Por ADALBERTO DA SILVA RETTO JR.*
Entre o sagrado e o profano, entre a fixidez da tradição e a liberdade da invenção, o presépio afirma-se como artefato cultural complexo, cujo banimento reflete um secularismo intolerante
1.
O que é, afinal, o presépio? Um antigo costume religioso, a encenação de uma narrativa sagrada, a tradução visual de um acontecimento histórico decisivo, uma tradição cultural de matriz cristã ou a materialização sensível de um mistério sublime? Poderia ainda ser entendido como um fenômeno do costume, situado no campo do folclore popular? Ou, sob outra perspectiva, de um produto típico da estética serial, fruto do artesanato e do trabalho dito “popular”, ou mesmo de um objeto de arte, no sentido mais amplo do termo?
É possível pensá-lo a partir do contexto contemporâneo, reconhecendo que ele foi – e continua sendo – todas essas coisas simultaneamente, além de outras dimensões contíguas ou alternativas, por vezes coerentes entre si, por vezes atravessadas por tensões e contradições. Nessa perspectiva, o presépio configura-se como um dispositivo expressivo e simbólico de notável complexidade, no qual convergem atributos diversos e ambivalentes.
Um aspecto que chama imediatamente a atenção, ao observar o “mecanismo” narrativo do presépio, é a dialética que nele se estabelece entre a natureza excepcional do evento que revela – o nascimento de Jesus, dotado de centralidade histórica no contexto do Ocidente e para além dele – e a natureza absolutamente ordinária, cotidiana, do cenário que o acolhe.
Trata-se de um acontecimento de alcance extraordinário que se inscreve em um ambiente humano marcado pela sobriedade extrema: um habitat físico e social simples, composto por figuras humildes, inseridas em uma paisagem antropológica feita de situações comuns e previsíveis, próprias de uma vida comunitária elementar. Talvez não haja outro campo da prática religiosa cristã – e, de modo particular, católica – em que a coexistência e a contextualização do sagrado e do profano se tornem tão evidentes.
Embora o presépio seja, há muito, um fenômeno de difusão global, com presença histórica significativa em vastas regiões da Europa e da América Latina, sua força não reside apenas nas profundas raízes lançadas na sensibilidade popular. Ela se manifesta também na capacidade singular que o presépio possui de evocar questões fundamentais que atravessam qualquer reflexão sobre si mesmo, cruzando praticamente todos os nós temáticos de um percurso investigativo denso e multifacetado, que se desenvolve nesse verdadeiro labirinto de expressividade e memória coletiva.
2.
Antes de tudo, é necessário observar que a narrativa subjacente – ou, se preferirmos, o mitologema que a sustenta – caracteriza-se por uma “baixa definição”. A história à qual se enxerta a realização prática, a construção material do presépio, é notoriamente lacunar, carente de detalhes, referências precisas e indicações claras.
Parte-se, portanto, de um sistema incompleto de dados, o que não apenas permite, mas impõe um trabalho criativo considerável para que se alcance a composição de uma imagem minimamente orgânica. Não é irrelevante recordar que, entre os quatro evangelhos canônicos, apenas Lucas e Mateus mencionam o nascimento de Jesus, e ainda assim de maneira sucinta.
É justamente essa indeterminação estrutural que explica a extraordinária capacidade do presépio de ser continuamente ampliado e reconfigurado. Ao longo do tempo, ele incorporou referências históricas, sociais e culturais diversas, permitindo a adição, supressão ou transformação de figuras e cenários. Em muitos presépios domésticos, como o de minha avó paterna, camelos conviviam com patos em lagoas feitas de espelhos – uma liberdade que nunca comprometeu o reconhecimento simbólico do conjunto.
Essa abertura, contudo, não significa arbitrariedade absoluta. O presépio é regulado por uma tensão constante entre invenção e tradição. Ao longo da história, ele acabou por codificar uma estrutura relativamente estável, organizada em torno de quatro cenas fundamentais: a gruta (ou cabana), a taverna, o anúncio aos pastores e a procissão dos Três Reis Magos.
Essas referências não funcionam como regras rígidas, mas como balizas que sustentam uma tradição construída de forma gradual. É nesse equilíbrio instável que reside a potência expressiva do presépio.
Desde suas origens, o presépio se afirmou como um instrumento pedagógico. Em sociedades amplamente analfabetas, ele tornou acessíveis as narrativas sagradas por meio das imagens, desempenhando um papel central na difusão do cristianismo.
Essa função revela a enorme operação de sincretismo, assimilação e conflito que permitiu ao cristianismo consolidar-se como prática social no Ocidente antigo. Nesse processo, o presépio também se tornou um instrumento de coesão, capaz de identificar e reconhecer uma comunidade de fé e de destino.
3.
O presépio celebra o nascimento do salvador, mas também evoca o caráter histórico, produtivo e cultural de um mundo em transformação. Ele articula simultaneamente uma dimensão diacrônica – a memória do passado – e uma dimensão sincrônica, ao incorporar elementos de diferentes épocas.
Nesse sentido, funciona como uma verdadeira máquina do tempo: sobrepõe eras, confunde períodos históricos e opera como um evento atemporal, fundador e, portanto, universal.
Há no presépio um projeto universalista. Desde o início, ele não renunciou a ser um dispositivo dinâmico e funcional, capaz de incorporar possibilidades técnicas e culturais emergentes. Os Reis Magos, afinal, não representariam a devoção possível entre homens de todas as partes do mundo conhecido? Não seriam uma imagem plural da humanidade prestando homenagem a um Senhor de todos os povos?
E não teria o cristianismo, ao formular o imperativo “ame o seu próximo”, fornecido um terreno conceitual fértil para o desenvolvimento de ideias fundamentais do pensamento político ocidental?
Com a aproximação das festas natalinas, ainda que no Brasil não haja grandes controvérsias sobre a presença de presépios em espaços públicos, parece oportuno reabrir esse debate. Em outros países, essa presença tem sido alvo de contestação crescente.
Segundo certa lógica secularista, a fé deveria restringir-se ao âmbito privado. O presépio, portanto, deveria permanecer no espaço doméstico, afastado da praça pública. Trata-se de um processo de privatização da fé religiosa, coerente com a única “fé” que esse secularismo parece reconhecer como legítima.
Nesse contexto, a interdição do presépio não se apresenta como proteção de um bem comum claramente definido, mas como um ato de autoridade que pode revelar um absolutismo político perigoso. Ao se absolutizar, o laicismo converte-se ele próprio em uma forma de religião civil, competindo com as religiões tradicionais no plano dos valores últimos.
O que deveria ser um espaço neutro transforma-se, assim, em campo de tensão e conflito. Negar o valor do presépio para a identidade cultural de um povo, sob o argumento de que ele pode servir a agendas políticas circunstanciais, constitui uma simplificação indevida – e empobrecedora do debate público.
*Adalberto da Silva Retto Jr. é professor de arquitetura na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
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