“Onde é que a esquerda errou?”

Imagem: Valeria Kodra
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Por EUGÊNIO BUCCI*

O principal erro foi permitir que a democracia se tornasse um lero-lero distante da vida real, falhando em garantir dignidade básica e transparência, enquanto a arrogância intelectual impedia ouvir o descontentamento que alimenta o fascismo

1.

A pergunta que dá título a este artigo aparece entre aspas porque não é de minha autoria. Trata-se de uma citação. A interpelação foi enunciada pelo presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 24 de setembro, em Nova York. A fala aconteceu durante a Assembleia Geral da ONU, numa reunião paralela dedicada a discutir o futuro da democracia, ao lado dos presidentes Gabriel Boric, do Chile, Pedro Sánchez, da Espanha, Gustavo Petro, da Colômbia, Yamandú Orsi, do Uruguai, e outras lideranças.

Lula usou palavras duras e diretas: “O que me importa hoje é a gente responder, para nós mesmos: onde é que os democratas erraram? Onde e em que momento a esquerda errou? Por que é que nós permitimos que a extrema direita crescesse com a força que está crescendo?”.

Sim, as interrogações procedem. Não apenas procedem, como estão chegando tarde. Aliás, o atraso é um dos erros a ser computados numa lista que será extensa e dolorosa.

Qual responsabilidade dos líderes “democratas” sobre as frustrações que deram espaço para a escaladas dos extremismos de estilo fascista? Qual a responsabilidade daqueles que se declaram “de esquerda”? Os “democratas”, especialmente os “de esquerda”, têm o dever de refletir, e refletir publicamente.

Olhemos para o mundo. A falta de efetividade das políticas sociais de governos classificados como progressistas tem um peso enorme na equação. No século XXI, a saúde pública não melhorou em parte alguma. Nos Estados Unidos, é um vexame. A educação, na Europa e na América do Norte, não trouxe notícias animadoras.

O acesso ao trabalho vai mal. Os direitos rareiam e os padrões de consumo se deterioram, mais ou menos como o meio ambiente. A desigualdade recrudesce. As plutocracias se desinibiram ao nível da obscenidade. As tensões geradas pela imigração seguem sem solução.

A “esquerda” tem medo de falar das adversidades geradas pelas multidões migrantes. Com isso, entrega a pauta de bandeja para a direita antidemocrática, que surfa nas ondas de desinformação, que ela mesmo patrocina, e se sente em casa nas plataformas sociais (ou antissociais). De seu lado, os “democratas” recalcitram, incapazes de regular as big techs e suas ferramentas viciantes e desagregadoras.

No Brasil, até as bets, ou seja, até o mercado digital dos jogos de azar, com seus expedientes inescrupulosos para criar dependência em crianças e afanar dinheiro de adultos pobres, triunfam sem sofrer nenhum embaraço do poder público. A velha “pátria de chuteiras” virou uma continental casa de apostas, e sem chuteiras: a pátria dos viciados legalizados e descalços.

2.

Nesta terra, os “democratas” se esqueceram das dignidades básicas e desaprenderam que, se não se traduz em materialidades cotidianas, como casa melhor, esgoto bem tratado, um futuro para os filhos, a democracia simplesmente não existe. Segurança pública? Esqueça. Virou monopólio dos discursos de políticos financiados pelas milícias, que só pioram a segurança pública. As bancadas de “esquerda” emudecem. Quando tocam no assunto, vêm com digressões excêntricas e exegeses inapreensíveis.

Não é só isso. Descuidando das materialidades cotidianas, os “democratas” e a “esquerda” também descuidaram da forma jurídica, sem levar em conta que a democracia, quando não se traduz em ritos formais cristalinos e eficazes, perde sua finalidade.

Numa ordem democrática, zelar pelas formas institucionais não tem nada a ver com formalismo. Uma licitação honesta não é formalismo. Respeitar o teto salarial do funcionalismo público não é formalismo. Dar transparência às emendas parlamentares não é formalismo.

Não obstante, por distração ou desleixo, os “democratas” e a “esquerda” agiram e ainda agem como se não houvesse problema em negligenciar a forma. Esse erro tão invisível quanto catastrófico deixou mais fácil para os trumpistas, lá e aqui, jogarem o Estado desorganizado no colo do crime organizado.

O que temos agora? O desencanto, o desespero e a anomia adubam o canteiro para o fascismo. Os “democratas” e a “esquerda” já viveram essa tragédia e não aprenderam. Diante da recidiva totalitária, não esboçam reação à altura, nem mesmo nos Estados Unidos, onde as pulsões autocráticas escorrem feito lava incandescente e transformam o secular pacto federalista em carvão estúpido e fumegante.

Para arrematar, é preciso arrolar a arrogância blasée que faz da democracia um lero-lero afetado e esnobe. Os “democratas” e a “esquerda” não souberam ouvir divergências, acolher descontentamentos e dialogar. Não souberam educar, porque não souberam aprender.

Parecem crer que suas presunções pernósticas são o mais refinado sinônimo da verdade. Imaginando erguer a cabeça, apenas empinaram o nariz, o que abriu flancos para a demagogia bruta da extrema direita.

Enfim, Lula perguntou certo, ainda que tarde. Tomara que haja tempo. Onde é que os “democratas” e a “esquerda” erraram? Algo me diz que ele sabe, ou não estaria indagando. Que as respostas – e as correções de rumo – não demorem tanto.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica). [https://amzn.to/3SytDKl]

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.


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