O capitão soviético

Frame de O Capitão Soviético, filme de Natasha Merkulova e Aleksey Chupov
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por JOÃO LANARI BO*

Comentário sobre o filme dirigido por Natasha Merkulova e Aleksey Chupov

O capitão soviético, produção russa de 2021 dirigida pelo casal Natasha Merkulova e Aleksey Chupov, é o tipo de filme que opera naquilo que Freud chamou de “retorno do recalcado”: um mecanismo psíquico por meio do qual conteúdos que foram expulsos da consciência retornam, de maneira distorcida ou deformada – sonhos, atos falhos, fantasias – graças à negociação entre a instância psíquica repressora e as representações reprimidas.

O cinema, afinal de contas também é um mecanismo psíquico, expõe conteúdos traumáticos da história soviética, os expurgos promovidos por Stálin entre 1937 e 38, e traz à tona o recalque que jazia adormecido no inconsciente dessa nação formidável, mas fadada a extremos, a Rússia. O filme se inscreve no conjunto de representações da União Soviética no cinema russo contemporâneo.

Estamos em 1938, Leningrado, atual São Petersburgo. Carrascos e torturadores são metrossexuais, usam uniformes vermelhos bem desenhados, praticam ginástica olímpica e sambo, a arte marcial russa. Nosso protagonista, Capitão Volkonogov (Yura Borisov) passa por uma crise de consciência detonada pelo suicídio de um colega, que se lançou pela janela, caindo a poucos metros por onde caminhava.

É o começo da jornada típica dos romances de Fiódor Dostoiévski, aliando no protagonista angústia e redenção, arrependimento e culpa. O capitão soviético descreve, em última análise, um processo de metanoia, ou seja: mudança do modelo mental do sujeito, transformação profunda que altera a consciência do mundo, seja expandindo-a ou limitando-a. Uma leitura religiosa – e não faltam leituras religiosas dos personagens de Fiódor Dostoiévski – diria que a metanoia do capitão é o processo pelo qual o arrependimento se converte em doutrina, no caso o cristianismo.

No plano real da matança desenfreada, esta é a calamidade das calamidades, que Fiódor Dostoiévski não viu, mas de certa maneira antecipou. Escrevendo em Diários de um escritor, salientou como característica do povo russo: “O que em particular me surpreende é a urgência, o ímpeto com que o homem russo se apressa às vezes a manifestar-se, em determinados momentos de sua vida ou da vida do povo, no que é bom ou no que é sórdido. Às vezes simplesmente ele não tem como se conter”.

O Grande Expurgo, como é conhecido o terror que paira na atmosfera do filme, foi um extermínio em massa organizado de forma burocrática a partir da ordem número 00447 aprovada pelo Politburo, comitê central do Partido Comunista. Em 31 de julho de 1937, iniciou-se a perseguição e o aniquilamento de membros de comunidades religiosas, opositores dos bolcheviques, cossacos, kulaks (donos de propriedades rurais) e suspeitos de espionagem internacional.

Até agosto de 1938, quando foi suspenso o frenesi assassino, estima-se em 800 mil pessoas assassinadas a partir de confissões obtidas sob tortura e julgamentos sumários, mais centenas de milhares deportados para os campos do Gulag, onde muitos morreram.

Não se sabe o número exato das vítimas diretas e indiretas do expurgo: a cineasta Natasha Merkulova fala em dois milhões, a Wikipedia menciona arquivos soviéticos da NKVD – a polícia secreta, depois nomeada KGB e atualmente FSB – para informar que 1.548.366 pessoas foram detidas no período, das quais 681.692 foram executadas, média de 1.000 execuções por dia. A precisão estatística não altera muito o absurdo do que ocorreu.

Diante de tudo isso, Volkonogov foge, à paisana, é preso com alguns sem-teto e forçado a cavar a sepultura de antigos colegas do esquadrão: a paranoia dos expurgadores muitas vezes virava contra as próprias vísceras, os agentes do extermínio. Seu parceiro, Veretennikov (Nikita Kukushkin), volta à superfície, depois de enterrado, para arrancar as vísceras do capitão e exigir que ele obtenha o perdão de pelo menos um entre os assassinados, para alcançar, enfim, a redenção.

Esta é a saga metafísica de O capitão soviético: um a um, o capitão visita familiares das vítimas em busca da ilusória absolvição. Seu perseguidor é o Major Golovnya (Timofey Tribuntsev), obstinado e portador de doença pulmonar incurável. A busca do perdão, entretanto, se depara com fracasso atrás de fracasso: alguns são apparatchiks do Partido convencidos da culpa dos seus familiares, outros carregam o ódio pelo luto injusto, outros enlouqueceram. Na chave religiosa, o capitão parece confinado a um eterno purgatório.

Se é um mecanismo psíquico capaz de revisitar tamanha tragédia, o cinema não foi, infelizmente, capaz de assegurar a distribuição de O capitão soviético ao público russo. A atual invasão russa da Ucrânia aguçou as sensibilidades do governo e a tensão para temas históricos difíceis: os produtores optaram por não distribuir o filme no mercado interno, mesmo tendo o Ministério da Cultura russo entre os financiadores, por temor de gerar controvérsias perigosas, no estilo de questões patrióticas e nacionalistas.

Como disse Aleksey Chupov, um dos realizadores, ainda hoje muitas pessoas têm uma opinião positiva sobre Stálin: para elas, faz parte do passado e ajuda-as a continuar a viver o presente.

*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo). [https://amzn.to/45rHa9F]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
A fragilidade financeira dos EUA
Por THOMAS PIKETTY: Assim como o padrão-ouro e o colonialismo ruíram sob o peso de suas próprias contradições, o excepcionalismo do dólar também chegará ao fim. A questão não é se, mas como: será por meio de uma transição coordenada ou de uma crise que deixará cicatrizes ainda mais profundas na economia global?
O ateliê de Claude Monet
Por AFRÂNIO CATANI: Comentário sobre o livro de Jean-Philippe Toussaint
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
A Rússia e a sua viragem geopolítica
Por CARLOS EDUARDO MARTINS: A Doutrina Primakov descartou a ideia de superpotências e afirmou que o desenvolvimento e integração da economia mundial tornou o sistema internacional um espaço complexo que só poderá ser gerido de forma multipolar, implicando na reconstrução dos organismos internacionais e regionais
Saliência fônica
Por RAQUEL MEISTER KO FREITAG: O projeto ‘Competências básicas do português’ foi a primeira pesquisa linguística no Brasil a fazer uso do computador no processamento de dados linguísticos
De Burroso a Barroso
Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR: Se o Burroso dos anos 80 era um personagem cômico, o Barroso dos anos 20 é uma tragédia jurídica. Seu 'nonsense' não está mais no rádio, mas nos tribunais – e, dessa vez, a piada não termina com risos, mas com direitos rasgados e trabalhadores desprotegidos. A farsa virou doutrina
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES