A economia da ditadura militar no Brasil

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Por LUIZ EDUARDO SIMÕES DE SOUZA*

Mais do que uma análise econômica, o livro de Wilson do Nascimento Barbosa é um ato de desinfecção de uma ferida histórica mal cicatrizada, rasgando a névoa do esquecimento para expor as estruturas de poder que moldaram um Brasil cujas sequelas ainda carregamos

1.

A obra em questão insere-se no vasto e consistente percurso intelectual de Wilson do Nascimento Barbosa, cuja trajetória, por si só, confere densidade e legitimidade ao debate que propõe. Historiador, economista e estatístico, Wilson do Nascimento Barbosa alia a erudição acadêmica à experiência histórica vivida, sendo reconhecido também como combatente em duas guerras de libertação popular, o que o coloca em uma posição singular para analisar criticamente os vínculos entre economia, política e sociedade.

Nesse sentido, não se trata apenas de mais um livro em sua já significativa produção, mas de um trabalho que condensa maturidade intelectual, rigor metodológico e compromisso pedagógico com a memória histórica. Pela contundência da análise e pela forma como enfrenta temas ainda cercados de silêncio e distorções, pode-se afirmar que este talvez seja seu livro mais impactante até o momento, embora seja plausível esperar que novos projetos mantenham ou até ultrapassem esse nível de profundidade e ousadia crítica.

A economia da ditadura militar no Brasil (1964-1990) se apresenta como uma provocação direta a um impasse histórico que a sociedade brasileira insiste em contornar desde a Constituição de 1988. Estamos diante de uma encruzilhada: seguir em frente fingindo que nada aconteceu ou olhar em volta e para trás, reconhecendo o que se passou sob o regime militar. É precisamente nessa encruzilhada que Wilson do Nascimento Barbosa nos encontra e, ao contrário da lógica da conciliação que dominou a transição, nos convida a enfrentar a memória incômoda.

Ao estender o marco temporal até 1990, incorporando o governo de José Sarney – fruto da eleição indireta de Tancredo Neves – o autor sublinha que não se trata apenas de ajustar datas, mas de reconhecer a continuidade de um crime histórico que não se encerrou com a abertura política. Em nome da promessa de democracia, criminosos e vítimas foram colocados no mesmo plano, sob a retórica do esquecimento necessário.

Nesse ponto, Wilson Barbosa age como quem retira um curativo mal colocado sobre uma ferida profunda: expõe a chaga ainda infeccionada, mostra sua gravidade e nos convoca, como sociedade, a examiná-la e desinfetá-la, em vez de escondê-la sob bandagens ilusórias. Sua análise não admite neutralidade: a vergonha recai sobre cúmplices e coniventes, a honra cabe aos que resistiram, e aqueles que, em nome de uma pretensa “imparcialidade”, equiparam opressores e oprimidos, acabam inevitavelmente se alinhando ao lado errado da história.

2.

Um aspecto de destaque é o próprio título da obra e, sobretudo, seu subtítulo: A Economia da Ditadura Militar no Brasil: uma abordagem pedagógica. A escolha não é meramente descritiva, mas orienta a leitura em direção a um horizonte formativo. Ao optar pelo termo “pedagógica”, o autor sinaliza que seu objetivo vai além da análise acadêmica ou da exposição crítica dos fatos; trata-se de construir um instrumento de ensino, que permita aos leitores compreenderem os nexos entre economia, política e sociedade durante o regime militar.

Nesse sentido, a pedagogia não se limita ao campo escolar, mas se projeta como prática de memória coletiva, capaz de iluminar as permanências e rupturas estruturais que o golpe de 1964 produziu no desenvolvimento brasileiro. Estudar a economia da ditadura, portanto, adquire valor didático no sentido mais amplo: formar uma consciência histórica crítica, capaz de identificar como as políticas autoritárias moldaram desigualdades, redefiniram prioridades do Estado e deixaram marcas institucionais que persistem até hoje.

Outra estratégia que contribuiu para a invisibilização crítica da economia da ditadura foi a criação de verdadeiras cortinas de fumaça em torno do próprio regime. Uma delas consiste na proliferação de hífens qualificativos – “ditadura civil-militar”, “empresarial-militar”, “midiática-militar” – que, embora revelem traços das articulações sociais do regime, acabam por diluir o núcleo central do poder, isto é, o predomínio político do aparelho repressivo, do comando das Forças Armadas e de sua máquina de coerção.

