O maior perigo é não arriscar nada

Clara Figueiredo, sem título, ensaio Filmes Vencidos, Fotografia analógica digitalizada, México, 2019
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Por VALERIO ARCARY*

Devemos correr o risco de tentar mobilizações contra Bolsonaro. Deixar de correr riscos não é uma opção

“Rir é correr o risco de parecer tolo./ Chorar é correr o risco de parecer sentimental. / Estender a mão é correr o risco de se envolver. / Expor seus sentimentos é correr o risco de mostrar seu verdadeiro eu. / Defender (…) ideias diante da multidão é correr o risco de perder as pessoas. / Amar é correr o risco de não ser correspondido. / Viver é correr o risco de morrer. / Confiar é correr o risco de se decepcionar. / Tentar é correr o risco de fracassar. / O maior perigo é não arriscar nada” (Sêneca)

O mês de fevereiro começou com três fatos políticos. Dois eram previsíveis. A vitória do centrão na eleição das presidências da Câmara dos deputados e do Senado, confirmando o seu papel como uma das quatro alas que conformam o governo Bolsonaro, ao lado da ala militar, da liberal-financista e da neofascista foi preparada, minuciosamente, durante meses.

Esse desfecho não é compreensível divorciado do final controlado da operação Lava-Jato. Sete anos depois do seu início a força tarefa liderada por Sergio Moro era um cadáver insepulto, mas incômodo para o centrão. Já tinha cumprido o seu papel ao criminalizar o PT e impedido a candidatura de Lula em 2018. A revelação dos sinistros diálogos por Lewandowski foi fatal para a desmoralização pública da fraude judicial.

O desenlace parece paradoxal porque aconteceu ao mesmo tempo em que o governo perde influência na sociedade (escândalo apocalíptico em Manaus, confronto áspero com o governo de São Paulo, fissura na classe dominante, deslocamento de setores médios para a oposição, carreatas lideradas pela esquerda) eleva o seu grau de blindagem institucional no Congresso. Mas a luta política institucional tem um grau elevado de autonomia, é assim mesmo.

O terceiro fato foi surpreendente. O lançamento abrupto de Fernando Haddad como pré-candidato do PT à presidência nas eleições de 2022 pelo próprio Lula, uma semana antes das comemorações do aniversário do PT, não pode deixar de ser interpretado como uma possível sinalização de renúncia, por antecipação, a uma candidatura em 2022, às vésperas do julgamento do Habeas Corpus de suspeição de Sergio Moro. Se Lula insistisse em manter a possibilidade de sua candidatura deixaria um desafio explícito à perseguição política. O dilema é se Lula deveria correr esse risco diante do julgamento do STF. A iniciativa precipitou um debate sobre candidaturas e alianças, incendiando a discussão entre o PT e o PSol, e levando Ciro Gomes a declarar que prefere uma Frente com o PSDB.

Mas aqueles que já se apressam a retirar conclusões antecipadas para o cenário das eleições de 2022 se enganam. Elas permanecem ainda imprevisíveis. Não é possível fazer qualquer tipo de prognóstico sobre quem será favorito. Não é possível porque não sabemos quais entre as tendências atuais irão prevalecer.

Mas é necessário analisar quais são os posicionamentos que cada bloco político pretende alcançar para poder disputar em melhores condições. Nenhuma força política séria decide lutar contra tudo e contra todos, ao mesmo tempo, com a mesma intensidade. Nesse marco, a recente eleição das presidências no Congresso foi instrutiva.

O bloco liderado por Bolsonaro pretende disputar o segundo turno com a esquerda repetindo o cenário de 2018, explorando a rejeição ao PT, confiante que o voto da base social da direita não lhe faltará, como não lhe faltou no Congresso. O bloco liderado por Doria e Maia ambiciona retirar a esquerda do segundo turno, e prefere medir forças com Bolsonaro liderando a oposição, confiante que o voto da esquerda não lhe faltará, como não lhe faltou no Congresso.

A esquerda tem como missão derrotar a extrema-direita e retirar Bolsonaro do segundo turno. Mas a esquerda não foi bem na eleição de fevereiro para as presidências no Congresso. Porque dissociou a tática da estratégia. Não há luta política sem estratégia clara e sem a disposição de correr riscos táticos. A estratégia deve ser a luta para derrotar Bolsonaro e abrir o caminho para um governo de esquerda.

A esquerda é uma pequena minoria no Congresso, mas tem uma audiência, incomparavelmente, maior na sociedade. Não há nada de errado em marcar posição pelo Fora Bolsonaro dentro do Congresso, nessas condições. Uma sinalização era necessária, depois da catástrofe de Manaus, do atraso na vacinação e da suspensão do auxílio emergencial.

Não compreendemos a evolução da situação brasileira desde 2016 sem uma explicação histórica para o surgimento de uma corrente neofascista com influência de massas. Há um esquema teórico-histórico, perigosamente, influente, mas unilateral na esquerda brasileira. O neofascismo não é apenas uma reação desesperada de uma fração da burguesia diante de um perigo revolucionário iminente. Não havia nem sombra de ameaça de ruptura revolucionária em 2015/16. O neofascismo bolsonarista foi, também, portanto, a expressão da radicalização de setores médios diante da crise econômica-social, e do medo de uma vitória eleitoral da esquerda em 2018. Mas isso vai mudar.

O medo que vai prevalecer em 2022 é a continuação ou não de Bolsonaro no poder. Três hipóteses estratégicas se desenham no horizonte: (a) a conquista do poder por Bolsonaro foi mais do que uma vitória eleitoral dos neofascistas, mas isso não significa que são favoritos na disputa da reeleição. Um período de luta se abre daqui até 2022 e o desfecho é, por enquanto, indefinido, porque há reservas sociais e políticas na resistência, e o projeto bonapartista de subversão do regime é impossível sem uma derrota histórica da classe trabalhadora, da juventude e dos oprimidos; (b) a vitória de uma candidatura de oposição liberal corresponderia à estabilização do regime, mas mesmo ela só é possível com uma resistência popular defensiva suficientemente forte para deslocar a maioria da classe média para a oposição; (c) uma sequência de mobilizações que desperte entusiasmo revolucionário grande o bastante para unir um bloco social e político capaz de confronto com a extrema-direita que abra o caminho para um governo de esquerda.

O PT não podia deixar de correr o risco de ficar fora da mesa do Congresso. O PSol não podia deixar de correr o risco de ficar marginalizado nas comissões. Os dois partidos se dividiram. Riscos devem ser, evidentemente, calculados. Devem ser medidos à luz de um exame sóbrio e lúcido da relação social e política de forças. As possíveis consequências devem ser consideradas antes de fazer escolhas. Os cenários precisam ser desenhados como hipóteses de trabalho.

O mesmo critério é útil diante do julgamento do Habeas Corpus que pode favorecer Lula. Parece possível que, na segunda turma do STF, algum tipo de suspeição de Moro venha ser aprovada, mesmo se ainda é incerto, senão improvável que Lula consiga recuperar seus direitos políticos.

Devemos correr o risco de tentar mobilizações contra Bolsonaro apoiados na divisão das camadas médias. Deixar de correr riscos não é uma opção. A pior derrota é aquela sem luta.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).

 

 

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