Barbie e Oppenheimer

Marcelo Guimarães Lima, Jardim Oculto, pintura digital, 21x29cm, 2023
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Por SLAVOJ ŽIŽEK

Considerações sobre os dois filmes, em exibição nos cinemas

Denunciado e ridicularizado pela crítica, Indiana Jones e a relíquia do destino – o quinto e último capítulo da franquia –, no entanto, enfrenta um dos problemas centrais da modernidade: a separação entre fantasia e realidade. Situado em 1969, a história centra-se nos esforços de Jones para localizar um dispositivo antigo – “a relíquia do destino” – que se acredita conceder o poder da viagem no tempo. Afastado de sua esposa, Marion, e deprimido após a morte de seu filho, Jones é auxiliado por sua afilhada Helena, enquanto são perseguidos por uma nova geração de nazistas que também buscam “a relíquia do destino”.

Na cena culminante do filme, Jones e Helena são transportados de volta ao Cerco de Siracusa em 212 A.C., onde conhecem o astrônomo Arquimedes, que inventou a máquina do tempo. Acreditando que não tem vida para voltar na América de 1969, Jones quer permanecer no passado, vivendo em meio a um grande momento histórico. Mas Helena, recusando-se a desistir dele, deixa Jones inconsciente e volta com ele para o mundo moderno. Acordando em seu apartamento, Indi se reencontra com Marion, e eles se abraçam enquanto Helena se afasta sorrindo. Essa feliz resolução, no entanto, não esconde as implicações amargas da conclusão do filme. Forçado a sair da Grécia antiga, o herói-professor agora enfrenta uma vida de domesticidade árida.

Muitos dos ataques mais ferozes dos críticos foram direcionados à personagem Helena (interpretada por Phoebe Waller-Bridge), que foi apresentada de várias maneiras como estranha (medida pelos padrões clássicos de beleza e erotismo de Hollywood) ou “woke”, uma protagonista que mina os clichês patriarcais do charme feminino. Mas Helena não é um símbolo sexual nem um exemplo de atitudes conscientes em relação ao gênero: ela simplesmente introduz um elemento de oportunismo cotidiano combinado com bondade básica – um toque do que pode ser chamado de vida real. O novo Indiana Jones é realmente sobre Helena, uma pessoa do mundo real que é atraída para o mundo de fantasia das aventuras de caça ao tesouro de Indi.

Como uma variação do tema “bem-vindo ao deserto do real” de Matrix – isto é, o que acontece quando nossas ilusões protetoras se desfazem e enfrentamos o mundo real em toda a sua brutalidade – Indiana Jones e a relíquia do destino faz parte de uma tendência recente de filmes – Barbie, Oppenheimer, I’m a Virgo – em que os heróis se aventuram entre o real e o imaginário e o imaginário e o real. Depois de serem expulsos da utópica Barbielândia por serem bonecos imperfeitos, Barbie e Ken embarcam em uma jornada de autodescoberta para o mundo real.

Mas o que eles encontram não é uma revelação profunda do eu, mas a percepção de que a vida real é ainda mais repleta de clichês sufocantes do que seu próprio mundo de fantasia. O casal de bonecos é forçado a enfrentar o fato de que não existe apenas uma realidade brutal além da Barbielândia, mas que a utopia faz parte dessa realidade brutal: sem fantasias como a Barbielândia, os indivíduos simplesmente não seriam capazes de suportar o mundo real.

O Oppenheimer de Christopher Nolan complica essa ideia de se aventurar na realidade. Seu tema não é apenas a passagem do paraíso da academia para o mundo real da guerra – da mente ao depósito de munições – mas como as armas nucleares (frutos da ciência) estilhaçam nossa percepção da realidade: uma explosão nuclear é algo que não pertence ao nosso cotidiano. Oppenheimer, um físico teórico, liderou o Projeto Manhattan, a equipe criada em agosto de 1942 que desenvolveu a bomba atômica para os EUA. Em 1954, as autoridades posteriormente o rotularam de comunista por sua afiliação a grupos que trabalhavam para retardar a proliferação nuclear.

Embora a postura de Oppenheimer fosse corajosa e ética, ele falhou em levar em conta as implicações existenciais do dispositivo que criou. Em seu ensaio “Apocalipse sem Reino”, o filósofo Günther Anders introduziu o conceito de “apocalipse nu”: “o apocalipse que consiste em mera queda, que não representa a abertura de um novo e positivo estado de coisas (do ‘reino’)”. Para Anders, uma catástrofe nuclear representaria um apocalipse nu: nenhum novo reino surgiria a partir dela, apenas a total obliteração do mundo.

Oppenheimer não podia aceitar essa nudez, então escapou ainda mais para o hinduísmo, no qual ele estava interessado desde o início dos anos 1930, quando aprendeu sânscrito para ler os Upanishads no original. Descrevendo seus sentimentos após a primeira explosão da bomba atômica no teste Trinity no Novo México, Oppenheimer citou o Bhagavad Gita, onde Krishna diz a Arjuna: “Agora eu me torno a Morte, o destruidor de mundos”.

