Por JOSÉ COSTA JÚNIOR*
Comentário sobre o filme dirigido por Santiago Mitre.
Num dos conflitos mais simbólicos que podemos assistir no filme Argentina, 1985, o jovem promotor assistente Luis Moreno Ocampo questiona a própria mãe sobre as práticas do governo ditatorial argentino, vigente entre os anos de 1976 e 1983. A mãe, que frequentava a mesma missa que o general Rafael Videla, um dos governantes mais brutais do período, reafirma constantemente a importância da família e da estabilidade política para defender as ações militares de então, além dos laços que a própria família manteve com o regime civil-militar que governava o país.
Luis Moreno Ocampo acusa aos presidentes do período ditatorial de crimes contra a humanidade juntamente com o promotor Julio Strassera, no mais importante julgamento da história política da Argentina. Para isso, levantam provas e testemunhos de tais crimes, atitude fundamental para que a sociedade argentina revisitasse seu passado recente e fizesse alguma justiça contra os perpetradores de políticas da brutalidade.
No entanto, após o testemunho de uma jovem mulher, que foi torturada juntamente com a sua filha recém-nascida dentro de um carro em movimento por militares, Ocampo recebe um telefonema da mãe. Ela questiona se aquilo realmente aconteceu e como foi possível que pessoas comuns fossem capazes de oferecer tamanha violência e sofrimento em nome de ideais políticos e sociais. Chorando, termina por concordar acerca da necessidade de condenar os líderes da ditadura argentina, responsáveis por aquele estado de coisas e defende o trabalho – quase impossível – dos promotores naquele julgamento tão importante.
Esse e outros diálogos de Argentina, 1985 tornam o filme indispensável para o nosso tempo. A atuação de Strassera e Ocampo no julgamento é uma importante defesa da vida democrática, tão atacada naquele país e na América Latina durante a segunda metade do século XX e que ainda hoje possui efeitos na vida política dos nossos países. No seu discurso final, o promotor Strassera faz referência aos riscos do esquecimento e retoma as palavras que “já não eram suas, mas de todo o povo argentino”: “Nunca más”, reafirmando o compromisso democrático daquela sociedade. Sabemos das dificuldades da construção política democrática da Argentina nas últimas décadas, porém, o reconhecimento dos crimes do regime civil-militar que aterrorizou o país foi fundamental para revisitar acontecimentos que a maioria gostaria de esquecer, por mais embaraçoso que isso tenha sido.
Revisitar as memórias do violento passado recente, discutir as justificativas oferecidas, responsabilizar os autores das práticas desumanas, entre outros movimentos traumáticos abordados no filme, foram passos necessários para aquela sociedade pudesse buscar uma reconstrução da vida conjunta, projeto ainda em construção na Argentina. Nesse contexto, o esquecimento seria mais perigoso, uma vez que traria a naturalização da barbárie e da brutalidade política como soluções aceitáveis para os desafios da construção política, mantendo caminhos para a retomada posições políticas reacionárias e violentas.
Os diferentes modos pelos quais Argentina e Brasil lidaram com seu recente passado ditatorial são exemplos da importância da memória e da tentativa de valorização da vida democrática, que receberam atenção menor no nosso país, a ponto de alguns cidadãos brasileiros exigirem algum tipo de “intervenção militar” de quando em quando. Aqui, desconhecimento e desprezo democrático parecem se juntar na ausência de compreensão dos riscos da vida sob o domínio da brutalidade política. A compreensão da mãe de Ocampo é simbólica nesse aspecto, pois, mesmo a contragosto, reconhece que a solução política violenta acarreta riscos para todos, inclusive com ameaças e excessos desumanizadores constantes.
O choque após o depoimento das vítimas do regime faz pensar, criando embaraços necessários para muitos que ou não tinham conhecimento ou “viraram o rosto” para tudo que acontecia. É importante reconhecer que se trata de uma ação compreensível, na medida em que “seguir a vida” pode ser uma saída mais simples e menos dolorosa em momentos de tensão. No entanto, desse tipo de atitude surgirá o perigoso esquecimento que manterá a porta aberta para a brutalidade política como solução no futuro.
Aqui, uma questão surge: qual é a responsabilidade daqueles que não sabem ou “viram o rosto” para os excessos do arbítrio daqueles que se propõem a resolver os desafios políticos? A cumplicidade e o laço entre aquela sociedade e seus líderes, mesmo que pouco ativa nos processos brutais de desumanização então promovidos, levantam mais uma vez dúvidas reflexivas e necessárias sobre responsabilidades e atitudes.
Argentina, 1985 oferece um relato importante e necessário sobre quando esquecer pode ser um risco. Quando desumanizações e brutalidades são esquecidas, podem ressurgir ou serem exigidas como solução política para os desafios da vida conjunta, como podemos observar em diversos lugares do mundo nesse exato momento, principalmente no Brasil. Sem esse acerto de contas, corremos o risco de nos aproximar perigosamente do convívio totalitário e desumanizador que tanto já assombrou nossa querida América Latina.
*José Costa Júnior é professor de filosofia e ciências sociais no IFMG –Campus Ponte Nova.
Referência
Argentina, 1985
Argentina, 2022, 140 minutos
Direção: Santiago Mitre
Roteiro: Mariano Llinás, Martin Mauregui, Santiago Mitre.
Elenco: Ricardo Darin, Peter Lanzani, Alejandra Flechner, Paula Ransenberg, Carlos Portaluppi.
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