Por EMILIANO JOSÉ*
Em vez de risos e brincadeiras, a infância foi marcada por privações e sofrimentos, transformando sonhos inocentes em pesadelos constantes e roubando a pureza dos primeiros anos de vida
Escrevo esse texto a partir de um incômodo. De pronto, digo logo estar distante de qualquer conhecimento especializado no assunto. Mas, incomodado, sinto-me à vontade para expressar minhas preocupações. É sobre a epidemia do TDHA, o famoso Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade.
Não creio ter exagerado a tratar tal sintoma como epidemia, vamos chamá-lo sintoma a partir de uma visão psicanalítica. Uma epidemia, e vou me adiantando, apresentando armas, construída, conscientemente construída pelo chamado saber médico a partir dos interesses do capital, dos gigantescos interesses da indústria farmacêutica, preocupada com os lucros, não com a vida.
Crianças e adolescentes devem merecer atenção integral da família, da sociedade e do Estado. Os direitos deles devem ser respeitados. No caso brasileiro, temos lei, das melhores do mundo: Estatuto da Criança e do Adolescente, surgido no alvorecer dos anos 1990. Aos trancos e barrancos, foi se afirmando, mas está longe de ser respeitada. Não vou analisar aqui os enormes problemas sociais a dificultar tal respeito. Apenas, nesse texto, caminhar no sentido de entender o porquê da tal epidemia do TDAH, e a gravidade dela sobre nossas crianças e adolescentes.
Focar
Num jantar, muito recentemente, discutia com pessoas próximas, jovens adultos. Uma delas insistia da necessidade de o namorado, estudante de Engenharia Civil, usar a rita, ritinha, ritalina. Argumentava: ele não consegue focar. Ele tem TDAH, afirmava. Se tomar, vai melhorar o desempenho. Até porque é muito inteligente.
Eu disse: quem de nós não teve dificuldades na escola? Quem de nós não perdeu uma prova por uma desatenção, descoberta só depois da nota, ou pensando em casa na distração? Quem de nós, e dou o meu exemplo, não levou um zero numa nota de Física? Eu levei, e me mandei para o madureza, Clássico, e me formei no segundo grau.
Ora, por que razão o namorado deveria recorrer à ritalina? Inteligente, perspicaz, por quê? Não creio ter convencido a namorada. Sou testemunha, no entanto, de uma posição muito segura da mãe dele, já falecida, e precocemente, nunca aceitando qualquer medicalização da vida, salvo medicamentos a acudir situações onde fossem absolutamente indispensáveis. Na infância, diziam ser um menino inquieto, com sintomas muito parecidos com os da epidemia, e ela e o pai recusaram partir para medicá-lo. Assumiram, os dois, as responsabilidades de mãe e pai.
Tenho várias outras situações pessoais, a me incomodar. Elas não viriam ao caso, até por cuidados com os personagens. No meu entorno, não apenas no mais íntimo, localizo o crescimento da epidemia, absolutamente naturalizada, aceita com absoluta tranquilidade, como se da normalidade da vida.
Renúncias de responsabilidade
Creio, penso, vivermos uma situação de abdicação de responsabilidades maternas e paternas em favor da medicalização – a indústria farmacêutica só tem a agradecer a essa renúncia. Tivesse coração, diria um “muito obrigada”, comovida. Não tem. Satisfeita, isso sim, pela montanha de lucros decorrente do crescimento dessa epidemia, com a qual os pais e mães concorrem, inocentemente talvez.
Reflexões de uma amiga querida saltaram à minha frente, nem sei como. Mas saltaram. Freud explica. Maria Auxiliadora Mascarenhas Fernandes é psicanalista, presidente do Instituto Viva Infância, em Salvador. Um pequeno texto: “Por nossas infâncias”, publicado nas redes sociais. Valho-me parcialmente da reflexão dela porque pensamos de modo muito parecido, eu, a partir de uma visão sócio-política, mas também a partir de sentimentos voltados às nossas crianças, ela como especialista e olhar acurado, cuidadoso, amoroso com as crianças”.
Maria Auxiliadora fala do perigoso salto da primeira infância para a adolescência, sem viver o importante e necessário período de latência, nas palavras dela, tomando formulação de Freud. Um tempo psíquico de preparação para a explosão da adolescência. Momento de grandes descobertas do mundo, grandes aquisições, a marcar a vida inteira.
Quando esse tempo é pulado, estica-se a corda, e frequentemente ela se rompe. As crianças, não cumprindo as exigências postas por uma sociedade autoritária, de normas rígidas, padrões assentados, tornam-se “doentes”, e as aspas têm toda razão de ser. Roubam aquele período à vida da criança.
Capital e a vida nas mãos
E surgem então os diagnósticos. É, os tais. A criança é capturada pela medicina, pelo saber médico, instrumentalizado obviamente pelo capital, opa, pela indústria farmacêutica, ávida, insista-se, por lucros. Nunca esquecer: é o capital, estúpido!, é a economia, como diria o assessor de Clinton, James Carville. Esquecer disso, da capacidade do capital de tomar vidas nas mãos, manipular a vida, é pecado mortal, para os crentes, grave inocência para os demais.
