A arte salva

Jackson Pollock, Circle, c. 1938-41
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Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.*

Crônica sobre o poeta Heinrich Heine.

“A língua alemã é uma pátria mesmo para aqueles a quem a tolice e a maldade negam uma pátria” (Heinrich Heine).

Permita-me, leitor ou leitora, escrever sobre um tema totalmente diferente – poesia, sim, poesia! Na verdade, sobre determinado poeta. É estranho? Talvez seja, mas não creio. Há uma frase de Nietzsche que merece ser lembrada: “Wir haben die Kunst, damit wir an der Wahrheit nicht zugrunde gehen”. (A arte existe para que a verdade não nos destrua.) Precisamos dela hoje mais do que nunca. E arte realista, diga-se de passagem, é um equívoco do começo ao fim.

Mas não era sobre Nietzsche, que também foi poeta, que queria escrever hoje, mas sobre outro poeta alemão – Heinrich Heine. Na verdade, judeu alemão, da primeira metade do século 19, da primeira geração de judeus emancipados, ainda muito perseguidos, ainda muito discriminados. E no século seguinte, como sabemos, tudo isso ficaria inacreditavelmente pior.

Nietzsche pensava certamente em Heine quando escreveu, tongue in cheek, para provocar os antissemitas do seu tempo, que a melhor mistura possível era entre alemães e judeus. Há outros exemplos notáveis – Marx, Freud, Einstein, Kafka (judeu tcheco, mas que escrevia em alemão e fazia parte do espaço cultural alemão), Rosa Luxemburgo, Hannah Arendt, Stefan Zweig, Otto Maria Carpeaux, Roberto Schwartz, entre muitos. Não estou aqui fazendo diferença entre judeus alemães e austríacos, por motivos óbvios. Tento usar “judeu” e “alemão” em sentido mais cultural do que étnico-racial. Até porque, ao longo dos séculos, os judeus se miscigenaram muito com os diferentes povos europeus. E os alemães, por sua vez, incluindo os austríacos, também se misturaram muito com celtas e latinos, de um lado, e eslavos e húngaros, do outro. Para encontrar a célebre pureza “ariana” é preciso olhar mais para o Norte, para a Escandinávia. Lá encontramos povos germânicos mais puros, que nos legaram, entretanto, bem menos do que os miscigenados alemães. Mas fecho esse parêntese e volto a Heine.

Nunca me saiu da lembrança o dia em que conheci Heine. Eu era desde os 17 anos um leitor voraz de Nietzsche. Não entendia grande coisa, mas adorava mesmo assim. (Continuo falando de Nietzsche, mas chego a Heine em seguida). Pois bem, Nietzsche tinha Heine em altíssima conta, chegando a escrever em sua autobiografia intelectual, Ecce Homo: “O conceito mais alto de poeta foi Heine quem me ofereceu. Procuro em vão em todos os reinados dos milênios por uma música tão doce e apaixonada. Ele tinha aquela crueldade divina sem a qual não consigo conceber a perfeição. E como manejava o alemão!”. Esses elogios rasgados despertaram a minha curiosidade.

Em 1977, com 22 anos, eu estudava em Londres e passeava um dia pelas livrarias de Tottenham Court Road. (Nem acredito que já tive 22 anos um dia, um terço da idade que tenho hoje!). Topei por acaso com um pequeno livro de poemas de Heine (que tenho até hoje) e, abrindo ao acaso, encontrei o seguinte poema (que sei de cor até hoje). Recito, primeiro, o original porque, como já observou alguém, poesia é por definição o que escapa à tradução:

Herz, mein Herz, sei nicht beklommen,/Und ertrage dein Geschick./Neuer Frühling gibt zurück,/Was der Winter dir genommen.
Und wieviel ist dir geblieben!/Und wie schön ist noch die Welt!/Und, mein Herz, was dir gefällt,/Alles, alles darfst du lieben!

Traduzo assim:

Coração, meu coração, não fiques aflito,/E suporte o teu destino/Nova primavera devolverá/O que o inverno te tomou.
E quanto ainda te resta!/E como é belo ainda o mundo!/E, meu coração, o que te agradar,/Tudo, tudo podes amar!

