Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR*
A postura da direção do IBGE transborda todos os limites de legalidade
1.
A história do capitalismo é marcada por diversas formas de violências contra a classe trabalhadora. Não é algo do tempo presente, nem característica de partidos políticos determinados. As diferenças, que eventualmente se apresentam, são apenas de intensidade. Não vou me aprofundar nisto, pois que os fatos históricos falam por si.
Diante da força de mobilização da classe operária e, sobretudo, em razão da necessidade de restabelecer alguma estabilidade ao sistema econômico baseado na produção capitalista, houve, no entanto, o momento em que a classe dominante se viu obrigada a ceder um pouco em seus interesses.
Mesmo assim, segundo adverte Bernard Edelman, o que se viu foi o surgimento de um “direito burguês para o operário”, pois, ainda que conquistados pela classe trabalhadora e servindo para a sua efetiva proteção, os direitos trabalhistas não rompem o estágio de exploração capitalista, o qual depende de muitas formas de violência para que as relações em que se baseia sejam mantidas.[1]
Em condições de um funcionamento idealizado do capitalismo, não seria propósito da classe dominante capitalista simplesmente aniquilar a classe trabalhadora, pois, para que consiga atingir seus objetivos de lucro, depende da existência da mercadoria força de trabalho para explorar. Ocorre que, em seu funcionamento real, o capitalismo não é virtuoso e sim autodestrutivo da vida na Terra.
Assim, considerando o insistente rebaixamento das taxas de lucros e dos efeitos individualizados determinados pela concorrência desenfreada, o limite do valor da força de trabalho, determinado pelas condições de sua reprodução, é recorrentemente ultrapassado, sobretudo, na periferia do capital.
Fato é que, para trilhar o caminho da reprodução do capital e sem escancarar a luta de classes, a classe dominante, mesmo fazendo certas concessões, se valeram das formas jurídicas, para que, na aparência da liberdade contratual, não se vislumbrassem as violências histórias em que as relações sociais se constituíram concretamente e, que, assim, abstratamente, se transforam em meras relações jurídicas.
E, presentemente, o movimento do capital internacional, para conter mais uma de suas crises, é do cometimento da violência do aumento da exploração do trabalho, notadamente nos países periféricos, estando a seu serviço, mais uma vez, a ordem jurídica.
Isto é o que explica, na história recente do Brasil, a “reforma” trabalhista de 2017, a “reforma” previdenciária de 2019 e, mais presentemente, a reforma tributária.
Mesmo com todo este histórico de violências, ao menos nos ditos “países democráticos”, manteve-se, com maior ou menor amplitude, instituído o direito de organização sindical da classe operária.
Na Constituição Federal brasileira, este direito, cuja base é a não intervenção do Estado, está expressamente assegurado:
“Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:
I – a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical”.
2.
Assim, é verdadeiramente assustador, vez que ultrapassa a todos os limites da própria ordem burguesa para o operário, flertando com a ainda presente ameaça fascista, ler a notícia de que a direção de um ente público, ligado ao governo de um partido dos trabalhadores, tenha ordenado o sindicato dos servidores deste mesmo órgão a mudarem o seu nome, conferindo-lhe o prazo de 15 (quinze) dias para tanto.
A “ordem” estaria “embasada” em um “parecer jurídico”, no qual o seu prolator “descobriu” que o “nome fantasia” do sindicato não corresponde aos objetivos constantes dos estatutos do sindicato. Em resumo, que a atuação do sindicato não se circunscreve aos interesses dos servidores do IBGE e que, portanto, não poderia ter a sigla IBGE em sua nomenclatura.
É como se o autor do parecer tivesse descoberto que as “Casas Bahia” não têm a sua atuação restrita à Bahia e que a empresa não é uma representante do Estado da Bahia.
A descoberta feita, no caso do ASSIBGE, aliás, é bastante tardia, pois as associações de servidores de entidades que atuam na mesma área que o IBGE utilizam a sigla IBGE desde 1947.
E vale reforçar que este é um limite que o poder econômico não pretendeu ultrapassar em nenhum momento, até porque se trata de uma forma mínima de reconhecimento da interrelação capital e trabalho.
A postura da direção do IBGE transborda todos os limites de legalidade que, como dito, já seriam, elementos de afirmação do poder de submissão dos trabalhadores.
Trata-se, pois, de um movimento que procura negar a própria existência histórica da organização sindical e até mesmo a própria relação do Instituto com os servidores.
E este movimento, tragicamente, se explica pelo conteúdo do mesmo parecer, cuja origem é uma resposta à atuação da deputada Sâmia Bonfim, que, em evento promovido pelo sindicato de servidores, questionou a utilização da sigla IBGE+, como denominação da fundação privada criada para prestar serviços na mesma área do IBGE, mas por parâmetros do direito privado.
No parecer, o prolator nega qualquer irregularidade na utilização do nome IBGE+ e, do nada, sem qualquer interpelação, aproveita para “descobrir” que o errado seria o nome fantasia do sindicato, mesmo que já existente há décadas. E, pior, com base nisto, a direção do Instituto envia uma “notificação” ao sindicato, determinando que este altere o seu nome, em, no máximo, 15 (quinze) dias.
Trata-se, pois, de um ato administrativo motivado pelo sentimento mesquinho da vingança, em total desacordo, inclusive, com o art. 37 da Constituição Federal e que, além disso, invade esfera do Poder Judiciário.
Fosse em outro contexto político, certamente, se diria que teríamos atingido o estágio explícito do autoritarismo fascista.
De todo modo, não deixa de ser uma grave afronta à ordem democrática que não pode ser simplesmente negligenciada, ainda mais nos tempos que correm.
É preciso, por todos os meus, portanto, expressar o mais veemente repúdio a mais esta violência explícita contra o ASSIBGE, que atinge de forma direta à classe trabalhadora como um todo.
*Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (Estúdio editores) [https://amzn.to/3LLdUnz]
Nota
[1] Bernard Edelman A legalização da classe operária. Coord. tradução Marcus Orione. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 14.
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