A mesma operação ocorre na divisão artificial em subperíodos de “abertura” ou “endurecimento”, como se o regime tivesse deixado de ser ditadura em determinados intervalos, quando na realidade se perpetuou como tal de 1964 a 1985. Abominações semânticas ainda mais graves surgiram em tempos recentes, como a invenção do termo “ditabranda”, não por acaso publicada em um veículo de imprensa que, no passado, deu suporte material e ideológico à repressão. Todas essas tentativas de relativização cumprem o objetivo de lançar névoa sobre um passado incômodo, que não interessa a certos setores deslindar.

O mérito de Wilson do Nascimento Barbosa, nesse contexto, é precisamente o de rasgar essa névoa, trazendo luz e definição às formas, ao insistir na materialidade dos processos econômicos e na centralidade da dominação política durante a ditadura.

O livro, assim, nos tira da indiferença e da apatia, resultantes dessa insuficiência de massa crítica qualificada sobre o tema. Ele oferece uma leitura que desafia quem minimiza ou tenta apagar os problemas do período militar, e suas sequelas. Em vez de adotar a retórica conciliatória ou a pusilanimidade que muitas vezes prevalece na oficialidade e na mídia cúmplice do golpe – seja daquele ou de outros mais recentes – a obra exige que enfrentemos os impactos do regime. Ao contrário da “imparcialidade” que coloca em um mesmo nível opressores e oprimidos, o livro estimula uma reflexão sobre as relações de poder, violência e resistência que marcaram não só o golpe de 1964, mas também os anos seguintes, quando as estruturas de dominação continuaram.

O autor destaca que a luta pela democracia no Brasil está ligada às tensões econômicas e sociais do período, cujos efeitos ainda são sentidos hoje. A obra não é apenas um relato ou análise histórica, mas um convite a reconsiderar a nossa trajetória como país, com foco nos que resistiram e naqueles que se acomodaram durante o regime.

3.

Em sentido estrito, a obra é uma aula aplicada de metodologia em história econômica. O autor mobiliza, de modo extensivo e intensivo, praticamente todo tipo de fonte ao alcance do historiador econômico. A esse quadro soma-se o uso de uma variedade de exercícios quantitativos, próprios da chamada econometria histórica, isto é, da aplicação de métodos estatísticos e modelos quantitativos ao estudo de fenômenos econômicos do passado.

Diferentemente das abordagens que privilegiam apenas os gabinetes fechados e as decisões oficiais, Wilson do Nascimento Barbosa utiliza esses instrumentos para revelar problemas e contradições a partir da perspectiva do interesse popular, mostrando como políticas macroeconômicas afetaram diretamente o cotidiano da população. O mérito reside em sua capacidade de extrair das fontes mais reticentes – desde relatórios governamentais até notícias de jornal – informações essenciais que, embora inicialmente desconcertantes, despertam a curiosidade crítica do leitor.

Ao submeter todo material ao escrutínio máximo de sua finalidade, o professor Wilson do Nascimento Barbosa reafirma sua faceta de historiador econômico de rara riqueza e originalidade, contribuindo para uma historiografia que não se limita a repetir narrativas consagradas, mas busca iluminar dimensões esquecidas ou obscurecidas pela retórica oficial.

Como o uso é abundante, vamos citar alguns exemplos, sem o risco de atenuar o impacto aos leitores. A partir dos dados do IBGE, CEPAL e ONU, são construídas preciosidades como: um modelo empírico de crescimento da renda nacional (p. 48-51), um cálculo da tendência exponencial da dívida externa (p. 99-105), uma curva da remuneração dos empregados (conceituada como o montante de salários e vencimentos pagos, páginas 189 e 190), taxas de crescimento comparadas entre o mundo e a América Latina (p. 191), e um gráfico da evolução do produto interno a custo de fatores entre 1970 e 1990, mostrando os dois afundamentos de nosso desenvolvimento promovidos nos anos 1980 e 1990, o que transforma o conceito de “décadas perdidas” em um eufemismo para o que teria, com um pouco mais de sinceridade, tipificação no Código Penal.

Quando encontro um desses elementos em um texto de história econômica, sinto meu dia ganho. Um quentinho no coração. Pois o livro de Wilson do Nascimento Barbosa tem dezenas deles…

E quando o leitor se dá por satisfeito com a riqueza metodológica dos instrumentos de análise quantitativa, eis uma sólida análise do período sob a perspectiva materialista histórica das lutas de classe, fundamentada nas relações sociais produtivas. Não se trata de exercícios vazios, estéreis de propósito: eles caminham para a formação de uma consciência crítica baseada no conhecimento histórico. Wilson Barbosa usa a história econômica para denunciar não apenas a exploração de uma classe sobre outra, em um modo de produção. Ele também denuncia o racismo entranhado em nossa formação histórica, e a amálgama dessas duas substâncias que nos cabe cauterizar em nosso âmago como tarefa civilizacional.

