A crise do sistema imperial

Eliezer Markowich Lissitzky, Proun 1D, 1919
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Por MARTIN MARTINELLI*

Comentário sobre o livro, recém-lançado, de Claudio Katz

Este é um livro fundamental na batalha de ideias da atual reconfiguração mundial. O trabalho adota uma visão abrangente e sistêmica do século XXI. É uma caixa de ferramentas para partir de visões globais e poder realizar uma análise da situação sem se confundir. Mas também tendo em mente uma abordagem ao mundo desde a chamada “Guerra Fria”. Como isto foi modificado nas últimas quatro décadas com base em diferentes formas do sistema capitalista e outras variantes.

Nessa perspectiva, Claudio Katz, renomado e influente autor marxista, propõe verificar as singularidades do imperialismo do século XXI. Ele considera esta noção básica para compreender de forma transversal a crise do sistema imperial. E, além disso, condensa as principais ideias deste pensador em mais de quatro décadas de intenso trabalho científico e jornalístico.

Da economia, antes das ciências sociais, complementa um exaustivo exame teórico realizado no seu texto Sob o Império do Capital (Ediciones Luxemburgo, 2011), que aprofundou desde Lênin e Kautsky como antagonistas, até Hilferding, Luxemburgo e Hobson . Um manual rigoroso sobre o imperialismo (clássico, pós-guerra e actual) e a sua aplicação à realidade. Lá ele respondeu que essas ideias deveriam ser atualizadas para estudar a situação do pós-guerra e o contexto mais recente.

Duas premissas básicas parecem estar por trás deste trabalho de leitura essencial: o capitalismo contemporâneo é claro, mas o sistema imperial permanece mais indefinido. Porém, especificamos que, ao lê-lo, consegue-se uma abordagem precisa desses dilemas. A outra é que o sistema imperial difere do clássico, sofreu mutações após a implosão da União Soviética e foi novamente modificado pela ascensão implacável da China e pela recomposição de uma potência militar russa, juntamente com a estagnação ou crise da Europa e Japão. . Apesar dos diferentes níveis de tensão entre as potências, isto não levou a confrontos militares directos entre elas desde 1945.

Este ativista e intelectual comprometido sintetiza o tema ao postular o conceito de sistema imperial. Ele ordena as lógicas territoriais geopolíticas e econômicas, ou mesmo o chamado ajuste espacial em outros escritos anteriores, para aqui lhe dar um formato de estrutura e interação, entre as diferentes seções de sua escrita. Sintetiza o principal dispositivo de dominação global.

Ao mesmo tempo, atualiza seus trabalhos, um anterior sobre o tema e outro como A Teoria da Dependência 50 Anos Depois (Batalha de Ideias, 2018), onde investiga o uso do conceito de imperialismo como nodal nas interpretações do capitalismo atual. Aqui, uma boa fração de seus postulados é expressa como ideias compartilhadas ou discutidas.

As seis partes do livro subdividem-se em 22 capítulos, que o autor escreveu entre 2020 e 2023, como tema de investigação com fio condutor, e nos quais pensa há anos. A primeira parte já decompõe a sua ordem do sistema imperial na sua visão de crise e conflito constante. Começa mostrando a ordem e as principais teorias utilizadas para avaliar cada região analisada. Vale esclarecer que a situação de Nuestra América está presente em seus estudos destes anos, mas aparecerá no iminente livro mais específico Las encrucijadas de América Latina. Direita, progressismo e esquerda no século XXI (Batalha de ideias, 2023), e somado a isso.

Exibe o sistema imperial do qual os Estados Unidos marcaram as prerrogativas desde 1945. Com o qual a dita superpotência procura recuperar o controle, acumular riquezas, esmagar rebeliões e bloquear os seus concorrentes. No texto, ele a examina a partir de uma percepção tripartida nas dimensões econômica, política e geopolítica, as demais estão subsumidas a estas.

Esta organização imperial reflecte-se nas potências europeias como alter-imperialismo, especialmente Inglaterra e França, grandes impérios do passado com reminiscências actuais (maiores em poder militar que o Japão e a Alemanha, potências económicas). Outros co-imperiais, como o Canadá, a Austrália e Israel, são apêndices colaboradores nas diferentes regiões. E em diferentes graus de associação ou mesmo em oposição, aparecem as potências consideradas subimperiais como a Turquia, a Arábia Saudita e o Irão.

Contra este sistema estão dispostos concorrentes sistémicos: a Rússia, uma potência não-hegemónica e um império em formação, e a China como uma grande potência, com uma restauração inacabada do capitalismo e a ausência de políticas imperialistas. Portanto, não existe transnacionalismo ou um império global, mas sim uma estrutura piramidal liderada pelos Estados Unidos e uma oposição de potências alternativas, China e Rússia, disputando o poder em regiões estratégicas.

Na segunda parte apresenta o esboço do sistema imperial: os Estados Unidos, que mais tarde serão seguidos pela China; num outro nível, a Rússia e o Médio Oriente e, finalmente, os debates sobre o imperialismo e o anti-imperialismo. Além de esclarecer de quais posições se afasta, o resultado a que chega promete novas prorrogações.

