Por EMILIANO JOSÉ*
A soberania ressurge não como isolamento, mas como a coragem de erguer a voz no concerto das nações, dialogando sem subserviência e priorizando o próprio povo em um mundo de hegemonias agressivas
1.
Os conceitos ganham força ou perdem ao sabor das circunstâncias, do quadro histórico, sempre. Penso em soberania, conceito tão valioso. Por algum tempo, e nem volto muito no tempo, tal conceito perdeu força. Sobretudo, a partir, no caso brasileiro, do fortalecimento da ideia de uma dependência do País ao capital internacionalizado, a ganhar robustez no mundo especialmente quando da emergência do neoliberalismo, com Margareth Thatcher à frente.
Podíamos voltar um pouco no tempo, no Brasil, e falar de Juscelino Kubitscheck. A par de se colocar à frente de um governo democrático, vítima de duas tentativas do golpe, fortaleceu a ideia de um desenvolvimento vinculado ao capital estrangeiro, e a chegada das indústrias automobilísticas são o símbolo maior da empreitada internacionalizante. O governo de João Goulart tentou, de variadas maneiras, conter o voraz apetite das multinacionais, e tal política foi uma das causas do golpe de 1964.
Vieram os anos 1990, eleição de Fernando Collor, e a festa da ideia internacionalizante, a ideia de soberania, sufocada. Mas, um governo espécie ópera-bufa, vida curta.
A época áurea foi sob Fernando Henrique Cardoso, eleito duas vezes. Não precisamos repisar, sob uma situação democrática. Um dos formuladores, ou ao menos assim rotulado, da teoria da dependência. Na pena dele, uma dependência subordinada. Celebrava-se a presença do capital multinacional como uma bênção. Ao governar, colocou em prática essa visão.
Não se quer aqui discutir a teoria da dependência, discussão a ser feita em outro momento. Registrar apenas outras tantas vozes dissonantes, a não acompanhar o pensamento de FHC, como Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra. Para vários desses autores, falar em teoria da dependência implicava, ao se constatar a presença avassaladora do capital internacional, o rompimento com a subordinação, encontrar caminhos próprios para superar o desenvolvimento, nunca o de se ajoelhar ao imperialismo. Em vários deles, a presença do pensamento marxista, abandonado por Fernando Henrique.
João Goulart, antes, tentou caminhar na direção de romper a subordinação, como o fizera Getúlio Vargas, especialmente nos anos 1950, quando, por isso, é levado ao suicídio. Com os dois, a ideia de soberania andou em alta. Não podiam continuar. Era o aço, era o petróleo. Era Petrobras, BNDES, uma visão nacionalista, e nacionalismo rimava sempre com soberania. Lembro de um discurso de Tancredo Neves, logo após o suicídio, sempre lembro, dizendo da causa básica da campanha contra Getúlio: a Petrobras, pedra angular da soberania.
2.
Fernando Henrique Cardoso implantou o neoliberalismo no Brasil. Fez isso com rigor. Levou a sério a específica teoria da dependência, elaborada por ele, deu concretude a ela. Não para qualquer rompimento, ao contrário. A teoria da dependência defendida por ele implicava renunciar a qualquer ideia de soberania.
Abrir as portas, escancarar a casa para a continuidade da chegada triunfal do capital internacional, criar aqui uma espécie de ilha paradisíaca para o capitalismo, assegurar rendimentos exponenciais aos homens de dinheiro dos países centrais. A ideia de soberania, insista-se, a um canto: abandonada, espezinhada, quando não ironizada.
Quiséssemos nos desenvolver, nos entregássemos. Integrar-se ao centro capitalista, inevitavelmente de modo subordinado, e o inevitavelmente era do pensamento dele e dos seguidores, alguns deles até hoje defensores da lógica capitalista, de forma extremada. E nós sabemos aonde o País chegou, o desastre a que fomos levados sob o governo dele.
O povo brasileiro teve sabedoria. Na quarta tentativa, Lula, chega à presidência, em 2002. Não mais o olhar da continuidade da dependência. Olhar para dentro, soberania. Sem desprezar a relação com o resto do mundo, por evidência. Olhar para os trabalhadores. Pensar na distribuição de renda. Enfrentar a fome. Assim devia ser pensada a soberania, com o olhar do metalúrgico.
