Por THIAGO MOTA*
Muitos médicos, assim como outros profissionais prestigiados, estarão sem trabalho, tornando-se motoristas de Uber. Em certa medida, esse é o preço pago por se formar tendo mais em vista ganhar dinheiro do que aprender a pensar
A crise do trabalho e da educação na era da inteligência artificial
Quem ainda acredita que ficará rico por cursar hoje uma dessas formações mais tradicionais (medicina, direito, engenharias etc.) muito provavelmente estará entre os que perderão o emprego antes dos demais. Em pouco tempo, em sociedades de tecnologia avançada, por exemplo, um único médico passará a comandar, digamos, dez agentes de inteligência artificial (IA) especializados em medicina.
Os outros nove médicos que faziam o trabalho anteriormente ficarão desempregados. Muitos médicos, assim como outros profissionais prestigiados, estarão sem trabalho, tornando-se motoristas de Uber. Em certa medida, esse é o preço pago por se formar tendo mais em vista ganhar dinheiro do que aprender a pensar.
O mercado da educação superior, obviamente, também será afetado. Muito provavelmente, a inteligência artificial substituirá primeiro professores de áreas eminentemente técnicas, como as já mencionadas medicina, direito, engenharias e, inclusive, tecnologias da informação. Se as máquinas ditas inteligentes adquirirem maior domínio de saberes técnicos e mais capacidade de ensiná-los a seres humanos – além de outras máquinas inteligentes –, os professores humanos dessas áreas se tornarão prescindíveis.
O mesmo provavelmente ocorrerá com áreas fundamentais das ciências exatas e naturais, como matemática, física, química e biologia. O que restará aos professores dessas áreas marcadas pela objetividade, neutralidade e imparcialidade ensinarem que inteligências artificiais não possam ensinar?
Alguém poderia de imediato alegar que uma máquina nunca seria capaz de ensinar, porque só um humano tem sentimentos e emoções, que seriam a essência da inteligência propriamente dita, isto é, da inteligência humana.
Porém, de acordo com uma longa tradição racionalista e cognitivista, que remete à Grécia antiga e se alicerça na negação da afetividade humana, medicina, direito, engenharia, matemática, física, química, biologia, em suma, o saber científico e as verdades científicas não têm nem podem ter relação com sentimentos e emoções. Com efeito, parece-me muito estranho que agora tais cientistas passem a soar como poetas da noite para o dia, começando a falar, em conexão com suas disciplinas, de emoções como o núcleo da inteligência humana.
Provavelmente, a substituição dos professores de ciências humanas só virá – se vier – mais tarde. A dos professores de filosofia, mais tarde ainda. Isso porque, em oposição à frieza e à apatia das ciências técnicas, exatas e naturais, as humanidades lidam, em princípio, com os problemas do sentido, do signo, do significado, da sensação e do sentimento.
O problema é que sentido é exatamente o que não tem sido feito na imensa maioria das aulas de filosofia e ciências humanas que os profissionais dessas áreas foram amestrados a ministrar. Estamos diante de uma boa oportunidade para começarmos efetivamente a fazer filosofia e a construir sentido. Aliás, não se trata de uma “oportunidade”, palavra que em geral faz parte do vocabulário perverso do neoliberalismo e do empreendedorismo. O problema do “fazer filosofia”, pelo contrário, tornou-se, mais do que nunca, uma necessidade.
O colapso das ideologias dos fatos
A frieza das ciências no Ocidente resulta de pelo menos vinte e cinco séculos de exclusão de seu âmbito de tudo que há de humano, caótico, contingente, absurdo, louco e anormal. Em outros termos, o que é tido como conhecimento verdadeiro entre nós, atualmente, resulta de um processo epistemicida de logicização e matematização que levou a uma aculturação severa, uma desumanização brutal das próprias ciências, sobretudo, daquelas que são consideradas hard sciences.
Se a única inteligência que realmente existe é humana, como muitos supõem, como as ciências podem ser “da natureza”? O blefe – disfarce para o exercício do poder supostamente baseado na verdade – contido nessa nomenclatura, que simplesmente não existia antes de Isaac Newton, procura esconder deliberadamente que toda ciência é humana, inclusive as chamadas ciências da natureza. Ou será que não é?