Este quase quarto do novo século é caracterizado pela fracassada recuperação imperial dos Estados Unidos. Falhou nos objectivos das suas incursões na Eurásia, a partir do Iraque e do Afeganistão, ou na Síria e na Líbia. O intervencionismo histórico e a centralidade bélica norte-americana baseiam-se na sua economia armamentista e na liderança da NATO, para manter o poder das suas finanças e do dólar, controlar os recursos naturais, subjugar o povo e subordinar os seus rivais.

Dois fatores levam a estes resultados: as fracturas internas do país e a erosão causada pela sua crise de longa duração. Como ao longo do texto, apresenta os vários cenários em tensão, em vez de tentar prever resultados futuros. Também discute teorias de declínio hegemônico, diferencia império de imperialismo e articula a lógica do império do capital baseado no capitalismo industrial. Desta forma, e em geral, considera aproximações ou dissidências com autores como Arrighi, Amin, Mandel ou Wallerstein, aos quais acrescenta Harvey, Perry Anderson ou Nazanín Armanian.

A terceira seção é um dos núcleos do texto, pois enfoca a grande novidade da época, o aspecto deslumbrante da China, sua passagem da periferia para o centro. Estuda a relação entre os Estados Unidos e a China e distingue as suas posições numa situação de crescente hostilidade.

Aí demonstra a geopolítica agressiva da potência norte-americana nas proximidades do gigante asiático. Sem propor uma leitura apenas indulgente disto, avalia as suas ações em países terceiros, dado o seu atual papel expansivo. É por isso que ele a categoriza como diferente do imperialismo, mas não anti-imperialista. Tal como não pertence ao Sul Global, resta saber como se desenrolará a sua geopolítica cautelosa e a sua expansão económica. Na China – como no resto do mundo – observa-se que as lutas populares terão um papel marcante na mudança do cenário internacional.

A questão subjacente é se a China se tornou uma potência imperialista ou não. Indica que a sua caracterização económica não é suficiente para alinhá-la nesse grupo. Organiza o quadro com base na ideia de a China ir para o estrangeiro, dada a superprodução e o sobreinvestimento. Caracteriza-o como um “New Deal à escala global” para investimento em infra-estruturas, onde despeja parte dos seus excedentes. No entanto, ele argumenta que não é afetado pela financiarização ou pelo neoliberalismo. Aí, o protesto social resolverá em grande parte o rumo adoptado pelo país com a maior classe trabalhadora do mundo. Além disso, questiona-se se este novo estatuto promove a superação do subdesenvolvimento dos seus parceiros ou é o único que beneficia.

Além do acalorado debate sobre a posição internacional, envolve-se no debate sobre se o seu modo de produção é o capitalismo ou o socialismo. Deduz a importância do pilar socialista anterior, bem como o desenvolvimento desigual e combinado que permeou a direção chinesa. É por isso que observa a indefinição do carácter capitalista ou socialista do seu sistema, algo já levantado no seu livro O futuro do socialismo (Herramienta, 2004), e reafirma que a viragem para o capitalismo permanece inacabada. Um status singular é mantido com projetos disputados que concorrem para redirecioná-lo. Por fim, a caracterização da China resume as visões e objetivos do país que transformará o tabuleiro geopolítico.

A quarta secção trata da nova emergência da Rússia na cena global e porque é uma potência regional à escala planetária. Reinstalou-se após a queda soviética e um passo prematuro em direcção ao capitalismo. Esta restauração está condicionada pelas suas contradições internas, pela sua natureza semiperiférica na ordem económica, pela sua aliança com a China e pelo assédio imperial através da OTAN. Claudio Katz o postula como um Império não-hegemônico em formação. Destaca também a intervenção em 8 dos 15 países da esfera pós-soviética. Este gigante eurasiano procura contrariar a hegemonia dos EUA com o triângulo estratégico com a China e a Índia, ao qual acrescenta o Brasil e a África do Sul (os actuais BRICS+) e a Organização de Cooperação de Xangai.

Ao interpretar os critérios seguidos por Lênin, mostra porque é que a gravitação da economia russa no mundo não adquire padrões imperialistas. Na sua investigação destes critérios e de outros seguidores daquele, verifica que na Rússia não houve imperialismo soviético porque era socialista, não é um subimperialismo e é essencial diferenciá-lo do imperialismo dominante. Ao mesmo tempo, critica os olhares benevolentes que não percebem os inconvenientes políticos e sociais internos. Para Claudio Katz, Moscovo é uma potência militar e a sua influência vai nessa direção, por isso é necessário intensificar a leitura de baixo e criticar políticas internas que estão longe do progressismo.

Na quinta parte recupera a noção de subimperialismo de Ruy Mauro Marini, para analisar uma região que costuma antecipar ou mostrar as mudanças sistêmicas em curso, o Oriente Médio. Por três factores como a sua localização geoestratégica na intersecção e cruzamento de rotas, as suas reservas de hidrocarbonetos, e porque é visto por alguns como as alavancas a partir das quais o mundo pode ser dominado. Avalia a intervenção liderada pelos Estados Unidos nas últimas três décadas (e especialmente desde 2001), como um fracasso da tentativa de balcanização e dos objectivos de impedir o surgimento de um novo concorrente sistémico como a Rússia ou a China.

