A terra santa

Marina Gusmão, Onça, Pintura digital.
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Por PETER BEINART*

Uma defesa do retorno dos refugiados palestinos.

O 15 de maio é denominado “dia da Nakba”, que relembra os 700 mil palestinos que foram expulsos por Israel, ou que fugiram por medo durante a fundação do país em 1948. A rememoração teve uma repercussão especial nesse ano, dado que a expulsão, por Israel, de seis famílias palestinas do bairro de Sheikh Jarrah, na Jerusalém oriental, desencadeou o conflito violento que atualmente envolve Israel-Palestina. Para muitos palestinos, essa expulsão iminente é a prova de que a Nakba não chegou ainda a seu final.

Todo ano, rememorar a Nakba representa uma espécie de luta mental para evocar o passado e conservar a esperança de que ele possa ser superado – garantindo que os refugiados palestinos e seus descendentes possam voltar para casa. Em minha própria comunidade, ao contrário, os líderes judeus em Israel e a diáspora pretendem que os palestinos esqueçam o passado e olhem para a frente. Em 2011, o parlamento de Israel promulgou uma lei que nega fundos do governo para toda instituição que rememore a Nakba. Professores israelenses que a mencionaram em suas aulas foram criticados pelo Ministro da Educação de Israel. No último ano, dois escritores israelenses, Adi Schwartz e Einat Wilf, publicaram um livro influente, A Guerra do Retorno, em que criticaram o desejo palestino pelo retorno dos refugiados como emblemático de um “espírito retrógrado” e uma “incapacidade de se reconciliar com o passado”.

Acontece que eu li A guerra do retorno no último ano pouco antes de Tisha B’Av, o dia em que os judeus lamentam a destruição dos templos de Jerusalém e os exílios que seguiram. Nesse dia, eu ouvi o kinnot medieval, ou canto fúnebre, que descreve esses eventos– os quais ocorreram, respetivamente, 2000 e 2500 anos atrás – em primeira pessoa e no tempo presente.

No discurso judeu, essa recusa de esquecer o passado – ou aceitar seu veredito – provoca um orgulho profundo. O filósofo Isaiah Berlin vangloriou-se, uma vez, de que os judeus “possuem memórias mais longas” do que outros povos. No final do século XIX, os sionistas aproveitaram dessa longa memória coletiva para criar um movimento pelo retorno a um território que a maioria dos judeus nunca tinha visto. Por dois mil anos, os judeus oraram pelo retorno na terra de Israel. Nos últimos 150 anos, os judeus transformaram esse antigo anseio em realidade. “Após serem obrigados a se exilarem de sua terra, as pessoas conservaram a fé nela durante sua dispersão”, assim proclama a Declaração de Independência de Israel. O Estado de Israel constitui “a realização” desse “antigo sonho”.

Por que sonhar com o retorno seria louvável para os judeus, mas patológico para os palestinos? Colocar essa questão não implica que os dois sonhos sejam simétricos. As famílias palestinas que choram por cidades como Jaffa ou Safed viveram nelas recentemente e lembram detalhes íntimos de seus lares perdidos. Eles tiveram a experiência da desapropriação de Israel-Palestina. Os judeus que, durante séculos, se afligiram no dia de Tisha B’Av – e aqueles que criaram o movimento sionista no final do século XIX, em resposta ao crescente nacionalismo e antissemitismo na Europa – somente imaginaram essa experiência.

“Você nunca parou de sonhar” – disse uma vez o poeta palestino Mahmoud Darwish para um entrevistador israelense. “Mas seu sonho estava muito distante, no tempo e no espaço… Eu estou exilado há somente 50 anos. Meu sonho è vívido, fresco”. Darwish notou outra diferença crucial entre as dispersões dos judeus e dos palestinos. “Vocês criaram nosso exílio, nós não criamos o de vocês”.

No entanto, apesar dessas diferenças, muitos palestinos proeminentes – de Darwish ao falecido crítico literário Edward Said ao professor de direito George Bisharat e Talb al-Sana, o membro árabe que está há mais tempo no parlamento de Israel – aludiram à ironia amarga dos judeus dizendo a um outro povo de desistir de sua terra natal e se assimilar em terras estrangeiras. Nós, de todos os povos, deveríamos entender como esse pedido é ultrajante. Os líderes judeus continuam insistindo que, para realizar a paz, os palestinos devem esquecer a Nakba. Mas é mais exato dizer que a paz virá quando os judeus lembrarem. Quanto mais lembrarmos por que os palestinos deixaram, mais entenderemos por que eles merecem a chance de voltar.

Mesmo para muitos judeus que se opõem com paixão às políticas israelenses na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, defender o direito de retorno dos refugiados palestinos permanece um tabu. Mas se é errado manter os palestinos como não cidadãos sob a lei militar na Cisjordânia, e se é errado impor um bloqueio em Gaza negando a eles as necessidades da vida, é com certeza também errado expulsá-los e proibi-los de voltar para casa. Durante décadas, os judeus liberais se desviaram desse argumento recorrendo a um outro, pragmático: os refugiados palestinos deveriam voltar somente para a Cisjordânia e Gaza, independentemente do lugar de onde vieram, como parte de uma solução de dois Estados que dá a ambos, palestinos e judeus, um próprio país.

