Relembrando a Revolução do Cravos

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Por ALBERT SCHARENBERG*

Há cinquenta anos, oficiais militares de esquerda derrubavam a longeva ditadura de Portugal

Quando a música “Grândola, Vila Morena” tocou na rádio, pouco depois da meia-noite do dia 25 de Abril de 1974, todos em Portugal que ainda sintonizavam a uma hora tão tardia devem ter ficado em suspensão. A canção de José Afonso sobre uma pátria fraterna em que o povo tem algo a dizer foi proibida na ditadura, de forma que o fato de estar tocando na rádio deve ter significou alguma coisa de excepcional.

E, de fato, acontecia algo: foi o sinal combinado para o golpe de Estado planejado por algumas centenas de oficiais militares de esquerda.

O colonialismo tardio de Portugal

Já tinha algum tempo que se verificava uma agitação crescente nas forças armadas. Pois, enquanto o colonialismo estava em colapso em todo o mundo, Portugal, a terceira maior potência colonial do planeta, manteve-se firmemente atada ao seu império colonial – mesmo quando se formavam movimentos de libertação armada em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique.

A guerra em múltiplas frentes nas colônias pôs o regime autoritário sob pressão crescente. O rápido aumento dos custos acabou por levar a que cerca de metade do orçamento do país fosse gasto nas guerras coloniais, o que resultou em extrema pobreza e sofrimento nas colônias, mas também no próprio Portugal. Para o regime de Salazar, que se apresentava como herdeiro da secular tradição colonial portuguesa, o colonialismo e a ditadura eram tão fortemente dependentes que o seu destino se fazia completamente interligado.

António de Oliveira Salazar chegou ao poder após um golpe militar em 1926. Depois de ser nomeado primeiro-ministro em 1932, transformou o país no Estado Novo, um “estado novo” clerical-fascista comparável à Espanha de Franco. A população trabalhadora foi forçada a passar fome para pagar a dívida nacional, enquanto as elites tradicionais – grandes proprietários de terras, empresários e oficiais militares – lucraram. A oposição política enfrentou a repressão indiscriminada por parte da polícia secreta, tanto em Portugal como nas colónias. Apesar de tudo isto, o país autoritário foi aceito como membro fundador da OTAN em 1949.

As guerras coloniais da década de 1960 levaram, nas palavras do historiador Urte Sperling, ao “fim da aliança de classes baseada no protecionismo e na pilhagem colonial”. A oligarquia portuguesa dividiu-se em dois grupos opostos – uma facção que pressionava pela modernização e abertura, e as elites que lucravam, principalmente, com o colonialismo e o protecionismo.

As diferenças políticas surgiram imediatamente após a revolução

No entanto, o regime mostrou-se incapaz de se reformar, inclusive sob o sucessor de Salazar, Marcelo Caetano. As tentativas de abertura foram contrariadas por ameaças de golpe por parte da velha guarda de Salazar, e as guerras coloniais continuaram implacavelmente.

Quando a Guiné-Bissau declarou a independência em 1972, soldados e oficiais reconheceram quão pouco os objetivos de guerra de Portugal tinham a ver com a realidade nas colônias. A situação militar tornou-se tão mais desesperadora. Cada vez mais soldados foram mortos ou regressaram à sua terra natal feridos e traumatizados. Centenas de milhares deixaram o país.

O Movimento das Forças Armadas

As contradições na sociedade portuguesa aumentaram dramaticamente, especialmente nas forças armadas, uma vez que o regime não estava disposto a mudar o rumo das guerras coloniais. No dia 1º de Dezembro de 1973, cerca de duzentos oficiais se reuniram nos arredores de Lisboa e planejaram um golpe de Estado. Constituíam o núcleo do Movimento das Forças Armadas (MFA), formado principalmente por jovens oficiais, quase todos de patente média e que tinham participado ativamente nas guerras coloniais. Traziam orientações políticas diferentes, mas partilhavam a convicção de que as guerras coloniais precisavam acabar e a ditadura tinha de cair para que isso acontecesse.

A partir daí, tudo foi muito rápido. Uma primeira tentativa de revolta em março fracassou. O MFA encarregou então o Major Otelo de Carvalho do planejamento operacional de uma ação militar, e formou uma aliança de conveniência com o general conservador António de Spínola.

Quando “Grândola, Vila Morena” tocou na rádio, no dia 25 de Abril de 1974, os conspiradores já tinham ocupado a infraestrutura estrategicamente mais importante. Quase não houve resistência e à tarde o primeiro-ministro Caetano rendeu-se. O regime decrépito entrou literalmente em colapso. O General Spínola e o MFA concordaram em formar a Junta de Salvação Nacional.

A população saudou com entusiasmo a queda do regime e cenas de pessoas confraternizando com soldados foram transmitidas para todo o mundo. Os cravos, que os civis colocavam nos canos das armas dos soldados, tornaram-se um símbolo do colapso quase sem derramamento de sangue da ditadura. As celebrações populares deram legitimidade ao golpe, transformando-o numa revolução. Poucos dias depois, centenas de milhares de pessoas fizeram as celebrações do Primeiro de Maio num festival popular.

Com a demissão de Spínola no outono, começou a segunda fase da revolução

Nessa altura, tornou-se claro o potencial libertador desencadeado pela queda da ditadura. Houve uma revolta popular total. Nas zonas industriais de Lisboa, os sindicalistas entraram em greve e ocuparam fábricas, e o proletariado rural começou a organizar-se no sul do país.

