É isto um plano de saúde?

Imagem: Elyeser Szturm
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Por THIAGO BLOSS DE ARAÚJO*

A Prevent Senior faz ver os interesses do capital acima da vida

A comparação entre as experiências médicas inumanas do nazifascismo e aquelas realizadas pela Prevent Senior com pacientes infectados por covid-19 não é inteiramente exagerada. Sem dúvida alguma, há uma racionalidade do passado que ainda se reproduz de forma sintomática no presente. Entretanto, há outro elemento dessa barbárie que merece atenção, sobretudo por fazer parte da essência dos planos de saúde.

No domingo passado, o programa Fantástico entrevistou alguns dos médicos envolvidos no escândalo da Prevent Senior que foram coagidos a administrar o ineficaz “kit covid” nos pacientes internados pela doença, com o explícito intuito de comprovar a suposta eficácia da medicação. Tratava-se de um experimento biológico e social, que respondia diretamente aos interesses políticos e econômicos da burguesia brasileira.

Sob tal circunstância inumana – permeada por inúmeras formas de assédio e ameaças -os médicos relataram algo que extrapola qualquer limite do sadismo: a empresa impôs como meta a desocupação de leitos da UTI em até duas semanas, mesmo que fosse através da indução da morte de pacientes. Ou seja, segundo os relatos, era orientado aos médicos que reduzissem o nível de oxigenação dos internados, mesmo que tal procedimento os induzissem ao óbito. Segundo a advogada dos médicos, o pensamento que orientava tais ações era: “óbito também é alta”.

Nesse sentido, não há qualquer dúvida da similaridade entre a racionalidade da empresa com a dos campos de concentração nazistas. Em seu célebre livro É isto um homem?, Primo Levi fez um denso relato sobre o período em que foi prisioneiro do campo de concentração de Auschwitz. Mesmo que no prefácio o autor italiano manifeste a intenção de “fornecer documentos para um sereno estudo de certos aspectos da alma humana” ¹, certamente uma de suas maiores proezas foi revelar o quanto o princípio de funcionamento daquele campo de extermínio operava, até às últimas consequências, a racionalidade instrumental das grandes corporações capitalistas de seu tempo. Isto se confirma em inúmeras passagens, dentre as quais, cito: “o essencial para a administração do Campo não é que sejam eliminados justamente os mais inúteis e sim que surjam logo vagas numa percentagem prefixada”². Mais atual, impossível.

Contudo, durante a entrevista ao programa da rede Globo, revelara-se outra circunstância absurda que pouco foi aprofundada, a saber, a dura rotina de trabalho que aqueles médicos de plano de saúde eram submetidos. Segundo seu relato, a empresa impunha como meta o atendimento de 60 pacientes em 5 horas de plantão, o que em média os obrigava a realizar uma consulta em até 12 minutos. Apesar do evidente absurdo, o que a reportagem em nenhum momento questionou é o fato de que tal rotina extenuante e precarizada faz parte do cotidiano dos trabalhadores da saúde que atendem em planos e operadoras de saúde. Se a indução de pacientes à morte revela uma circunstancial similaridade com a racionalidade dos campos de concentração nazistas, o trabalho precarizado dos profissionais deste setor revela que essa racionalidade é a essência dos planos de saúde. O princípio de tudo é o equivalente geral, a fungibilidade universal dos trabalhadores e de seus pacientes. Daí a insistência dos filósofos frankfurtianos de que Auschwitz foi a realização sem limites do capital.

Atualmente, uma das primeiras portas de entrada para profissionais da saúde recém-formados é o atendimento através de operadoras e planos de saúde. Costumeiramente, esses espaços servem para os profissionais garantirem algum tipo de renda enquanto constroem a sua carreira profissional. Entretanto, há um preço a ser pago: longas rotinas de trabalho mal pago e precarizado. Por exemplo, profissionais de Psicologia que trabalham em clínicas de plano de saúde, em geral, devem realizar o atendimento psicológico em apenas 30 minutos. Nesse tempo, ainda é dever do profissional o preenchimento da ficha de evolução do paciente e, dependendo do caso, a guia de atendimento a ser enviada ao plano de saúde. Todo este trabalho de meia-hora pode ter o valor de 4 a 7 reais para o(a) psicólogo(a). Ou seja, em apenas uma hora o profissional de Psicologia deve atender dois pacientes, fazer duas evoluções, preencher duas guias de convênio e, por tal trabalho, receberá de 8 a 14 reais.

Isso sem mencionar o fato de que tais planos recebem qualquer tipo de demanda: pessoas em depressão, psicoses, violência sexual, transtornos alimentares, crianças com dificuldades de aprendizagem, comportamento suicida, etc. Sem condições de trabalho minimamente dignas e sem um planejamento especializado de saúde, tais clínicas ganham contornos de manicômios a céu aberto. Esta é a atual condição da assistência à saúde física e mental sob o capitalismo dos oligopólios. Este é o resultado da redução da saúde a mais uma mercadoria a ser especulada no mercado.

É sempre importante lembrar que a privatização de serviços universais e gratuitos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) sempre foi uma meta de Temer, de Bolsonaro e de seus ministros, inclusive do ex-ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta, que é defensor do fim da gratuidade do SUS e da concessão de Unidades Básicas de Saúde (UBS) à iniciativa privada. Apesar de todas as questões que o SUS atualmente vive, decorrentes sobretudo de seu subfinancimento público, seus princípios de universalidade, integralidade e equidade são contraditórios à lógica privatista e defendem um tipo de saúde comunitária, pactuada e não mercadológica. Nada mais necessário em um país em que a população faminta disputa restos de ossos de animais.

Nesse sentido, o atual escândalo da Prevent Senior revela tanto o absurdo a que pode chegar a associação promíscua de empresários da saúde com os interesses negacionistas do governo federal, quanto o futuro da política pública de saúde do país caso o plano privatista avance. Será uma hecatombe para os trabalhadores e para a população.

Em síntese, se há algo que a gestão inumana de seres humanos denunciada pela CPI da Covid nos revelou é que tal lógica não é uma exceção, mas a regra dos planos de saúde. A racionalidade dos campos de extermínio utilizada na gestão de leitos de UTI explicitou algo mais profundo e naturalizado: o uso da mesma racionalidade sobre os trabalhadores da saúde privada. A lógica da eficiência a custo mínimo – que o governo federal deseja implantar no SUS – foi o princípio de Auschwitz. Trata-se da mesma lógica narrada por Primo Levi, quando presenciou a morte de seus colegas por fome ou exaustão em decorrência do excesso de trabalho.

Nessa perspectiva, aquilo que nomeamos como plano de saúde se converte, em última instância, em plano de morte, em gestão de morte. Daí que Levi novamente é certeiro e atual ao afirmar que “quando o dogma não enunciado se torna premissa maior de um silogismo, então, como último elo da corrente, está o Campo de Extermínio” ³. Talvez já passou da hora de chamarmos as coisas pelo seu verdadeiro nome…

*Thiago Bloss de Araújo é doutorando na Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da UNIFESP.

Notas


[1] Primo Levi. É isto um homem?. Tradução de Luigi Del Rei. Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 7.

[2] ibidem, p.190.

[3] ibidem, p.7.

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