José Luis Posada

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ BERNARDO PERICÁS*

Comentário sobre a trajetória artística do desenhista e gravador

Um homem de iras e alucinações criativas, crítico sem concessões e inventor de criaturas terríveis. Assim Víctor Casaus descreveu o desenhista e gravador José Luis Posada, um dos mais importantes artistas gráficos do século XX.

Nascido em Villaviciosa (Astúrias), em 1929, ele viu de perto os horrores da Guerra Civil Espanhola quando ainda era criança. Fugiu com a família para a França, mas após atravessar a fronteira foi detido pelas autoridades locais e mandado para um campo de concentração, assim como milhares de compatriotas exilados naquele país. Aos 11 anos de idade, emigrou para Cuba. Fez de San Antonio de Los Baños sua nova morada.

Totalmente autodidata, desenvolveu um traço forte, provocador, versátil, poético, combativo. Um mestre. “Desenho contra a violência, a mediocridade, o esquematismo e os imbecis”. Não se pode falar da história da caricatura política em Cuba sem mencionar seu nome.

As recompensas financeiras nunca foram seu objetivo: “Não tenho nenhuma relação com o mercado. […] Pessoalmente não me interessa o mercado da pintura”, disse, certa vez, em uma entrevista. E completou: “Em realidade, sou um fracasso econômico”. Para ele, “o humor é algo profundo. É até trágico. E a risada também. […] A risada é uma forma para libertar a tragédia. Não para divertir-se. É uma luta de opostos”.

De fato, todo o trabalho de Posada expressa um enorme desconforto com a realidade, uma indignação com a guerra, um ódio ao imperialismo. Basta lembrar suas séries emblemáticas, como Top Hat, El capital, Criaturas insólitas e Todavía. Francisco Zapico Díaz apontou que Posada apresentava ao público uma panóplia de homúnculos mutilados, personagens decrépitos, capitalistas gordos de cartola, esqueletos, arames farpados. Imagens muitas vezes oníricas e surrealistas (uma mistura de horror e beleza), que denunciavam a alienação do homem contemporâneo e satirizavam sem piedade os que haviam contribuído para as desgraças do mundo. Jaime Sarusky, por sua vez, daria ênfase aos monstros imaginários de Posada, seus “bichos”, representados por figuras deformadas e repugnantes: os senhores da guerra, os “gorilas”, os exploradores. Ou seja, todos aqueles que faziam parte de seu museu do grotesco.

É possível encontrar em seus dibujos e litografias a influência de nomes como Picasso, Goya, Bosch, Munch e Grosz. Em alguns momentos o traço de Posada lembra o do mexicano Rius. Em outros, recorda certas experimentações pictóricas e estilísticas de Moebius. A exploração de técnicas diversas claramente pode ser percebida em seus trabalhos.

Posada também era movido pela literatura. Admirador de Gabriel García Márquez e Alejo Carpentier, ilustrou como poucos livros de ambos os autores (Cien años de soledad, do primeiro e El acoso, do último). Em apenas três meses, fez nada menos que 130 desenhos inspirados no célebre romance do escritor colombiano. Em relação a este, comentou: “El mundo de García Márquez es el de La aldea. Pequeña, con prostíbulos que a lo mejor son una vaca mugrienta. Sientes que huele a mugre, a sudor. No hay perfumes. Es La tierra dura. Hueles El agrio de La vida, que también es hermoso”. E, lembrando-se do conflito em sua terra natal, contou um episódio insólito:“Recuerdo de pequeño, que terminando la guerra, en una aldea cerca, al lado de Galicia, cuando llegaron los franquistas, toman La aldea y decid enfusilar a un canário em su jaula, porque había pertenecido a un maestro (que había podido escapar del ataque). Y lo fusilaron porque el maestro había enseñado al canário a tararear ‘La Internacional’ y La cantaba muy clara. Y entonces, los franquistas lo llevan y lo fusilan contra um árbol em La plaza de La iglesia. Ese mundo es macondiano”.Os temas fundamentais que interessavam a Posada, afinal de contas, eram“la fantasia, la magia, El hombre mágico; a mí el hombre no mágico no me dice nada, a mí me interessa la magia. Por eso me siento tan bien en Cuba, porque es un país que afortunadamente nunca saldrá de la magia”.