4.

Esses recursos metodológicos denunciam, também, outra encarnação de Wilson do Nascimento Barbosa: a de docente do Departamento de História da FFLCH-USP, onde, por mais de três décadas, consolidou-se como uma das maiores referências do Programa de Pós-Graduação em História Econômica, um dos primeiros criados no país. Sua atuação como professor não se limitou à transmissão de conteúdos, mas constituiu um verdadeiro espaço de formação intelectual e política, marcado pela exigência crítica, pelo rigor metodológico e pela abertura ao diálogo interdisciplinar.

Entre gerações de estudantes, Wilson do Nascimento Barbosa permanece como lembrança viva de uma prática pedagógica que unia erudição acadêmica e compromisso social, orientando trabalhos que ajudaram a dar densidade e legitimidade à historiografia econômica brasileira. Não é à toa que ele é celebrado por seus alunos sempre que abre um flanco, como este livro.

O livro também nos revela, de múltiplas maneiras, como a análise do contexto das chamadas “décadas perdidas” de 1980 e 1990 é imprescindível para compreendermos não apenas o Brasil do terceiro quartil do século XX, mas igualmente o Brasil contemporâneo. A obra evidencia a urgência de enfrentarmos o passivo histórico acumulado, cujo ponto de ruptura decisivo foi o golpe militar de 1964.

A raiz desse golpe, o conflito distributivo secular que atravessa a formação econômica e social brasileira, permanece viva e atuante, condicionando nossos limites e nossas contradições. Sem encarar de frente esse problema estrutural, o subdesenvolvimento seguirá sendo um fardo difícil de carregar. Não há atalhos, eis a lição fundamental transmitida por A Economia da Ditadura Militar no Brasil, uma história econômica do país recente que alcança a atualidade com potência crítica. Quem tiver a pretensão de compreender o Brasil de hoje precisa, inevitavelmente, passar por esse livro.

A leitura da obra também dialoga diretamente com os limites e contradições revelados pela Comissão Nacional da Verdade (2011–2014). Embora tenha cumprido um papel fundamental ao sistematizar informações, documentar violações e oferecer um retrato contundente da violência estatal, a Comissão deixou em aberto a dimensão econômica do regime militar, isto é, a rede de interesses empresariais, financeiros e políticos que sustentaram a ditadura. Ao não avançar suficientemente sobre esses aspectos, preservou-se, em grande medida, o silêncio em torno das estruturas de poder que se beneficiaram do autoritarismo.

É nesse ponto que o trabalho de Wilson do Nascimento Barbosa se destaca: ao expor a economia política da repressão e mostrar como o modelo de desenvolvimento imposto perpetuou desigualdades, sua análise complementa e aprofunda o que a Comissão deixou de evidenciar. Mais do que nunca, torna-se necessário que o Estado brasileiro retome os trabalhos da Comissão, reabra seus caminhos e, sobretudo, transforme suas deliberações em políticas públicas concretas – de reparação, de memória e de responsabilização – capazes de enfrentar a herança autoritária e de consolidar uma democracia fundada na verdade histórica e na justiça social.

Nessa trajetória interpretativa, o professor Wilson do Nascimento Barbosa transmite a integralidade de sua leitura da história, convocando as gerações posteriores – algumas delas suas próprias alunas – a engrossar o coro da necessidade de curarmos a ferida ainda aberta de nossa trajetória como sociedade. Sua obra se coloca como convite e desafio: não basta contemplar o passado, é preciso revisitar suas marcas, enfrentá-las e elaborar, coletivamente, uma resposta que rompa com a lógica de esquecimento que ainda predomina.

Estamos diante do melhor livro do professor Wilson até o momento. Mas esse reconhecimento não o isenta de continuar escrevendo: pelo contrário, reforça a expectativa de que prossiga, pois sua produção segue sendo necessária para iluminar os caminhos da historiografia econômica crítica. Esperamos os próximos, certos de que ainda há muito a receber de sua pena e de seu magistério.

*Luiz Eduardo Simões de Souza é professor de história econômica na Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Referência


Wilson do Nascimento Barbosa A economia da ditadura militar no Brasil: uma abordagem pedagógica. São Paulo, Editora Maria Antônia, 2025, 348 págs. [https://abrir.link/BUTGC]


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