Um intelectual tenta dizer quem é

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Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA*

Breves confissões de um intelectual socialista e ambicioso, que sempre quis salvar o mundo, e prestes a fazer 90 anos

Afinal, quem sou eu? Esta pergunta eu já me fiz muitas vezes, e creio que as respostas que me dei através dos anos foram coerentes mas incompletas. Agora, quando estou prestes a fazer 90 anos, ocorreu-me que seria uma boa hora para dar à pergunta uma resposta mais precisa, mais pensada.

Eu sou antes de mais nada um intelectual. As ideias, as teorias, os grandes pensadores sempre me fascinaram. Um intelectual socialista, mas burocrático-burguês. Uma primeira contradição que, como outras, venho resolvendo na medida em que isso é possível, dialeticamente. Burocrático porque nasci em uma família de classe média na qual meu pai foi jornalista, advogado, servidor público, político e romancista, e minha mãe, professora do ensino fundamental. Burguês porque trabalhei durante 25 anos em uma grande empresa e construí um patrimônio que me tornou independente no plano econômico. Intelectuais geralmente se tornam independentes no serviço público, eu, trabalhando em uma empresa capitalista.

Um intelectual ambicioso. Eu sempre quis “salvar o mundo”, construir uma grande teoria, tornar o Brasil um país desenvolvido, ser amado pela minha família e amigos próximos e respeitado pelos meus pares. Nunca quis ser cada vez mais rico, e quando, em 1994, alcancei a independência econômica, deixei a empresa e me dediquei em tempo integral à vida acadêmica.

Mas antes recebi um convite surpreendente do amigo Fernando Henrique Cardoso e voltei à política por mais seis anos. Não busquei o poder político, nem o poder nas organizações; o prestígio sempre me atraiu mais do que o poder. Por isso, quando me tornei um intelectual de tempo integral, passei a recusar qualquer cargo administrativo. Queria tempo para estudar, pesquisar e escrever.

Creio que a definição mais geral é a de que sou um economista político. Em dois sentidos: no sentido tradicional, como foram os economistas políticos clássicos, de Adam Smith a Karl Marx, portanto não um neoclássico, e no sentido moderno, como são os economistas que pensam historicamente e incluem no seu campo de análise a ciência política, a sociologia e a história.

Um intelectual socialista, mas não um revolucionário. Estou convencido que o capitalismo jamais produzirá uma sociedade igualitária, mas não acredito que se possa chegar ao socialismo através da revolução. As experiências da Rússia e da China foram claras a respeito. Elas foram assumidas pela burocracia dos respectivos partidos comunistas, porque a classe trabalhadora não tinha condições de assumir a direção nem das empresas nem do próprio país.

A transição para o socialismo acontecerá um dia, mas aqui há um paradoxo. Quando o capitalismo for eventualmente corrigido pelos esforços coletivos de trabalhadores, intelectuais, se cidadão com espírito republicano e se tornar uma sociedade suficientemente igualitária, poderá haver autogestão generalizada. A diferença entre o trabalho intelectual e o manual teria, então, praticamente desaparecida e, estaremos, então, chegando ao socialismo. “Um socialismo burguês”, me dirão. Talvez, não o nego. Mas a alternativa aos socialistas burgueses são os socialistas burocráticos, estão empregados no Estado ou em alguma organização sem fins lucrativos. Os socialistas lutaram bravamente por um socialismo que acontecesse mais cedo, muitos morreram nessa luta, mas infelizmente fracassaram.

Um nacionalista econômico anti-imperialista, não um nacionalista étnico que pode ser violento. A desigualdade não existe apenas entre as classes sociais, entre os gêneros, entre as raças, entre as opções sexuais; existe também entre os países. Os países mais avançados são inevitavelmente imperialistas ou associados à potência imperialista. Eles procuram impedir que os países subdesenvolvidos se industrializem; querem manter a troca desigual e exportar capitais; não querem concorrência no futuro. E usam o liberalismo econômico como instrumento para impedir a industrialização dos países da periferia do capitalismo. Não resta, portanto, alternativa senão ser anti-imperialista, adotar a perspectiva centro-periferia.