Mas a cada ano que passa, com Israel cada vez mais consolidando seu controle sobre toda a terra entre o Rio Jordão e o mar Mediterrâneo, essa alternativa supostamente realista se torna mais distante da realidade. Não vai haver nenhum Estado soberano palestino para o qual os refugiados possam ir. O que permanece da causa contra o retorno dos refugiados palestinos é uma série de argumentos históricos e legais propagandeados por líderes judeus israelenses e americanos sobre os motivos pelos quais os palestinos mereceram serem expulsos e não têm mais direito a uma solução. Esses argumentos não somente não convencem, mas são profundamente irônicos, pois pedem aos palestinos que repudiem os próprios princípios de memória entre gerações e restituição histórica que os judeus consideram sagrados. Se os palestinos não têm direito a sua terra natal, tampouco nós o temos.

As consequências desses esforços de racionalizar e sepultar a Nakba não são puramente teóricos. Elas estão presentes nas ruas de Sheikh Jarrah. Os líderes de Israel que justificam a expulsão de palestinos hoje a fim de tornar Jerusalém uma cidade judia estão simplesmente parafraseando as organizações judias que passaram várias décadas justificando a expulsão dos palestinos em 1948 com o fim de criar um Estado judeu. Aquilo que o escritor negro americano Ta-Nehisi Coates observou sobre os Estados Unidos e que o prêmio Nobel da paz Desmond Tutu observou sobre a África do Sul – que os crimes históricos, quando não são enfrentados, em geral reaparecem sob uma roupagem diferente – isso é igualmente verdadeiro para Israel-Palestina.

O direito de retorno constitui, portanto, mais do que um simples arrependimento pelo passado. É um pré-requisito para a construção de um futuro no qual judeus e palestinos desfrutem de segurança e liberdade na terra que cada povo chama lar.

O argumento contra o direito de retorno inicia com uma série de mitos sobre o que ocorreu em 1948, o ano em que os ingleses abdicaram de seu controle da Palestina Mandatária, Israel foi criado e a Nakba ocorreu. Esses mitos permitem aos israelenses e aos líderes judeus da diáspora afirmarem que, de fato, os palestinos expulsaram a si mesmos. […]

A escala do roubo da terra foi espantosa. Quando as Nações Unidas aprovaram o plano de divisão em novembro de 1947, os judeus possuíam aproximadamente 7 por cento do território da Palestina Mandatária. No início dos anos cinquenta, quase 95 por cento da terra de Israel era possuída pelo Estado hebraico […]. Como argumentei anteriormente, os judeus poderiam não somente sobreviver, mas prosperar em um país que substitui o privilégio judeu com igualdade sob a lei. Uma rica série de dados comparativos sugere que sistemas políticos que dão a cada um uma voz no governo mostram, em geral, serem mais estáveis e mais pacíficos para todos.

“Nós somos o que nós lembramos”, escreveu o falecido Rabi Jonathan Sacks. “Assim como acontece com um indivíduo sofrendo de demência, o mesmo ocorre com uma cultura como um todo: a perda de memória é sentida como uma perda de identidade”. Para um povo sem Estado, a memória coletiva é a chave para a sobrevivência nacional. Esse é o motivo pelo qual durante séculos os judeus da diáspora pediram para serem enterrados com terra provinda de Israel. E é por esse motivo que os palestinos retiram terras dos vilarejos de onde seus pais ou avós foram expulsos. É grotesco que os judeus digam aos palestinos que a paz exige que eles esqueçam da Nakba. Na nossa pele, nós, judeus, sabemos que quando você diz a um povo para esquecer seu passado você não está propondo a paz. Você está propondo a extinção.

Ao contrário, enfrentar honestamente o passado oferece a base para uma reconciliação genuína. Em 1977, um universitário palestino americano, George Bisharat, viajou para um bairro de Jerusalém ocidental e bateu à porta da casa que seu avô construíra e que roubaram dele. A senhora anciã que atendeu a porta disse-lhe que sua família nunca vivera lá. “A humilhação de ter de pedir para entrar na casa de minha família… doeu dentro de mim”, Bisharat escreveu mais tarde. Em 2000, tendo-se tornado então um professor de direito, ele voltou para lá com sua família. Quando sua mulher e filhos bateram, um homem originário de Nova Iorque atendeu a porta e lhe disse a mesma coisa: não era a casa de sua família.

Mas após Bisharat ter narrado suas experiências, ele recebeu um convite de um antigo soldado que viveu brevemente na casa após as forças israelenses terem-na tomado em 1948. Quando eles se encontraram, o homem disse: “sinto muito, eu estava cego. O que fiz estava errado”, e então acrescentou: “devo a sua família três meses de aluguel”. Naquele momento, diz Bisharat, ele experimentou “uma reserva inexplorada de magnanimidade palestina e boa vontade que podia transformar as relações entre os dois povos e tornar possíveis coisas que não são possíveis hoje”.

Há uma palavra hebraica para o comportamento desse ex soldado: teshuvah, que é geralmente traduzida como “arrependimento”. Com uma certa ironia, sua definição literal é “retorno”. Na tradição judia, o retorno não deve ser físico; pode também ser ético e espiritual. O que significa que o retorno dos refugiados palestinos – longe de requerer o exílio judeu – poderia ser uma espécie de retorno também para nós, um retorno para tradições de memória e justiça que a Nakba despejou da vida judia organizada. “O ocupante e eu mesmo – ambos sofremos com o exílio”. Mahmoud Darwish declarou uma vez. “Ele é um exílio em mim e eu sou a vítima de seu exílio”. Quanto mais durar a Nakba, mais profundo se torna esse exílio moral judeu. Enfrentando-o diretamente e iniciando um processo de reparação, judeus e palestinos, em diferentes modos, podem novamente começar a voltar para casa.

*Peter Beinart é editor de Jewish Currents. É professor de jornalismo e ciência política na Newmark School of Journalism na City University de Nova Iorque.

Tradução: Paulo Butti de Lima.

Publicado originalmente no jornal The Guardian.

 

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