Foi amor à primeira vista. Tornei-me então leitor voraz de Heine também.

Abro outro pequeno parêntese. Antes que o leitor pense que estou fazendo aqui uma exibição de cultura, quero confessar lisamente que a minha cultura é muito limitada, mas muito mesmo. Assim, por exemplo, mal li Shakespeare (só os sonetos), quase nada de Proust, apenas partes da Divina Comédia, de Flaubert só Madame Bovary, de Zola só a carta aberta em defesa de Dreyfus, quase nada de Goethe e Schiller, nada de Vitor Hugo, nada de Saramago, nada de Castro Alves, nada de Drummond, nada de Guimarães Rosa. Só consigo me dedicar a autores que despertam o meu afeto e o meu entusiasmo. Heine está entre eles.

Repare, leitor, no final do poema acima transcrito. Quando o li pela primeira vez, em pé, na livraria de Tottenham Court Road, o verso me conduziu inconscientemente a esperar o verbo “ter” no fecho. Lindo que tenha aparecido em vez disso o verbo “amar”, não é mesmo?  Não me esqueço da emoção que esse fecho produziu em mim há 44 anos!

Muito da poesia de Heine é mais sofrida, desesperançada. Como notou o grande crítico literário Marcel Reich-Ranicki (outro extraordinário judeu alemão, nascido na Polônia), Heine “estilizava a sua dor para poder suportá-la”. A observação de Reich-Ranicki, que reli recentemente, foi que me deu vontade de escrever esta crônica.

Heine estilizava sua dor de forma cintilante. Terminou um poema assim: Gut ist der Schlaf, der Tod ist besser – freilich/Das beste wäre, nie geboren sein. (Bom é o sono, melhor a morte – claro/Melhor mesmo seria nunca ter nascido.)

Outro verso: Zwecklos ist mein Lied. Ja, zwecklos/Wie die Liebe, wie das Leben,/Wie der Schöpfer samt der Schöpfung! (Sem sentido é a minha canção. Sim, sem sentido/Como o amor, como a vida/Como o criador e toda a sua criação!)

Heine era um romântico, mas um romântico defroqué, excomungado, como notou um crítico francês na época. Ele tomava distância dos exageros e dos ridículos do romantismo. Fez crítica feroz à escola romântica alemã, em livro polêmico, mas justamente celebrado. Um romântico ambivalente, e por isso mesmo mais interessante.

Em outro poema, ele se vale da figura mitológica de Atlas para escrever: Ich unglückselger Atlas, eine Welt, /Die ganze Welt der Schmerzen, muss ich tragen,/Ich trage Unerträglilches, und brechen/Will mir das Herz im Leibe.

Du stolzes Herz! du hast es ja gewollt!/Du wolltest glücklich sein, unendlich glücklich/Oder unendlich elend, stolzes Herz,/Und jetzo so bist du elend.

(Eu, Atlas infeliz, carrego um mundo/o mundo inteiro de dores, devo carregar/ Suporto o insuportável/e o coração quer se partir dentro do meu peito.

Coração orgulhoso! foi o que quiseste! /Queiras ser feliz, infinitamente feliz/Ou infinitamente infeliz, coração orgulhoso, /E agora és infeliz.)

Peço desculpas, leitor. Fiz o meu melhor para dar uma ideia do que foi Heine para quem não lê alemão. Mas o meu melhor, a bem da verdade, é uma bomba. Não consegui dar senão uma pálida ideia da beleza da sua obra. Deve haver por aí traduções muito melhores do que essas que improvisei aqui. Talvez não para o português, mas para o francês ou para o espanhol.

Tive a sorte na vida de poder aprender alemão na Alemanha, quando adolescente. E como vale a pena saber a bela língua alemã! Nem que seja apenas para ler Heine no original. Queria, também, saber russo para ler Alexandre Pushkin e Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski no original. Mas aí já é pedir demais.

*Paulo Nogueira Batista Jr. foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata (LeYa.)

Versão ampliada de artigo publicado na revista Carta Capital, em 16 de abril de 2021.

 

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