Sabia de onde vinha, a quem devia satisfação. Lidava com um país capitalista, sabia disso. Não deixou de levar em conta esse quadro. Sem se render à lógica exclusiva do capital, sempre propenso, ontem e hoje, a sangrar o povo trabalhador. Lula deu força à ideia de soberania. Não mais uma inserção subordinada, não mais a sacralização da dependência. Buscar mover-se de modo autônomo no mundo, dialogando, sem subserviência.
O mundo, hegemonizado pelo capital, e hoje de modo muito especial pelo capital financeiro, não considera fronteiras. Não quer considerar. Essa lógica, hoje exacerbada. Não é propriamente uma novidade. Havia sido antecipada com brilhantismo por Marx, lá pelos meados do século XIX. Assim, nos dias atuais, quem governar há de levar isso em conta.
É possível, no entanto, considerar isso sem desprezar a prioridade à soberania de cada país, singularidade de cada nação nos caminhos para o desenvolvimento. Considerar isso sem deixar de lado os interesses das maiorias, do povo de cada país.
3.
O Brasil, com o golpe de 2016 contra Dilma Rousseff, Michel Temer à frente, teve uma brutal recaída na abertura dos portos, na entrega obscena do País aos interesses do capital internacional, antessala da chegada de um presidente de extrema-direita ao poder, em 2018, facilitada pela absurda prisão de Lula.
A principal tarefa de Jair Bolsonaro, autoconfessada, era destruir todas as políticas em benefício do povo brasileiro, e favorecer, no limite, aos interesses do imperialismo, de modo especial, satisfazer os apetites dos EUA. Em 2022, gente brasileira acordou. Lula de novo, com a força do povo.
Recupera-se com muita força a ideia de soberania. Não só reconstruir todas as políticas públicas iniciadas com ele e Dilma Rousseff, voltadas à melhoria das condições de vida do povo brasileiro. Lula confirma a vocação de líder mundial. Voltado ao combate à fome. À defesa da paz. Sem nunca se acovardar diante do império em decadência.
Um país soberano não podia admitir o genocídio de Gaza. Nem a continuidade da guerra da Ucrânia. Nem os absurdos trumpistas, pretendendo asfixiar a economia brasileira com taxações absurdas. Sempre negociar, dialogar. Nunca abrir mão da soberania, agora renovada, fortalecida.
Foi essa posição, essa política de manter bem alta a bandeira da soberania, o caminho a levar o governo Donald Trump a negociar. Ninguém respeita políticos com vocação subalterna. Lula sabe disso. Como disse sempre: dialogar, sempre. Nunca, no entanto, sob qualquer ameaça, sob qualquer chantagem.
Nunca ao preço da nossa soberania. Nunca às custas de pretender acossar o Judiciário brasileiro, de resto um poder independente na institucionalidade democrática brasileira. Cabeça erguida, nenhuma submissão. Quem muito se agacha, corre o risco de não mais levantar.
Nesse mundo de tantos conflitos, e isso não constitui novidade, é necessário manter a espinha ereta, o coração tranquilo. Serenidade. Saber mexer-se num quadro de muitas dificuldades. Há uma espécie de trem suicida nos trilhos. A toda velocidade. Se não o pararmos, a humanidade corre riscos, sérios. Parar esse trem capitalista, destrutivo, reclama potentes vozes da soberania. Lideranças sem medo.
Cada país deve levantar a voz em defesa de seus interesses sem esquecer o entorno, os riscos enfrentados pela humanidade. Abraçar o caminho da paz. Do combate à fome. Do fim dos genocídios, como o de Gaza. Dos ataques desenfreados à autonomia dos povos, como o efetivado agora à Venezuela, como o brutal bloqueio a Cuba, levado à frente desde os primeiros dias da Revolução Cubana.
Lula, em nenhum desses casos, tem vacilado. Mantém-se ao lado dos países agredidos pelas armas do império, pela guerra de comunicação dos grandes conglomerados das Big Techs, pelos genocídios. Sem deixar de fazer luta para fazer parar o trem suicida, COP 30 vem aí. E nunca desprezar o diálogo. Coisa da boa política. Soberania, recuperada. Um conceito novamente respeitado. Para o bem do Brasil. E da humanidade.
*Emiliano José é jornalista, escritor, membro da Academia de Letras da Bahia. Autor, entre outros livros, de O cão morde a noite (EDUFBA). [https://amzn.to/46i5Oxb]
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