Por ANDRÉ RONCAGLIA*
O sonho tecnocrático é organizar a sociedade por meio de regras impessoais que canalizem a energia dos indivíduos para a cooperação social e econômica. Contudo, nenhuma regra é neutra do ponto de vista do poder
Vinicius de Moraes ficaria surpreso. O debate sobre a política fiscal no Brasil vai parecendo cada vez com sua folclórica canção “A Casa”. Até 2016, nosso orçamento não “tinha teto” de gastos, não tinha nada.
Até a implementação do plano real, os conflitos pela renda se davam de maneira difusa por toda a sociedade. Empresários elevavam preços, pressionados por correções de tarifas públicas e pressões de sindicatos por aumentos de salários. Estes últimos lutavam por atualizar seus rendimentos desde o último reajuste pela inflação acumulada, resultante da elevação dos preços dos empresários. O círculo vicioso se repetia, movido por forças “inerciais” próprias que chegavam até a “acelerar”. A inflação brasileira refutara a física newtoniana.
A teoria da inflação inercial era uma novidade brasileira que parecia explicar um aspecto importante da nossa experiência inflacionária. O fracasso do Plano Cruzado e dos subsequentes planos de estabilização deu centralidade ao equilíbrio fiscal. Este passou a ser entendido como condição fundamental para manter as expectativas ancoradas e impedir a retomada da inflação após a tentativa de estabilização.
Um dos objetivos do Plano Real foi centralizar no orçamento público os conflitos distributivos da sociedade. O esforço começou na primeira etapa do Plano Real, com a criação do Plano de Ação Imediata (PAI) e o Fundo Social de Emergência (FSE). Este último foi a semente da desvinculação orçamentária que o ministro Paulo Guedes hoje tenta disseminar, com a virulência do sarampo, para o restante das contas do orçamento. A Lei de Responsabilidade Fiscal do ano 2000 foi a consagração deste esforço de infundir vigilância e transparência ao processo orçamentário público.
O objetivo era tornar estes conflitos mais “transparentes” e, via processo legislativo, discipliná-los de acordo com as correlações de força no Executivo e no Legislativo. Tornando o orçamento menos “fictício”, revelaríamos à sociedade como “nosso dinheiro dos impostos” é aplicado. A golpes de indignação mobilizadora, a sociedade removeria os privilégios e os gastos excessivos e de áreas menos importantes. Tudo por meio do jogo democrático, aos olhos de toda a sociedade.
Este é o sonho tecnocrático por excelência: organizar a sociedade por meio de regras impessoais que canalizem a energia dos indivíduos para a cooperação social e econômica. As regras dosariam a temperatura dos conflitos sociais e, de forma ordenada e pacífica, direcionaria o processo de reforma gradual do Estado e de suas relações com a sociedade civil e o mercado. Eis um mundo em ordem!
Contudo, nenhuma regra é neutra do ponto de vista do poder. Afinal, é a constituição deste último que a produz. E o poder quer sempre mais poder. As Leis de Potência protegem as hierarquias de sua dissolução. Se riqueza gera mais riqueza, seu oposto também se aplica (com raras exceções): pobreza gera mais pobreza. E sem uma mudança nas estruturas de poder, não se pode controlar a temperatura social. Os extremos se afastam.
A civilização tenta manter lacrada a caixa dos instintos primitivos que levam à resolução violenta de conflitos. A polarização econômica e social eleva a temperatura e a pressão. As moléculas se chocam com mais frequência. A desorganização avança. Eis a sociedade em entropia.
Ainda que limitado como projeto de desenvolvimento de longo prazo, a “capitalização das classes pobres” durante os governos do PT exigiu maior espaço social e orçamentário para as classes emergentes da pobreza. A sociedade e o orçamento público expuseram a nervura do real enrijecimento de suas estruturas. A pressão subiu. Sintoma desta ebulição social que explicitou a hierarquia da sociedade brasileira, os protestos de junho de 2013 deram o pontapé na agitação social que culminaria com a eleição de 2018.
