Ainda existe direita “liberal-conservadora” no Brasil?

Imagem: Emir Bozkurt

Por JULIAN RODRIGUES*

Sem uma boa análise material-histórica da realidade é impossível acertar no programa, na tática, na política, na agitação

O debate sobre o caráter e o papel histórico da burguesia, das classes dominantes, da direita brasileira é espinhoso, tem longa tradição, distintas interpretações. Entretanto, é um dos temas centrais para nós, progressistas. Sem uma boa análise material-histórica da realidade é impossível acertar no programa, na tática, na política, na agitação.

Entender as nuances da dominação capitalista, imperialista, neoliberal e a correlação de forças, as transformações aceleradas do modo de produção são pressupostos para nós, os de baixo.

A “democracia” liberal (coisa quase exclusiva do norte branco) faliu de vez? Estamos em uma etapa histórica com características similares às das décadas de 1920-1940 – quando os fascismos e o nazismo ascenderam?

Tudo indica que sim. Crise capitalista, crise de hegemonia, agressividade imperialista, falência do desenvolvimentismo e do welfare state. Vivemos agora um tempo mais parecido com os anos 1920-1950 do que com os treinte glorieuses (1950-1980). 

Claro que o capitalismo “bonzinho” na Europa, a era rooseveltiana nos EUA e os governos desenvolvimentistas-progressistas no Brasil e Argentina, por exemplo, são todos frutos dessa mesma brecha histórica ( crise de 1929, segunda guerra, guerra fria, etc e tal). Sem a crise capitalista, a devastação da guerra e a URSS não seria possível a constituição da social-democracia ao norte e nem do “populismo” em nuestra latinoamérica. 

O getulismo, aqui, foi a versão brasileira da tendência de expansão dos direitos dos de baixo e da construção de um Estado provedor. Interessante observar que até mesmo o projeto desenvolvimentista-conservador da ditadura civil militar (1964-1985) ampliou, de forma contraditória, não linear etc., muitos direitos sociais. Aos interessados nesse tema recomendo os trabalhos de um dos maiores (senão o maior) estudioso da questão – o professor da Unicamp, querido mestre Eduardo Fagnani.

Ruborizado, peço licença poética aos amigos e mestres estudiosos da questão. Em síntese bem precária trata-se do seguinte: nosso andar de cima (abstraindo qualquer caracterização precisa das classes dominantes e seus estratos) nunca topou concessão nenhuma para os de baixo, mesmo considerando os padrões latino-americanos. Tomando como parâmetro o índice de Gini, vivemos no décimo quarto país mais desigual do mundo – dividindo essa “honrosa” posição com o Congo.

O liberalismo no Brasil sempre foi algo muito peculiar, digamos assim. No século XIX, a maioria dos liberais daqui conviviam docemente e/ou defendiam com gosto a escravidão. Mestre Alfredo Bosi deu a linha toda no canônico “A escravidão entre dois liberalismos”. No texto foi ao cerne e cravou: a antinomia escravidão x liberalismo no Brasil foi somente um “paradoxo verbal”. 

Essa digressãozinha parece desnecessária, mas acreditem, não o é.

A caracterização da burguesia brasileira e do conjunto das classes dominantes estiveram no cerne das diferenças entre os diversos setores progressistas, seja na universidade, no movimento social e principalmente no PCB, principal partido da nossa classe entre os anos 1920 e 1980 do século passado. A polêmica sobre a existência ou não de setores “progressistas” na burguesia estava ligada a questões práticas principalmente com a definição da correta  política de alianças que os comunistas deveriam implementar. 

Simplificando a treta é o seguinte: houve antes e há hoje frações das classes dominantes brasileiras com as quais os trabalhadores podem estabelecer alianças táticas e programáticas?

A treta demarcou campos fortemente. Sempre esteve na base de inúmeras rupturas entre partidos e organizações comunistas, socialistas, trabalhistas, social-democratas etc. A política de alianças do PT entre 1980-2002 expressava essa concepção “classista” em oposição às políticas do PCB, PCdoB e PDT. O aggiornamento petista nos últimos 25 anos é tema para outro artigo.

E a direita, afinal?

A convicção do PCB lá atrás e da maioria do PT hoje se assemelham. Há uma crença de que as classes dominantes brasileiras se dividem entre setores arcaicos, autoritários, oligárquicos, imperialistas e outros “modernos”, democráticos, nacionalistas. 

Essa crença é idealista, quase infantil. Nunca foi confirmada. Vejam, por exemplo, como a burguesia vem nos tratando desde 2003 – mesmo com todas as concessões. Derrubaram Dilma em 2016, prenderam Lula e depois elegeram um fascista sem nem se ruborizar. O liberalismo deles serve somente para aliviar consciências e inspirar constrangidos editoriais (a Folha é o maior exemplo de cinismo- aliás, prefiro a sinceridade de o Estadão, Globo e a Veja).

Lula foi eleito em 2002, reeleito em 2006, elegeu Dilma em 2010, que, por sua vez, foi reconduzida em 2014. Foi demais para eles. Jogaram as máscaras fora e expeliram Dilma. O plano, claro, era eleger um Alckmin. Prenderam Lula depois. Limparam o caminho. O plano falhou. Pragmáticos, não titubearam em embarcar na canoa neofascista quando o tosco Bolsonaro se mostrou o único capaz de derrotar o PT.

O dinheiro não tem pátria, nem convicção, nem ideologia -se adapta às circunstâncias. Claro que não foi assim gostoso para os quatrocentões do Estadão, os yuppies da Folha, os empresários da Fiesp, os neoliberais progressistas da Globo, as classes médias urbanas, a academia liberal-conservadora endossar o Bolsonaro. Mas, taparam o nariz e foram.