Verifique como os alicerces do “Projeto do Novo Século Americano” foram desperdiçados através do belicismo ali praticado. Conceitua a intervenção directa ou sob sanções económicas unilaterais, e as mentiras para uma suposta “guerra contra o terrorismo”, ou o papel do petróleo e das armas no domínio daquela região.

No capítulo 15 “Três perfis diferentes do imperialismo dominante”, ele organiza a arquitectura mundial baseada na subordinação europeia, e as posições contra um imprevisível império russo em formação, e a grande implantação económica chinesa cujo estatuto é não-imperial. Verifiquem-se as situações de subpotências em crescimento como o Paquistão, ou o caso regional do “Curdistão”. Nos capítulos seguintes cobre as implicações das potências regionais subimperiais Turquia, Arábia Saudita e Irão, depois diferencia as circunstâncias de cada uma em referência à região, a sua relação com as potências e como isso teria impacto à escala planetária. Por último, o caso do co-imperialismo particular de Israel, principal aliado geoestratégico naquela região nevrálgica.

A sexta e última secção esclarece a forma como as derrotas do imperialismo nesta vasta área não conduziram a triunfos progressistas. Ele questiona sobre o papel do antiimperialismo e da esquerda em relação às posições relativas aos acontecimentos mais recentes, à autodeterminação ou à resistência contra as manobras persistentes na região que se intensificaram neste século.

Os capítulos seguintes centram-se na crise na Europa manifestada na Ucrânia como uma das áreas de libertação de tensão e fracionamento do mundo. As tentativas de subjugar a Europa e a responsabilidade do imperialismo Americano são notórias, no entanto, a pressão de Kiev colidiu com uma reacção de Moscovo. Deve ser examinado se foi ou não excessivo. Da mesma forma, ele calcula o papel da competição, do lucro e da exploração (isto é, do capitalismo) como em todo o pensamento de Claudio Katz, bem como as posições divergentes em relação a este conflito em curso.

Enquanto o capítulo final recupera as conceituações coligidas na escrita. Esta tão esperada publicação ordena e sintetiza o percurso e a singularidade do imperialismo nesta nova fase do capitalismo, através do método dialético. Traça uma visão de como os diferentes confrontos vêm mudando nas últimas décadas, desde o momento da emergência de um mundo unipolar.

Claudio Katz verifica ao longo da escrita que o epicentro do sistema imperial está protegido no que poderíamos chamar de controle do exercício da violência em larga escala. A supremacia económica é um factor lógico, e também se baseia na repetição de narrativas que endossam o status quo, mas corrobora a tese de que o fundamental é o uso da coerção para preservar o capitalismo.

As diferentes áreas de tensão como o Sahel, a Ucrânia, Taiwan ou o Irão, onde as tensões entre a Rússia, a China e os Estados Unidos são resolvidas, expõem novas articulações abordadas nesta visão geral. Contudo, o poder geopolítico-militar dos Estados Unidos é posto em causa. Bem como todos os andaimes organizados desde meados do século XX através de organizações como o FMI, o Banco Mundial, a OTAN, ou ainda mais recentes como AUKUS ou QUAD. Isto é minado pela ascensão da China (primeiramente associada ao capitalismo americano).

O que oferece outra perspectiva de organizações sob a sua égide, como a SCO, BRICS+ ou a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI). Apesar disso, Cláudio Katz propõe uma visão crítica que supera, por um lado, uma visão apenas de cima dos equilíbrios ou disputas entre poderes e, por outro, o papel ativo dos movimentos sociais e das rebeliões.

Destaca-se a capacidade analítica de obter uma visão panorâmica das condições contemporâneas, ao mesmo tempo que evidencia profundidade histórica e geográfica. Na verdade, a escolha de não incluir aqui a parte dedicada à Nossa América, convida você a ler mais tarde, a fim de completar uma perspectiva geral do ambiente político e dos dilemas teóricos atuais.

Do início ao fim temos uma leitura consistente, que convida também não especialistas interessados em compreender o mundo atual, pois desmistifica um grande número de pressupostos. Por trás de cada postulado está uma reflexão constante e até coletiva. Além de elucidar ideias que conflitam com seus fundamentos. Tem a virtude de deixar temas abertos à discussão sem conclusões decisivas. O encerramento do trabalho refuta outros aspectos em discussão e demonstra o trabalho aguçado, agora o que resta é convidar a novas leituras e debates.

Como todo grande livro, abre novas questões, aqui sobre a crise do sistema imperial e o seu desenvolvimento. Este pensador e economista com profundo enfoque geográfico justifica o desenvolvimento do texto e sua utilização dizendo “A caracterização do sistema imperial é essencial para compreender e transformar a realidade contemporânea (Katz, 2023)”.

Martín Martinelli é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidad Nacional de Luján (Argentina).

Referência


Claudio Katz. La crisis del sistema imperial. Buenos Aires, Jacobin, 2023.


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