Posada participou da batalha de Playa Girón, da luta contra os bandidos na Serra do Escambray e da crise dos mísseis. Era um homem de ação. E também um eterno inconformado. Desde que decidiu se aventurar no mundo das artes colaborou com muitas publicações conhecidas, como Juventud Rebelde (e seus suplementos humorísticos), La Tarde, Revolución, Bohemia, Casa de las Américas, Pueblo y Cultura, Granma e a que mais o marcou, El Caimán Barbudo, entre muitas outras. Realizou dezenas de exposições individuais e coletivas em Cuba e no exterior, em países como Tchecoslováquia, México, Romênia, Polônia, Venezuela, Suécia, Nicarágua e Espanha. E, é claro, ganhou vários prêmios ao longo da vida.

Esse artista multifacetado e “incansável retratista da condição humana”, que ilustrou livros, fez caricaturas e produziu uma quantidade significativa de gravuras (além de desenhar o figurino de peças de teatro e de ser um cenógrafo respeitado), infelizmente ainda é pouco conhecido no Brasil. Fica o desejo para que sua obra seja, em algum momento, mais divulgada e apreciada por aqui.

Em uma entrevista concedida aos 71 anos, Posada afirmou que “gostaria de ser um homem feito de musgo”. Tinha vontade de retornar de vez à natureza, à essência de tudo. Sua obra, sem dúvida, mostra de forma ácida, direta e incisiva todos os horrores e injustiças do capitalismo no mundo contemporâneo.

*Luiz Bernardo Pericás é professor no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de Caio Prado Júnior: uma biografia política (Boitempo).

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • O que significa dialética do esclarecimento?cultura maleta 19/09/2024 Por GILLIAN ROSE: Considerações sobre o livro de Max Horkheimer e Theodor Adorno
  • Armando de Freitas Filho (1940-2024)armando de freitas filho 27/09/2024 Por MARCOS SISCAR: Em homenagem ao poeta falecido ontem, republicamos a resenha do seu livro “Lar,”
  • Pablo Marçal na mente de um jovem negroMente 04/10/2024 Por SERGIO GODOY: Crônica de uma corrida de Uber
  • Coach — política neofascista e traumaturgiaTales-Ab 01/10/2024 Por TALES AB´SÁBER: Um povo que deseja o fascista brand new, o espírito vazio do capitalismo como golpe e como crime, e seu grande líder, a vida pública da política como sonho de um coach
  • UERJ afunda em um Rio de crisesUERJ 29/09/2024 Por RONALD VIZZONI GARCIA: A Universidade Estadual do Rio de Janeiro é um lugar de produção acadêmica e orgulho. Contudo, ela está em perigo com lideranças que se mostram pequenas diante de situações desafiadoras
  • Mar mortocultura cão 29/09/2024 Por SOLENI BISCOUTO FRESSATO: Comentário sobre o livro de Jorge Amado
  • Annie Ernaux e a fotografiaannateresa fabris 2024 04/10/2024 Por ANNATERESA FABRIS: Tal como os fotógrafos atentos ao espetáculo do cotidiano, a escritora demonstra a capacidade de lidar com aspectos da civilização de massa de maneira distanciada, mas nem por isso menos crítica
  • Hassan NasrallahPORTA VELHA 01/10/2024 Por TARIQ ALI: Nasrallah entendeu Israel melhor do que a maioria. Seu sucessor terá que aprender rápido
  • Guilherme BoulosValério Arcary 02/10/2024 Por VALERIO ARCARY: A eleição em São Paulo é a “mãe” de todas as batalhas. Mesmo se perder em quase todas as capitais fora do Nordeste, se a esquerda ganhar em São Paulo equilibra o desfecho do balanço eleitoral
  • Direito dos trabalhadores ou lutas identitárias?Elenira Vilela 2024 30/09/2024 Por ELENIRA VILELA: Se ontem dizíamos “Socialismo ou barbárie”, hoje dizemos “Socialismo ou extinção” e esse socialismo contempla em si o fim de toda forma de opressão

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES