A ordem executiva de Donald Trump

Imagem: Jon Tyson
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Por JALDES MENESES & LINDBERGH FARIAS*

Entre o grande porrete e a submissão, o Brasil é alvo de um projeto trumpiano que descarta até a farsa da diplomacia: resta ao país decidir se será vassalo ou trincheira anti-imperialista

1.

A história do Brasil é marcada por documentos fundamentais desde a Carta de Caminha, pia batismal de anúncio urbi et orbi de terras generosas e dadivosas ao sul do Atlântico, para usufruto e exploração do novo mundo moderno-mercantilista.

Recentemente (30/7/2025), o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, emitiu uma Ordem Executiva que pode ser considerada um marco nas relações entre os dois países – ou, mais precisamente, um verdadeiro antidocumento, com o condão de assim ser classificadonas periodizações historiográficas do futuro, dada sua natureza de destruição destrutiva.

Esse texto não apenas redefine a dinâmica bilateral das “relações perigosas” (para citar um livro de Moniz Bandeira) nos contenciosos entre Brasil e Estados Unidos, mas inaugura um novo capítulo histórico, cujas consequências só poderão – repetindo – ser avaliadas no futuro, pois o jogo está sendo jogado.

A Ordem Executiva de Trump é praticamente uma declaração de guerra. São muitos e variáveis os aspectos a analisar, mas dois se destacam como particularmente alarmantes. O sinal amarelo de alerta se acendeu:

(i) A ameaça explícita do uso da força. O documento menciona vagas e mentirosas ameaças à segurança nacional dos Estados Unidos para justificar uma ameaça direta ao nosso país: se as disputas criadas pelos EUA contra o Brasil não forem resolvidas em seus termos (anulação do processo de Bolsonaro e deposição de Alexandre de Moraes), Washington reserva-se o direito de alcançar a paz pela força.

Essa lógica remete a uma lição muito conhecida dos clássicos da política realista, de Maquiavel a Gramsci – quando a hegemonia pelo consenso se esgota, resta a imposição pela violência, inclusive militar em suas gradações (da guerra híbrida permanente ao uso da força militar). Nem é preciso de grandes hermenêuticas. Uso da força significa uso da força.

(ii) A intenção de interferir nas eleições de 2026. Caso Lula vença – como indicam as pesquisas –, o novo fascismo trumpiano, em nome dos Estados Unidos, parece disposto a empregar uma medida extrema: o não reconhecimento do resultado eleitoral e apoio a um líder autoproclamado (como fizeram com Juan Guaidó na Venezuela), sanções econômicas, ruptura diplomática e, no limite, não é devaneio pensar em conflito aberto.

O novo fascismo trumpiano pretende dominar ferreamente. Não é mais o caso de conduzir um jogo sofisticado de soft power nas relações centro-periferia, ou mesmo executar políticas de contenção, em todas as Américas, do Alasca à Terra do Fogo, da Groenlândia e Canadá, passando pelo Caribe e América Latina. Chegou a hora de dominar os países como se fossem protetorados coloniais. Para tanto, é preciso submeter o Brasil.

A frase atribuída ao ex-presidente Richard Nixon – “Para onde pender o Brasil, penderá a América Latina” – nunca foi tão atual. O Brasil é a maior nação do Hemisfério Sul, detentor da maior reserva de água doce do mundo, da segunda maior de terras raras e da quarta maior em petróleo, além de potencial em soberania alimentar, energética e científica.

2.

No entanto, essa riqueza estratégica contrasta com vulnerabilidades profundas. Internamente, o Brasil neoliberal é uma nação muito fragmentada – fazendo jus, mais que nunca, à ideia de Caio Prado Júnior (entre tantos outros interpretes do Brasil) que a nação nunca se completou, em termos de hegemonia nacional-popular, embora o Estado esteja formado, e seja muito sofisticado em termos de interesses e organicidade do bloco no poder – este o “sentido da colonização”, a seta dialética do “Brasil Contemporâneo”.

Em termos de ideologia e política, parte significativa da opinião pública e instituições, na sociedade civil e no próprio aparelho de Estado, sempre foram historicamente, na República, alinhadas aos interesses norte-americanos. Externamente, a divisão na América Latina em uma miríade de correntes políticas enfraquece a unidade regional.

As ações de Donald Trump refletem o declínio dos EUA como potência hegemônica. O país já não lidera em inovação tecnológica ou poder de compra, enfrentando desindustrialização, aumento da pobreza, crises sociais, crise de identidade nacional (uma nação multiétnica ou controlada pela supremacia branca?) e política (divisão casuísta dos distritos eleitorais pelos governadores republicanos).

Donald Trump personifica um novo fascismo, distinto do modelo clássico por seu pragmatismo oportunista e controle de um arsenal nuclear. Seu projeto é a destruição da democracia liberal, substituindo-a por uma autocracia baseada em mentiras, intimidação e suborno. Na América Latina, o objetivo é transformar nações soberanas em protetorados, com o Brasil como principal alvo.

