africanos, vão tentando driblar os seus “animigos” antes do xeque-mate, equilibrando-se entre as imposições de boa governanção e gestão de tesouraria.
Vão ensaiando também parcerias fora das tradicionais relações, mas, sempre muitos mais vulneráveis no jogo das alianças, na atração do capital estrangeiro e no fortalecimento do capital nacional emergente. Por tudo isso, fica claro que a financeirização e a militarização são as duas armas poderosas utilizadas pelos credores internacionais, competidores entre si, para manter o continente sob algum controle.
Mas a África é resiliente. A população mais jovem do mundo se reinventa. Fazendo trinta por uma linha, as pessoas do continente parecem mais livres do que nunca, para criar e recriar se utilizando da frecha de luz lançada, por exemplo, pelas tecnologias da informação. O smarthphone é um exemplo claro disso, um instrumento de ligação com o mundo e, em muitos casos, o principal instrumento de trabalho.
A juventude, esta dor de cabeça dos governos africanos, cresce nas artes e nas engenhosidades que margeiam as invenções capitalistas, reiventado diariamente formas de sobreviver com alegria, esperança, bom humor e com determinação. É uma juventude emancipada que desafia a gerontocracia à velocidade dos algoritmos, impelindo os governos à mudanças. Mas a questão continua em saber-se para quando estas mudanças e para onde vai a África.
*Garcia Neves Quitari é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Agostinho Neto, em Angola.
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