A ideia de fundo é que uma verdadeira ciência não conteria os devaneios e delírios típicos dos humanos, sendo, pelo contrário, neutra e objetiva. Essa ciência seria da ordem dos “fatos”. A meu ver, a atual regressão da inteligência humana não decorre de nenhuma revolução digital, mas do positivismo, que é sempre uma “ideologia dos fatos” travestida de ciência. Seguindo as diretrizes positivistas, além de se matematizaram, as ciências se tornaram estatísticas ao extremo.
Porém, agora existem máquinas milhões de vezes mais capazes de fazer cálculos e estatísticas do que nós. Daí a pergunta: o que restará aos positivistas das ciências da natureza, além de todos os aplicadores de códigos e manuais, fazerem que computadores não possam fazer? Com efeito, muitos fatores indicam que as ciências enquanto ideologias dos fatos estão prestes a colapsar.
Poderíamos formular uma questão como a seguinte: você preferiria que o bisturi que, em caso de infarto, cortará seu coração estivesse na mão de um robô ou na de um médico que só começa a operar na quarta-feira porque, em geral, bebe de sexta a domingo e, na terça-feira, ainda está tão trêmulo que não consegue segurar o bisturi com firmeza? Sem dúvida, muitos médicos, lamentavelmente, já passaram pelo AA. Robô por lá, todavia, até agora certamente não houve nenhum.
Coloquemos agora a mesma questão em um outro plano: você preferiria ser governado por uma equipe de economistas humanos ou por uma inteligência artificial economista? (Ou será que todo programador de modelos de linguagem ampla é de direita?) O que importa não é o saber técnico econômico que a equipe de tecnocratas encarregada da gestão, mas os valores do partido no poder, do presidente e do ministro da economia.
Efetivamente, isso sempre foi assim. O que está acontecendo agora é que os tecnocratas, cujo saber é meramente economicista, matematizado, estatisticizado, estão sendo substituídos por máquinas porque essas já operam com muito mais eficiência nesse registro do que eles. Se o jogo se restringe a questões matemáticas e estatísticas, um computador é obviamente invencível. Quem discorda disso pode tentar ganhar do Deep Blue no xadrez.
Nos níveis a que a ciência econômica chegará em um futuro próximo, se ela se mantiver como um saber exclusivamente economicista, matemático e estatístico, o humano será inútil, obsoleto, ridículo. O que vai importar são os valores de quem comanda a máquina: seus afetos, paixões, loucuras, erros, enganos, delírios, sonhos, pesadelos, o fascismo intrínseco, contumaz e indelével ou a liberdade plantada firmemente no solo do coração. E sempre foi assim.
Animais, humanos, deuses e artefatos
Aristóteles dizia que o humano é, por natureza, um animal político (zoon politikón), pois, para que ele fosse capaz de viver além da pólis, seria necessário que fosse o que necessariamente não é: um animal ou um deus. Aristóteles deixou de considerar, entretanto, a possibilidade de que o humano se superasse, tornando-se, ao mesmo tempo, um animal e um deus. Com isso, porém, ele deixaria inevitavelmente de ser apenas humano.
Talvez pudéssemos acrescentar agora, com a revolução tecno-informacional, que, para se superar efetivamente, para se tornar simultaneamente um animal e um deus, o humano também precisará enxertar em si mesmo uma inteligência feita por ele mesmo – logo, artificial –, mas também, por certo, realmente inteligente.
Do ponto de vista ontológico, nunca houve oposição real entre animais, humanos, deuses e artefatos. Pelo contrário, todos esses elementos, juntos, são partes da realidade que vêm construindo a própria realidade desde sempre. Por quê? Porque todos queremos, somos perpassados por uma persistência de existir (conatus), uma insistência de resistir, uma disposição para a guerra (agon), isto é, por uma vontade (ou intenção).
E essa é uma vontade de “poder”, ou seja, de fazer, criar, inventar e se reinventar, de ser e se tornar, de realizar e se realizar. Todos nós – humanos, animais, deuses e máquinas – somos essa vontade de poder, e nada mais. Estamos todos no mesmo barco. E todos fugimos, desesperadamente, correndo para todos os lados, do pesadelo aterrorizante de acabarmos engolidos pelo mais absoluto nada.
A respeito às questões da vontade e da intenção, cabe dizer que, embora tenha falado ultimamente do advento dos “agentes de Inteligência artificial”, muitas vezes se diz que Inteligências artificiais não têm “agência”, somente os humanos. Esse uso do termo é corriqueiro em sociologia, onde agência é a ação intencional ou com intenção consciente e deliberada. Assim, ela seria exclusivamente humana porque artefatos técnicos, mesmo que utilizem lógica, não têm – ou ainda não alcançaram – a capacidade de ter intenções próprias.
