Por DÉBORA TAVARES*
A verdadeira forma literária não é um molde antigo, mas o eco das tensões do seu tempo. A nova literatura brasileira, forjada nas margens, usa o martelo da escrevivência para desestabilizar sonos injustos e forjar futuros possíveis
“A arte não é um espelho para refletir a realidade, mas um martelo para forjá-la”. (Bertold Brecht, Estudos sobre teatro).
Um debate necessário tem atravessado o mundo literário recentemente, centrado em uma questão que parece simples, mas revela profundas disputas sobre o nosso tempo: o que, de fato, faz um livro ser considerado “literatura”? A polêmica, para além da atribuição de juízo de valor, foi acendida por declarações que questionam o valor literário de autores aclamados por privilegiarem o conteúdo em detrimento da forma, nos convida a uma reflexão mais profunda sobre o papel da escrita em um mundo que parece ter perdido suas bússolas.
Para desarmar a falsa dicotomia entre forma e conteúdo, é preciso começar pelo alicerce. Theodor Adorno, oferece a chave para essa compreensão com uma formulação lapidante: “A forma é o conteúdo sócio-histórico sedimentado” (Adorno, 1970). O que o autor nos diz sobre a estrutura de uma obra de arte – seu estilo, sua linguagem, sua composição – não é um recipiente neutro ou um ornamento. Pelo contrário, ela é o resultado decantado das tensões, das contradições e das possibilidades materiais de uma época.
Essa perspectiva nos obriga a abandonar a ideia de que existe uma “forma literária” ideal e atemporal, um molde único no qual caberia a imaginação criativa. Essa convenção em torno de um molde tem seu ápice na época em que o romance do século XIX era a forma adequada para uma burguesia ascendente que acreditava poder ordenar e compreender a totalidade da vida social. O estilhaçamento da forma no modernismo, por sua vez, foi uma das respostas ao trauma das grandes guerras, à psicanálise e à crise da subjetividade. A forma, portanto, é sempre uma das respostas a um tempo histórico.
No contexto brasileiro, essa relação é ainda mais complexa, marcada por uma dependência histórica. Roberto Schwarz diagnosticou com precisão essa condição. Ele argumenta que “(…) no Brasil as ideias estavam fora de centro, em relação ao seu uso europeu. (…) Noutras palavras, definimos um campo vasto e heterogêneo, mas estruturado, que é resultado histórico, e pode ser origem artística” (Schwarz, 1992). Para Roberto Schwarz, a importação de modelos literários e filosóficos europeus para uma realidade social baseada na escravidão e na desigualdade profunda gerou uma distorção produtiva, uma tensão que se tornou a matéria-prima da nossa literatura.
A cabeça pensa onde os pés pisam
Se a forma é o sedimento da história, qual é, então, o conteúdo sócio-histórico que define o nosso presente? Vivemos imersos naquilo que se convencionou chamar de pós-modernidade, um período de incredulidade nas grandes narrativas, de aceleração tecnológica e de dissolução de fronteiras antes consideradas estáveis. A cultura que emerge desse caldo é marcada por uma lógica que afeta diretamente a produção artística.
Terry Eagleton descreve com precisão este cenário. Ele observa que “a cultura pós-moderna (…) desconstrói o limite entre [‘grande arte’ e ‘arte popular’] ao produzir artefatos auto conscientemente populistas ou comuns (…) desconfiando de todas as hierarquias de valor por considerá-las privilegiadas e elitistas” (Eagleton, 2006). A distinção rígida entre o erudito e o popular se esvai, e a própria vida cotidiana, mediada por redes sociais, publicidade e moda, se transforma, em suas palavras, em “uma espécie de espetáculo estético”.
Nesse contexto, os critérios que antes validavam uma obra como “alta literatura”, seja pela complexidade, ironia, distanciamento e coesão interna perdem sua centralidade. A literatura passa a dialogar abertamente com o cinema, com as séries, com a música pop e com a linguagem da internet. O hibridismo de gêneros não é mais uma exceção vanguardista, mas a regra. Julgar uma obra contemporânea com a régua do modernismo é, portanto, um anacronismo; é como tentar medir a temperatura com um velocímetro.
A acusação de que a literatura atual “esqueceu a forma” revela, na verdade, uma recusa em reconhecer que a um tipo de forma se transformou para dar conta de novas urgências e subjetividades. A aparente “falta de forma” é, na realidade, uma nova forma, adequada a um mundo onde as hierarquias foram postas em xeque e a experiência se tornou fragmentada e midiatizada.
É justamente nessa paisagem de incertezas que o “eu” emerge como um território de investigação literária. Se os grandes sistemas de explicação do mundo entraram em colapso, a própria vida, a memória pessoal e o corpo se tornam os pontos de partida para tentar compreender a história com “H” maiúsculo. A autoficção e a escrita de si parece ser uma das muitas respostas a uma crise de imaginação coletiva.
Essa tendência, contudo, não está isenta de contradições, especialmente quando encontra a lógica do mercado. Douglas Barros aponta para essa tensão fundamental: “Querer ser lido, porém, não é a mesma coisa que querer vender – embora muitos confundam os dois. (…) Quando a venda se torna o objetivo principal, isso influencia diretamente as escolhas estéticas” (Barros, 2025). A pressão para figurar em listas de mais vendidos pode levar a uma padronização, onde a autoficção se torna um modelo genérico e facilmente consumível, esvaziando seu potencial crítico.