Ou seja, entre um liberal-progressista, democrata, simpático um professor uspiano como Haddad e o ex-milico fascistóide, “patrimonialista”, antimídia, anti-intelectual na hora h, os ricos aderiram à regressão. Bolsonaro se comprometeu com eles . Paulo Guedes foi o fiador e símbolo dessa aliança.

A mim me parece que 2016 demonstrou que não existe burguesia menos escrota. Preferem FHC à Bolsonaro? Com certeza, até porque ajuda na operação de “perfumar a bosta” – escusas (beijos ao Sérgio) pela grosseria.

Entonces, QED (CQD) não há uma burguesia liberal-democrática no Brasil. Luciano Huck é apenas espectro idealista da crença de que existe uma parcela “civilizada” e racional da classe dominante. 

Dito isso, compreendo as limitações e nuances de um artigo jornalístico escrito no calor da hora, sem rigor acadêmico. By the way, recomendo fortemente o livro de Renato Rovai e Sergio Amadeu: Como derrotar o fascismo.

Todavia, discordando de Renato Rovai, a distinção entre uma “direita ortodoxa” (ou “tradicional”) x “direita fascista” não me parece que seja pertinente ou ajude-nos a entender o cenário atual. 

Sei que não é o que pensa Renato Rovai, mas talvez uma rápida leitura de seu artigo pode levar-nos à conclusão de que os limites entre ambas as direitas são nítidos Ou pior, induzir a ideia de que a direita “ortodoxa” é menos ruim do que a fascista.

Ele chama de “ortodoxa” a direita liberal-conservadora, digamos a direita “normal”. Tal distinção é importante – nem o malufismo foi tão regressivo e reacionário. Maluf representava um projeto capitalista autoritário de desenvolvimento, mas que estimulava a economia, gerava empregos, era lastreado no papel do Estado em “tenebrosas transações” com grandes empresas, como as empreiteiras, claro.

Já os fascistinhas de hoje são disruptivos, ultraliberais, meio bobalhões e ao mesmo tempo inimigos (retóricos ou práticos) do tal “establishment”. Pensemos, por exemplo, na aparente contradição que é assistir ao fisiológico mega-burguês Trump liderar uma espécie de cruzada ultraneoliberal anti-Estado.

Pois, pois… não existe mais distinção significativa entre lacradores neofascistas e liberais moderninhos da Faria Lima ou Rede Globo. O projeto neoliberal é partilhado gozosamente por ambos. Claro que há inúmeras diferenças: a posição sobre liberdades democráticas, por exemplo. Mas, quando o “bicho pega” se unem todos eles contra o PT e Lula, contra políticas sociais, soberania nacional, desenvolvimentismo, intervenção do governo na economia, integração latino-americana, reindustrialização e por aí segue.

Nesse sentido, Renato Rovai tem razão ao registrar as diferenças entre os setores das classes dominantes, bem como a crescente perda de espaço da “antiga direita” para esses lixos neofacistinhas. Entretanto, divirjo da tese rovaiana (rovaista, rovaisiana?) de que a ascensão dessa turma seja mais danosa à “direita ortodoxa” do que ao campo progressista.

A mim me parece que os caras “ortodoxos” já entregaram a toalha, já aderiram totalmente ao neofascismo e vão se adaptando cada vez mais, ao ponto de não haver diferenças visíveis. Aliás, quem precisa da “direita ortodoxa” hoje? Em termos dos sujeitos sociais concretos, essa “direita ortodoxa” representa quem mesmo? Até os “liberais” que se proclamam e se acham limpinhos já estão, desde de o golpe, com “les mains sales”. 

Isso não é algo a se comemorar. Todavia é a realidade é bruta: hoje a direita é la même chose em tudo que de fato importa. Por exemplo, vão de novo com Bolsonaro, se der (ou com Tarciso, Michele, quem o mito indicar). Querem derrotar Lula (ou seja, a gente) o mais rápido possível. Agora ou em 2026. No illusions. Não há aliados, nem mesmo circunstanciais ou pontuais, entre a turma do “andar de cima”.

Talvez a maior divergência entre nós é que Rovai conclui seu ótimo artigo com a seguinte frase: “A sanha fascista no Congresso é péssima para o País, ruim para o campo progressista, mas muito pior ainda para a direita ortodoxa.”

Não é lateral essa questão. Sintetiza o núcleo da leitura do período histórico e da relação entre as classes. Feliz ou infelizmente não há mais uma “direita ortodoxa” a chorar pelo seu enfraquecimento diante dos fascistas.

Com mais ou menos entusiasmo, com mais ou menos gosto, o fato é que desde  o golpe, passando pelo governo Bolsonaro os supostos dois setores das elites se transformaram, para qualquer efeito prático, em uma coisa só.

A vida é cada vez mais dura, e o capitalismo a cada dia mais parecido com o que era no século XIX. A nós cabe, então, a velha e boa resistência revolucionária, anti-imperialista, reformista radical. Nossa época clama por gente como Lenin, Stalin, Rosa, Mao, Ho Chi Minh, Fidel, Trindade, Chávez,  Anita, Pagu, Apolônio, Prestes, Bezerra, Osvaldão, Marighela, Brizola, Florestan, Erundina, Zé Dirceu, Genoino Stedile, Olívio, Valério Arcary, Ivan Valente, Gleisi e, claro,  Lula. Mais do que estratégia, programa ou tática, o que realmente conta é coluna vertebral ereta e compromisso de classe.

Isso tudo para mandar o seguinte “salve”: a tal direita liberal morreu. Já foi tarde. Então é o seguinte: fogo nos fascistas, no illusions, stay cool e Lula neles.

*Julian Rodrigues é jornalista e professor, é ativista LGBTI e de Direitos Humanos. Coordenador de formação política da Fundação Perseu Abramo.


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