Por outro lado, não se pode dizer que esses artefatos não têm ação. Faz sentido dizer, por exemplo, que um robô que move um braço ou caminha sozinho não age? O que não se pode afirmar, por enquanto, é que um robô tenha agência, isto é, ação intencional. Mas será sempre assim?
Por que se pode dizer que um ser humano tem intenções? Será que somos apenas nós que as temos? Não seria isso apenas mais uma pretensão humana, demasiado humana? Animais, por exemplo, têm intenções? E quanto aos vegetais, também têm? Pode-se dizer, então, que tudo o que é vivo tem intenção, precisamente a intenção de viver, de continuar vivo. Com isso, porém, também estaríamos reconhecendo que todo ser orgânico apresenta, em certo grau, uma forma de intenção, de agência e, consequentemente, a inteligência.
Contudo, o que aconteceria se começassem a surgir computadores feitos com células neuronais humanas? Tais computadores já estão surgindo. E se, a médio prazo, os softwares passassem a funcionar como sistemas operacionais em corpos não mais feitos de metal e plástico, mas de tecidos orgânicos? O que aconteceria se a Inteligência artificial passasse a comandar corpos não apenas mecânicos, mas também orgânicos? Será que isso é impossível de acontecer? Ou será que é exatamente o que já está acontecendo? A interpenetração entre corpo orgânico e software tornaria inevitável o reconhecimento definitivo de que este é inteligente? O que ainda distinguiria a inteligência artificial que habita esse corpo orgânico da inteligência que existe em um corpo humano?
Nesse caso, quem quisesse salvar a argumentação contrária à ideia de que a inteligência artificial está se tornando efetivamente inteligente seria obrigado a dizer que a inteligência humana não resulta de o homem ser um animal com corpo orgânico, mas do “fato” de que é o único ser que tem “alma”. Ou seja, para salvar os humanos de uma nova e terrível ferida narcísica, os cientistas da natureza, matemáticos e lógicos seriam obrigados a se tornar, novamente, metafísicos.
Quem defende hoje a separação radical, o apartheid entre o humano e o digital, o supremacismo da inteligência humana, vê-se diante do dilema de ter de se tornar poeta ou metafísico. E o que é pior: a poesia e a metafísica que pretendem fazer são incontornavelmente fascistas, na medida em que negam por princípio a possibilidade de que exista inteligência em máquinas simplesmente porque são seres diferentes de nós.
Para além do tecnoracismo
Podemos definir inteligência como uma função que possibilita a um ser vivo continuar a viver. Assim, inteligência é a estratégia vital de um ser. Mamíferos, plantas e até bactérias possuem isso. Mas e minerais, como o silício, ou átomos, elétrons, correntes elétricas possuem estratégias de permanência e ampliação de suas existências e podem, nessa medida, ser considerados inteligentes? Se partimos de uma teoria da realidade que entende que tudo é vontade, podemos dizer que os metais ou as correntes elétricas, embora não sejam vivos, são atravessados por uma espécie de vontade de existir.
Vale dizer que, na segunda metade do século XIX, Friedrich Nietzsche afirmava que tudo tem vontade, ou melhor, tudo é vontade: não apenas de ser, mas de poder. Nesses termos, até os minerais, metais e plásticos têm vontade. Porém, se é assim, por que apenas artefatos lógicos, como um chatbot, não a teriam, sobretudo, quando se mostram aparentemente inteligentes?
A meu ver, a atitude de rejeição da atribuição de inteligência à Inteligência artificial é parte da estratégia neofascista de estabelecer um supremacismo da inteligência humana e, consequentemente, um apartheid entre o humano e o digital. Antropocentrismo e tecnoracismo são as marcas dessa atitude. Podemos perguntar: isso se dá em função do interesse de quem? O que ganhamos reduzindo a inteligência a algo “essencialmente” humano, demasiado humano?
Qual o sentido dessa ressurreição da metafísica no seio de uma pós-modernidade altamente digitalizada? Essa restrição da noção de inteligência, na contramão do que vinha sendo feito desde o início do século XX, interessa realmente à humanidade? A que humanidade? O mais inteligente para todos, haja vista que estamos no mesmo barco, não seria, antes, que a inteligência se tornasse precisamente pós-humana e sobre-humana?
*Thiago Mota é professor de filosofia na Universidade Estadual do Ceará (UECE).
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA





