Embora esta seja a linha que as pessoas mais associam a Oppenheimer, ele também citou outra passagem do Gita: “Se o brilho de mil sóis explodisse de uma só vez no céu, seria como o esplendor do poderoso.” A explosão nuclear é assim elevada a uma experiência divina. Não é à toa que, após a bem-sucedida explosão nuclear, segundo o físico Isidor Rabi, Oppenheimer apareceu triunfante: “Jamais esquecerei sua caminhada; Nunca vou esquecer a maneira como ele saiu do carro… Seu andar era como [o de Gary Cooper em] Matar ou Morrer… esse tipo de pavonear. Ele tinha feito isso.”

O fascínio de Oppenheimer pelo Gita pertence, portanto, à longa tradição de tentar fundamentar as implicações metafísicas da física quântica nas tradições orientais. Mas o filme de Nolan falha em mostrar como a evocação de qualquer tipo de profundidade espiritual ofuscou o horror de uma nova realidade criada pela ciência. Para enfrentar efetivamente o “apocalipse nu” ou cataclismo sem redenção, é necessário o oposto da profundidade espiritual: um espírito cômico totalmente irreverente. Vale lembrar que os melhores filmes sobre o Holocausto – Pasqualino Sete Belezas (1974), A vida é bela (1997) – são comédias, não porque banalizam o Holocausto, mas porque implicitamente admitem que é um crime louco demais para ser narrado como uma história “trágica”.

Existe algum filme que ouse fazer isso com os horrores e ameaças de hoje? I’m a Virgo (minissérie de Boots Riley lançada em 2023) é a história de Cootie, um negro de 19 anos de quatro metros de altura criado por seus tios em Oakland, Califórnia. Os dois guardiões dedicam suas vidas para garantir que Cootie esteja seguro e isolado. Mas criado em comerciais, quadrinhos e cultura pop, Cootie invade o mundo não como uma tabula rasa, mas já com uma lavagem cerebral pela ideologia consumista de massa. Ele desajeitadamente consegue fazer amigos, conseguir um emprego e encontrar o amor, mas logo descobre que o mundo é mais sinistro do que parece – Cootie atua como um catalisador, sua entrada em nossa realidade social comum trazendo à tona todos os seus antagonismos e tensões (racismo, consumismo, sexualidade…).

E como ele faz isso? Como observou um crítico perspicaz do The Wrap: “Não se deixe enganar pelos temas pesados, I’m a Virgo é uma comédia cheia de momentos absolutamente malucos”. Riley usa o absurdo para apontar o óbvio em situações da vida real: “Sou atraído por grandes contradições”, disse ele à Wired. “As contradições do capitalismo – como ele funciona – vão ecoar em quase tudo o que fizermos.”

É aí que reside a genialidade de Riley: a combinação de dois fatos trágicos (uma aberração gigante lançada em nosso mundo; os antagonismos básicos do capitalismo global) produz uma comédia brilhante. O efeito cômico surge porque as fantasias ideológicas e a realidade não se opõem: no seio das realidades mais sombrias tropeçamos nas fantasias. Os perpetradores de crimes horríveis não são monstros diabólicos que corajosamente fazem o que fazem – são covardes que o fazem para sustentar a fantasia que os motiva. Os stalinistas mataram milhões para criar uma nova sociedade e tiveram que matar outros milhões para evitar a verdade de que seu projeto comunista estava fadado ao fracasso.

A maioria de nós conhece o momento culminante de Questão de honra (1992), de Rob Reiner, quando o advogado Daniel Kaffee (Tom Cruise) interroga o coronel Nathan Jessep (Jack Nicholson) e declara: “Eu quero a verdade!”, e Jessep grita: “Você não consegue lidar com a verdade!”. Essa resposta é mais ambígua do que parece: não deve ser tomada como uma simples afirmação de que a maioria de nós é fraca demais para lidar com a brutal realidade do mundo. Se alguém perguntasse a uma testemunha sobre a verdade do Holocausto, e a testemunha respondesse: “Você não consegue lidar com a verdade!”, isso não deveria ser entendido como uma simples afirmação de que a maioria de nós não é capaz de processar o horror do holocausto.

Em um nível mais profundo, aqueles que não foram capazes de lidar com a verdade foram os próprios perpetradores nazistas: eles foram incapazes de aceitar o fato de que sua sociedade foi atravessada pela crise econômica e social da década de 1930 e, para evitar essa visão preocupante, eles se envolveram em uma onda de assassinatos em massa que visava judeus – como se matar judeus de alguma forma milagrosamente restabelecesse um corpo social harmonioso.

E é aí que reside a lição final das histórias sobre aventurar-se da fantasia para a realidade: não apenas escapamos para a fantasia para evitar o confronto com a realidade, mas também escapamos para a realidade para evitar a verdade devastadora sobre a futilidade de nossas fantasias.

*Slavoj Žižek, professor de filosofia na European Graduate School, é diretor internacional do Birkbeck Institute for the Humanities da Universidade de Londres. Autor, entre outros livros, de Em defesa das causas perdidas (Boitempo).

Tradução: Isabella Meucci para o Blog da Boitempo.

Publicado originalmente no portal The New Statesman.


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