Em maio, foi formado um governo provisório baseado numa ampla coligação que ia desde comunistas e socialistas até liberais. Mas o que foi bem recebido em Portugal provocou desgosto entre os seus aliados no exterior. Alarmados com a participação no governo do Partido Comunista Português (PCP), os países ocidentais temiam que Portugal pudesse alinhar-se com a União Soviética. O Presidente dos EUA, Gerald Ford, apelou ao primeiro ministro Vasco Gonçalves para expulsar o PCP do governo. A OTAN também manifestou “preocupação com a situação em Portugal” e excluiu o país do seu Grupo de Planejamento Nuclear.

Em Portugal, as diferenças políticas surgiram imediatamente após a revolução. Enquanto o MFA pretendia uma constituição democrática, sindicatos, partidos e eleições livres, e uma política econômica e social que favorecesse os desfavorecidos, Spínola considerava-se o chefe de um regime presidencial autoritário. No verão de 1974, os dois centros político-militares, o MFA e o grupo de Spínola, competiam pelo poder. Como este último pretendia cada vez mais abertamente um golpe de Estado, o MFA sentiu-se compelido a agir para salvaguardar os seus objetivos de descolonização, democratização e desenvolvimento econômico. Spínola foi forçado a renunciar ao cargo de presidente interino, sendo sucedido pelo antigo comandante-em-chefe Francisco da Costa Gomes, membro do MFA.

Com a demissão de Spínola no outono, começou a segunda fase da revolução. Na altura, a maioria dos portugueses acolheu favoravelmente o domínio limitado dos militares revolucionários. Um slogan popular na época proclamava: “O povo apoia o MFA!”

Depois de uma segunda tentativa de golpe de Spínola ter fracassado em março de 1975, o MFA partiu para a ofensiva e decidiu nacionalizar a maioria dos bancos e companhias de seguros, seguindo-se outras indústrias importantes. Devido à pressão da radicalização dos trabalhadores rurais, também foram planejadas reformas agrárias.

O “verão quente” do movimento popular

A terceira fase da revolução começou com eleições para uma Assembleia constituinte no primeiro aniversário da revolução. No entanto, os vencedores não foram os partidos decididamente de esquerda, mas sim o Partido Socialista (PS), liderado por Mário Soares, que recebeu o generoso apoio da Internacional Socialista, e do liberal Partido Popular Democrático (PPD). Ambos os partidos tinham participado no golpe, mas agora queriam abortar o processo revolucionário e fazer a transição para a normalidade capitalista. Encorajados pelos resultados eleitorais, pressionaram.

Ao mesmo tempo, as lutas de classes intensificaram-se durante o “verão quente” de 1975, principalmente no Alentejo, no sul do país, onde grandes proprietários de terras governavam extensas propriedades rurais conhecidas como latifúndios, enquanto no norte os pequenos proprietários cultivavam a terra. O conflito entre a mão-de-obra rural e os latifundiários no sul expandiu-se para uma luta direta pelo controle da terra. Ao mesmo tempo, a indústria enfrentou uma onda crescente de greves e movimentos de posseiros desenvolveram-se nas cidades.

O fim da revolução e seu legado

Enquanto o movimento revolucionário se radicalizava a partir de baixo, o PS e o PPD saíram do governo de coligação e organizaram manifestações de massa sob o lema: “O povo não apoia o MFA”. Isto levou ao colapso da coligação da qual dependia o MFA, precisamente no momento em que o movimento popular atingia o seu ponto alto e dezenas de milhares de “turistas revolucionários” afluíam ao país.

O cisma rapidamente atingiu os militares e a ala esquerda do MFA viu-se sob pressão crescente. Afinal, não representava todas as forças armadas: os esquerdistas dominavam os fuzileiros navais, mas a Força Aérea e o Exército eram controlados por forças liberais conservadoras e difusas. Finalmente, em agosto de 1975, um grupo de oficiais apelou abertamente ao abrandamento da revolução, interrompendo o programa de socialização, restaurando a disciplina dos soldados e reduzindo a influência do PCP. O cisma dentro do MFA era agora indiscutível.

O sexto governo provisório foi então dominado por forças moderadas. O chanceler alemão Helmut Schmidt ofereceu subitamente ao país um empréstimo em dinheiro e a Comissão Europeia também concedeu ajuda financeira. A ala esquerda do MFA foi gradualmente marginalizada. Em 25 de novembro, os seus dirigentes foram presos, pondo fim ao seu papel revolucionário.

O que resta da Revolução dos Cravos meio século depois? Os seus sucessos mais significativos foram o fim do colonialismo português, bem como a queda da ditadura e a transição para uma constituição baseada nos direitos sociais e democráticos. Mas não conseguiu transformar a economia e a sociedade em benefício dos desfavorecidos: a sua revolução, nas fábricas e no campo, foi abortada.

Ainda assim, o fato de apenas seis meses após o golpe contra o governo de Salvador Allende no Chile, um grupo militar de esquerda ter sido capaz de forçar a queda da ditadura e realizar a transição para uma sociedade democrática é um legado duradouro – que acrescenta uma peça emocionante para o mosaico da revolução.

*Albert Scharenberg é historiador, cientista políticos e editor de política internacional da Fundação Rosa Luxemburgo.

Publicado originalmente na Revista da Fundação Rosa Luxemburgo.


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