Douglas Barros vai além, diagnosticando uma crise na própria estrutura do romance como a conhecíamos. Ele questiona: “Como levar a sério um herói em busca de sentido na era da flexibilidade? E como sustentar a voz de um narrador quando a individualização se infiltra em todos os poros da vida social?” (Barros, 2025). As formas clássicas, como o romance de formação (Bildungsroman), que antes narravam a jornada de um indivíduo em busca de seu lugar no mundo, parecem perder o sentido em uma sociedade onde a precariedade e a ausência de futuros estáveis são a norma.
A consequência, segundo Douglas Barros, é que “a escrita mergulhada na experiência, a imanência na realidade porosa e o eu erguido como inscrição dessa mesma realidade parecem ser a resposta a esse quadro” (Barros, 2025). A escrita do “eu” torna-se, assim, o último terreno possível para registrar a verdade de uma experiência, um sismógrafo que capta os tremores de um mundo em constante desagregação.
A Nobel de literatura Annie Ernaux é talvez o exemplo mais eloquente dessa escolha estética e política. Ao narrar a vida de seu pai em O lugar, ela declara seu método de forma explícita: “Para contar a história de uma vida regida pela necessidade, não posso assumir, de saída, um ponto de vista artístico, nem fazer alguma coisa cativante ou comovente. Vou recolher as falas, os gestos, os gostos de meu pai (…) todos os indícios objetivos de uma existência que também compartilhei” (Ernaux, 1983).
A recusa de Annie Ernaux em usar um estilo “literário” tradicional não é uma falha, mas uma decisão estética e, consequentemente, política. Para ela, embelezar a dureza de uma vida operária seria uma traição. Sua escrita é a forma exata, a única forma possível que encontrou para dar conta do conteúdo sócio-histórico de uma existência marcada pela vergonha de classe e pela luta por dignidade.
Se a escrita de Annie Ernaux parte de um “eu” para alcançar o universal da experiência de classe, no Brasil contemporâneo, a literatura tem forjado uma ferramenta ainda mais potente que parte de uma vivência específica para construir uma consciência coletiva. Essa ferramenta emerge das margens, dos corpos e das histórias que foram sistematicamente silenciadas pelo cânone literário.
Isso significa pensar a “escrevivência”, conceito imortalizado por Conceição Evaristo. Aqui ela coloca questões de gênero e raça como lentes cruciais para imaginar o mundo. É um ato de inscrever a experiência da mulher negra, não como um relato individual, mas como a articulação de uma memória coletiva, ancestral e diaspórica. A escrevivência é o ponto de encontro entre a vida, a escrita e o compromisso comunitário.
O propósito dessa escrita não é a conciliação. Não busca ser assimilada ou oferecer conforto. Como adverte a própria Conceição Evaristo, com a contundência que lhe é característica: “A nossa escrevivência não pode ser lida como história para ninar os da casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos” (Evaristo, 2014).
Aqui, o martelo de Bertold Brecht encontra sua expressão máxima. A literatura de Conceição Evaristo, Itamar Vieira Junior, Geovani Martins, Jefferson Tenório, Carolina Maria de Jesus, Jarid Arraes e de tantos outros não está interessada em espelhar a realidade para o deleite estético de uma elite. Ela busca ativamente intervir nessa realidade, disputar narrativas, desestabilizar certezas e, fundamentalmente, incomodar. A forma que assume – oral, poética, fragmentada, violenta, terna – é o som desse martelo em ação.
Retornamos, assim, ao ponto de partida. O debate sobre forma e conteúdo na literatura contemporânea é, em essência, uma disputa sobre a função da arte. Insistir em modelos formais do passado para julgar a produção de hoje é ignorar que o mundo mudou de forma violenta e que a literatura, para continuar relevante, precisa mudar com ele. As formas que hoje nos parecem estranhas ou “menores” são, na verdade, o sedimento honesto do nosso tempo de crises e de emergência de novas vozes.
Ao fim, o que está em jogo é o que Antonio Candido chamou de “o direito à literatura” – o direito não apenas de consumir arte, mas de participar da elaboração simbólica do mundo. A literatura contemporânea, com todas as suas contradições e potências, exerce esse direito de forma radical. Ela nos lembra que a imaginação é um campo de batalha e que a escrita, mais do que nunca, é um dos nossos martelos mais indispensáveis para forjar a possibilidade de outros futuros.
*Débora Tavares é doutora em literatura pela Universidade de São Paulo (USP).
Referências
ADORNO, Theodor W. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 1970.
BARROS, Douglas Rodrigues. Eu, eu mesmo e mais eu: a crise da ficção literária é a crise da imaginação. Revista Cult, São Paulo, 9 set. 2025.
BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
ERNAUX, Annie. O lugar. Tradução de Marília Garcia. São Paulo: Fósforo, 2022. (Obra original publicada em 1983).
EVARISTO, Conceição. Prefácio. In: PEREIRA, Edimilson de Almeida (Org.). Cadernos Negros 37: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2014.
SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. In: ______. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Paz e Terra, 1992. p. 1-18.
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