Não gostamos do termo neofascismo para definir Donald Trump e o movimento MAGA. Preferimos “novo fascismo”, um fenômeno ainda a ser melhor decifrado pelas ciências sociais. O novo fascismo, que Donald Trump personifica com perfeição – inclusive em seu pragmatismo oportunista, haurido originalmente do mundo dos negócios e da cultura oportunista de massas, e que transbordou no historicismo romântico do Movimento MAGA (Make America Great Again) –, é, em sua expressão mais radical e ambientalmente vitoriosa, a materialização do Behemoth (conceito hobbesiano recuperado por Franz Neumann em 1942 para descrever o Estado nacional-socialista de Hitler).

Ou seja, o domínio do terrorismo de Estado. Com uma agravante perigosíssimo: diferentemente de Hitler, esse novo fascismo conta com o controle de um imenso arsenal nuclear.

3.

Para o Brasil, este é um momento decisivo – e não é exagero retórico dizer que esta é a encruzilhada que definirá o século XXI brasileiro (algo semelhante, talvez, ao que representou a década de 1920 no século XX): ou defendemos nossa soberania e construímos um projeto nacional autônomo, ou nos tornamos uma neocolônia do século XXI. A batalha das tarifas é apenas o começo do fio da meada. O que está em jogo é muito mais do que comércio – é o futuro do país como nação independente.

Nesse sentido, pode-se afirmar que o governo Lula 3 terminou e começou o Lula 4. A questão do IOF evidenciou o conflito distributivo e a concentração de renda. Mas foi o aumento de tarifas por Donald Trump que revelou, de forma incontornável, uma conjuntura marcada – não apenas para o governo, mas para todas as forças sociais nacionais conscientes – pela retomada de duas velhas e conhecidas toupeiras, a assim chamada “questão nacional” e pela urgência da “luta anti-imperialista”.

Caso vença em 2026, o governo dará continuidade ao processo iniciado neste Lula 4. Será, por assim dizer, um novo mandato, mas prolongamento de um processo desencadeado neste segundo semestre de 2025. Se perder para a direita, extrema ou disfarçada, iniciar-se-á uma transição da condição atual de dependência para um status neocolonial em pleno século XXI, abrir-se-á o caminho para a ascensão de um novo fascismo no Brasil, na forma de um tipo de Estado policial e constitucional.

Nessa sociedade em transição, transforma-se também a natureza da guerra. O Brasil enfrenta um risco distinto: um tipo especial, adaptada às transições do século XXI, de passagem de uma condição de dependência para um status neocolonial, em que desaparece qualquer mediação por parte de classes dominantes com autonomia relativa, surgindo a delegação de uma nova espécie de ator com a delegação de “poder soberano”, nos termos de Carl Schmitt, com direitos extraterritoriais de intervir nas crises políticas do Estado-vassalo.

Historicamente, desde a Proclamação da República, as Forças Armadas brasileiras consideraram-se herdeiras do “poder moderador”, que antes pertencia ao imperador, mantendo-se como ator central e autor de todos os golpes de Estado em todas as lutas políticas até os dias atuais.

Neste caso, o poder de arbítrio entre as partes do conflito interno escaparia das forças armadas brasileiras, se deslocando de vez para o poder norte-americano, que certamente concertaria as alianças e manteria os espaços das classes econômicas internas, mas que, desta maneira, abririam mão da capacidade de dominar hegemonicamente.

Tal poder férreo seria a via possível para realizar a transição neocolonial, que necessariamente precisa de recursos compactos de poder granítico para envolver em uma totalidade de economia e política. Este tipo de poder brutal só poderá ser resolvido com o surgimento de um novo fascismo – um poder sem mediações, com formas novas de domínio cultural e ideológico, no grau que somente a alta tecnologia das big techs, desprovidas de qualquer regulação, pode alcançar.

Alguns personagens do mundo político têm dito, erroneamente, na crise atual de relações, que as relações do Brasil com os Estados Unidos sempre foram harmoniosas. Nada mais falso. Desde o Império, o contencioso entre o Brasil e os Estados Unidos nunca saiu da pauta. Contudo, nada, nem de longe, nem mesmo 1964, se compara ao assédio do governo Donald Trump. Por exemplo, no período da Big Stick de Theodore Roosevelt, tinha-se o grande porrete, mas antes era de alvitre não perder a compostura e falar baixo, com os punhos de renda.

Acabou-se o tempo dos punhos de renda na dominação. Ficou apenas o grande porrete. Fazendo coro com autores como João César de Castro Rocha e Christian Lynch, este é o Corolário Trump da Doutrina Monroe.

*Jaldes Meneses é professor titular do Departamento de História da UFPB.

*Lindbergh Farias é deputado federal do PT-RJ e líder da bancada do PT.


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