Diagnósticos. Medicalização, tão perniciosa, nefasta. As siglas vão mudando, se metamorfoseando, sob o comando do capital, opa, da indústria farmacêutica, siglas mudam para dizer a mesma coisa, alcançar o mesmo objetivo da medicalização, eu diria invasão da alma das crianças.
Minha querida amiga, Mali Mascarenhas, como mais conhecida, acompanha há 54 anos a mudança de uma das “doenças”: LCM, DCM, TDA, TDAH – todas as siglas voltadas a tentar produzir o diagnóstico do mesmo quadro clínico: o TDHA.
E agora, para matar a cobra e mostrar o pau, ou matar a cobra e mostrar a cobra morta: o Brasil se tornou o segundo país do mundo a consumir o metilfenidato (Ritalina, Conserta), triste ranking, a nos entristecer. Milhões de dólares gastos por ano, e infância e adolescência roubadas.
Mali dá um número assustador: em 2003, eram consumidos no Brasil 94 kg do metilfenidato; em 2012, o consumo da droga passou para 823 kg, um aumento de 775%. São dados da Junta Internacional do Controle de Narcóticos, órgão ligado à ONU, e pesquisa da UFRJ. É ou não é uma epidemia? Construída, como disse. Deliberadamente.
A criança está lá, no natural dela, saudável, brincalhona, irrequieta, tal como deve ser uma criança. Caso se rebele, comece a se rebelar, tal como acontece com todas as crianças, pais procuram médicos, como a confessar incompetência, incapacidade de exercer paternidade, maternidade. Ou abdicando de exercê-la.
Transtorno opositor desafiador
Logo a criança rebelde ou inquieta recebe diagnóstico de TDAH ou TOD – deste, olhem o nome: Transtorno Opositor Desafiador, absolutamente sintomático, revelador. Foucault, pudesse, sairia da tumba. A qualquer sinal diferente dos parâmetros estabelecidos, jogam sobre a criança os rótulos de depressiva ou bipolar. Ou então, autista. São condenações, jogadas sobre os ombros de réus sem chance de defesa.
O transtorno do humor, é observação de Mali Fernandes, antes atribuída aos adultos, hoje estende o seu manto sobre as crianças. Muitas delas, diagnosticadas com déficit de atenção ou como sendo um perigoso sujeito opositor desafiador, ou autista. Passam então a uma vida medicalizada, submetidas a drogas cujos efeitos sobre um sistema nervoso em construção não são ainda conhecidos.
Nossas crianças, com vidas roubadas. Tiveram usurpado o soberano direito de brincar. As ruas, perigosas para pobres e ricos, e aqui não se discutirá as causas disso, embora se deva fazê-lo, indispensável. Grave: as telas entraram inapelavelmente na vida delas, a reduzir a potência da motricidade, tão necessária, como diz Mali Fernandes, para os pequenos corpos, cuja fase exige saltar, correr, chutar, pedalar.
Telas
O fascínio das telas, e nossas crianças imobilizadas, expostas a mensagens inadequadas para a idade delas. Esperar, e sem ter certeza, de que o projeto contra a adultização, aprovado até agora pela Câmara e à espera de decisão do Senado, provoque reflexos positivos. Proteger nossas crianças face aos efeitos das telas, onde transita uma montanha de conteúdos inapropriados à infância. Com o projeto, as redes sociais ficam obrigadas a remover conteúdo considerado abusivo para crianças e adolescentes. Certeza, nenhuma, ainda. Após a aprovação, exigir seja cumprida.
As telas, de um jeito ou de outro, levam meninos e meninas ao sobrepeso, ao colesterol elevado, a problemas oftalmológicos, não fosse ainda submetê-los à perniciosa influência cultural, a uma visão de mundo marcada pelo individualismo, pelo consumismo, e eu acredito pouco na possibilidade de o projeto da adultização vir a coibir isso, porque tudo da lógica do capitalismo, a reinar ainda soberano, aceito.
Mali, no pequeno texto dela faz um apelo aos pais, às mães, aos educadores, à sociedade civil, e eu acrescentaria a todas as nossas autoridades, aos governadores, aos prefeitos, à presidência da República: olhar de perto para nossas crianças. Escutar, sim, escutar a palavra das crianças. São sujeitos de direitos, como prega o Estatuto da Criança e Adolescente.
Escutá-las, saber do desejo, das aspirações delas. Cada bairro, uma praça arborizada, um parque, um campo de futebol. Conter a loucura do capital imobiliário e a festa do cimento. Um canto de leitura. Devolver às crianças o sagrado direito de serem crianças. Levantar, conceber, construir cidades para a infância, ambientes para o pleno desenvolvimento delas.
Pode parecer apenas um pensamento desejoso.
Creio, no entanto, ser dever de todos nós. Dever da humanidade. Dever de políticas públicas capazes de olhar para o presente e o futuro: nossas crianças e adolescentes.
*Emiliano José é jornalista, escritor, membro da Academia de Letras da Bahia.
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