Sou um economista desenvolvimentista, não um liberal. Só há duas formas de coordenar o capitalismo no plano econômico: ou o desenvolvimentismo, no qual o Estado intervém moderadamente na economia e tem uma perspectiva nacionalista, ou o liberalismo econômico, no qual se procura limitar ao máximo a intervenção do Estado. Todas as revoluções industriais e capitalistas e todos os processos de crescimento acelerados foram períodos desenvolvimentistas. Quando nos países ricos o liberalismo econômico é dominante, como o foi entre 1980 e 2020, mesmo eles são prejudicados. Vimos isto nos Estados Unidos e na Europa ocidental.

Sou um economista novo-desenvolvimentista. “Novo Desenvolvimentismo” é o nome da nova teoria econômica e economia política que venho desenvolvendo com um grupo de amigos. Sou um desenvolvimentista estruturalista clássico e um economista pós-keynesiano, mas espero ter acrescentado alguma coisa no plano teórico. Aprendi muito com Karl Marx, Friedrich Engels e os demais marxistas, mas não sou um marxista. Não apenas porque o mundo mudou muito desde que eles viveram, mas também porque não sou um revolucionário. Adoto, porém, o método histórico e dialético de Marx e Engels. Considero o materialismo histórico indispensável para se compreender as mudanças de longo prazo que ocorrem no capitalismo. Por isso, eu às vezes digo que sou “quase marxista”.

Além de socialista, sou um republicano. A estrutura econômica está na base da história, mas esta é também produto das ideias e das ações dos homens. Que não são apenas individualistas; acredito que em cada sociedade pode haver um número razoável de pessoas, especialmente políticos dotados de virtudes cívicas que fazem a diferença. Defendo também o liberalismo político original, aquele que defende as liberdades fundamentais ou os direitos civis, mas rejeito o liberalismo individualista. Nada destrói mais uma sociedade do que o individualismo exacerbado.

Eu sou um crítico da sociedade capitalista e dependente em que vivo, o Brasil. Posso fazer críticas duras a certos governantes e à alienação das nossas elites, mas está sempre claro para mim que essa crítica deve ser solidária. Aprendi isto com John K. Galbraith, que criticou duramente a sociedade americana e as suas elites, mas foi sempre solidário com sua nação. Não tenho, porém, nenhuma solidariedade por estados que promovem o apartheid e o genocídio, como é hoje o caso de Israel e de Ruanda agindo no Congo.

Fui um administrador de empresas. Aprendi a sê-lo na FGV, na Michigan State University, e no Pão de Açúcar. Ali, tendo Abílio Diniz como empresário e eu como administrador, construímos uma grande empresa. Já na área pública, nos ministérios que ocupei, creio ter sido mais que um administrador; fui também inovador.

Fui católico na juventude. Foi quando fiz meus principais amigos como Fernão Bracher e Jorge Cunha Lima. Há muito, sou materialista; as religiões são meras ideologias alienantes; como instituições, têm um papel, fazem parte do sistema de coordenação social e política da sociedade. Não é preciso ser idealista para ter um grande respeito pelas ideias, não é preciso ser religioso para desenvolver sua própria espiritualidade.

Sou um inveterado e apaixonado professor. Herdei isto de minha mãe. Como professor, fiz também alguns dos meus melhores amigos, como Evelyn Levy e José Marcio Rego. Quando repórteres me perguntam como quero que me identifiquem, se como ministro ou professor, eu digo sempre, “professor”.

Finalmente, sou um homem fiel. Fiel a minha amada mulher, Vera, com quem estou casado há 66 anos. Fiel à Fundação Getúlio Vargas, onde estou desde 1959. Fiel a meus amigos – amigos antigos, muito antigos.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Editora FGV).


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