Neste caminho, o anseio de parte do eleitorado por ordem foi ganhando contornos mais claros. O impeachment de Dilma foi o primeiro passo. O golpe parlamentar com pretexto fiscalista mostrou suas cores rapidamente. Em menos de seis meses, um Congresso Nacional extasiado aprovou, em tempo recorde, a Emenda Constitucional 95 ou a regra do teto de gastos.
A metáfora do teto é aflitivamente precisa. Trata-se de mais uma etapa na realização do sonho tecnocrático de ordem: impedir que os conflitos distributivos escapem da “caixinha” orçamentária e contaminem a sociedade com o vírus inflacionário. Se o teto ruir, segue a narrativa, a sociedade explode em hiperinflação.
Segundo esta narrativa, para que a catástrofe não ocorra, é imperativo “explicitar” os conflitos por fatias do orçamento. Isso gerará mais conscientização por parte da sociedade, a qual se organizará para defender os gastos que realmente importam.
A ideia não é errada em si. O problema é saber se as estruturas de poder permitem sua viabilização tal como idealizada. Como Guedes vem mostrando, há várias formas de “fugir” às imposições da regra, usando o Fundeb inclusive. No conflito entre a tecnocracia e as elites políticas, quem usualmente sai perdendo é a coisa pública, variável de ajuste do sistema.
Uma vez “projetado” o teto de gastos, precisamos construir suas vigas de sustentação… Primeiro passo desta agenda: acabar com as desonerações fiscais das grandes empresas que custam anualmente cerca de R$ 300 bilhões por ano aos cofres públicos.
Calma, é só brincadeira… Primordial é a redução do Estado balofo e ineficiente. É aí que entra aquele apoio da imprensa alinhada com o que chamei de projeto Casa Grande com Cassino no imenso Fazendão Amazônico. Todo “mito” precisa de uma nêmesis; o “messias” carece de um “fariseu”.
A reforma da previdência foi o primeiro capítulo desta novela. Uma luta árdua de pelo menos três anos contra as aposentadorias generosas dos servidores públicos (assim, no agregado). A segunda pilastra do teto é a reforma administrativa. Como na primeira, o inimigo é o “servidor público”, este ente nobiliárquico médio que vive com privilégios nababescos. Mas, desigualdades multidimensionais complicam enredos binários que fomentam a indignação social necessária.
Neste segundo capítulo da novelização das desigualdades sociais, a sociedade brasileira sofre homogeneamente as dores da pandemia enquanto os servidores públicos trabalham remotamente de seus palácios nas Bahamas. As desigualdades que separam os valentes entregadores de aplicativo Matheus e Paulo Galo das “naturais” proteções que as riquezas sub-tributadas oferecem a Bia Dória e companhia também se manifestam no serviço público.
Como a da previdência, a reforma administrativa a qualquer custo manterá os privilégios que a motivam no plano do discurso. Afinal, as estruturas de poder validarão a tal reforma ao preço de ficarem imunes a ela. No bom e velho toma-lá-dá-cá no topo da pirâmide social, o custo das reformas se distribuirá no andar de baixo, na forma de precarização dos serviços públicos, em particular em saúde, educação e ciência e tecnologia.
Por todos estes motivos, quando visto pelas lentes da realidade, o sonho tecnocrático é algo como arrebanhar as moléculas de vapor d’água e aprisioná-las no copo para matar a sede. Explicitar a luta entre elas não muda nada. É a redução da “temperatura” do ambiente “social” que torna as moléculas visíveis e estáveis. Tapar o copo vai provocar uma explosão.
Em face dos efeitos socioeconômicos da pandemia, a manutenção do teto de gastos e a reforma administrativa tem tudo para elevar a pressão social em seus múltiplos recortes. É igualmente possível que o custo social deste equilíbrio seja enorme. A história talvez registre, num futuro não tão distante, que a democracia brasileira virou uma casa “muito engraçada”, em que “ninguém podia entrar nela, não, porque na casa não tinha chão”. Mas, pelo menos, o orçamento estará equilibrado.
*André Roncaglia é professor de economia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Publicado originalmente no Jornal GGN