As novas leis dos sexagenários e do ventre livre

Imagem: Arturo Añez
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Por LINDBERG CAMPOS*

Resposta ao artigo “Racismo Universitário”, de George Matsas, publicado no jornal O Estado de S. Paulo

“A história do transporte de milhões de africanos para o novo mundo, e do cativeiro ao qual eles foram submetidos por quatro séculos, é fascinante. (…) Seria simplesmente justo com o leitor dizer francamente de antemão que a atitude de qualquer pessoa diante dessa história vai ser distintamente influenciada pelas suas teorias da raça negra. Se ele acredita que o negro na América e em qualquer outro lugar é um ser humano médio e ordinário que, sob um dado meio desenvolve como qualquer outro ser humano, então ele vai ler essa história e julgá-la pelos fatos expostos. Se, entretanto, ele olhar o negro como uma criação distintamente inferior, que nunca pode satisfatoriamente participar da civilização moderna e cuja libertação e emancipação foram gestos contra a natureza, então ele vai precisar de algo mais do que o tipo de fatos que eu registrei. Mas esta última pessoa, eu não estou tentando convencer. Eu estou simplesmente indicando estes dois pontos de vista, tão óbvios para americanos” (W. E. B. Du Bois, “Ao Leitor” em Reconstrução Negra na América: Rumo a uma história do papel que o povo negro cumpriu na tentativa de reconstrução da democracia na América, 1860-1880, 1935).

A epígrafe acima deveria ser elucidativa para todos os brasileiros, evidentemente que menos pela semelhança com a história do racismo nos Estados Unidos do que pelo contraste que ela escancara com a experiência daqui. Se por lá as tendências abertamente segregacionistas ganharam maior vulto e o embate direto deu régua e compasso de tal maneira que qualquer ilusão de uma harmonia racial nunca conseguiu se cristalizar, por aqui criou-se um mito de que as condições dos afrodescendentes brasileiros seriam muito mais favoráveis, culminando na lenda da “democracia racial”.

Em O genocídio do negro brasileiro: Processo de racismo mascarado (1978), Abdias do Nascimento insurge-se justamente contra isto e mostra como a segregação, a pauperização e a matança são ainda mais nefastas por estas bandas, porque insidiosas e ocultadas por uma ausência de leis, instituições e discursos oficiais explicitamente racistas, tal como ocorreu nos Estados Unidos, mas que, ainda assim, inegavelmente fazem parte do dia a dia do nosso país até hoje.

Um racismo universitário

Na edição impressa de O Estado de S. Paulo do dia 3 de janeiro de 2024, George Matsas, professor titular do Instituto de Física Teórica da Unesp, publicou sua opinião, intitulada de “racismo universitário”, a respeito da regulamentação, por parte do Conselho Universitário (CO) da Universidade de São Paulo (USP), das ações afirmativas para pretos, pardos e indígenas (PPI) “a serem usadas na contratação de docentes e admissão de servidores técnicos e administrativos”.

Basicamente, ele mostra preocupação em relação ao racismo que, potencial ou necessariamente, permeia as bancas de heteroidentificação em um país miscigenado como o Brasil e insinua que há um perigo de racismo reverso, discriminando brancos e, talvez, portanto, deteriorando os critérios meritocráticos de “seleção dos melhores”. Embora o tom alarmista não resista a uma leitura do que foi de fato aprovado e muito menos a uma verificação do que ocorre na prática, o empenho em demarcar o território e em inocular uma vacina contra qualquer mudança qualitativa dos quadros que dirigem a maior instituição universitária pública do país certamente não é ingênuo. Vou tratar o assunto nesta ordem: primeiro exorcizar o fantasma de cotas para PPI na contratação de professores para a USP e depois especular um pouco sobre o porquê dessa típica posição passiva-agressiva preventiva.

Escândalo nacional

De acordo com a Carta Aberta de Docentes Negros e Negras da Universidade de São Paulo, entregue ao reitor em 9 de novembro de 2022, há apenas 2,3% de professores da USP que se autodeclaram PPI, enquanto o percentual dessa população no estado de São Paulo é de cerca de 37% e no Brasil como um todo é de mais de 50%.[i]

A resolução n. 8434 de 24 de maio de 2023 regulamenta os “parâmetros para a efetivação de política afirmativa para pretos, pardos e indígenas em concursos públicos para provimento de cargos de docentes e para processos seletivos de admissão de servidores técnicos e administrativos na Universidade de São Paulo”. Em seu artigo quinto é dito que “o tipo de ação afirmativa aplicável a cada concurso público ou processo seletivo será definido a partir do número de vagas em disputa previsto no edital, no momento de sua publicação”. Isto significa que “para concursos ou processos seletivos cujo número de vagas oferecidas seja, no momento da publicação, igual ou superior a 3 (três), aplicar-se-á o mecanismo de reserva de vagas”, mas “para concursos ou processos seletivos cujo número de vagas oferecidas seja, no momento da publicação, de 1 (uma) ou 2 (duas) vagas, aplicar-se-á o mecanismo de pontuação diferenciada”.[ii]

Como é sabido, praticamente não há concursos para docentes na USP com três ou mais vagas. A resolução, já ciente disso, propõe um bônus bastante complexo e insuficiente que deve ser adicionado à nota do candidato PPI. Isto é, aqueles que forem aprovados na prova escrita eliminatória receberão alguns décimos de vantagem. O problema é que, no caso da USP, o concurso para ingresso de docentes ainda tem um formato aristocrático, ele não é objetivo, pois, diferentemente de como ocorre na maioria das Universidades e Institutos Federais.

A prova escrita é lida e, por conseguinte, não é às cegas, não há fichas de expectativas de respostas divulgadas antes da correção das provas escritas e didáticas, fichas de avaliação de cada prova individual justificando o porquê das notas, não há baremas para a avaliação da prova didática e de títulos, prazos para recurso, etc. Tendo em vista esta situação complicada, para dizer o mínimo, o bônus não faz sentido algum, já que ele só teria qualquer sinal de concretude caso houvesse atribuição e aferição objetivas de notas que servissem de contenção às impressões particulares dos avaliadores diante dos candidatos.

Como não há uma base verificável e justificável de notas para além do sentimento dos juízes do concurso, o bônus de alguns décimos é algo que não se materializa, ele já se insere como parte da nota sem parâmetros e não como adição a um resultado rigorosamente circunstanciado. Isto sem contar que a diferença que ele faz é ínfima. Em suma, ele é aplicado – quando aplicado, pois se o candidato simplesmente é reprovado com 6,8 em vez de 7 ele já nem tem acesso à bonificação – a partir de um quadro de subjetividade e discricionariedade muito agudas.

Só estes dados já desmontariam tanto o conto de fadas da “seleção dos melhores”, que o texto de George Matsas pressupõe, quanto a preocupação que ele demonstra de alguém ser aprovado no certame por conta dessa “política afirmativa”. As chances de um número significativo de professores PPI entrarem na USP através dessa resolução são inexistentes. Eu, por exemplo, estudo e pesquiso na USP desde 2008 e nunca tive aula com um professor PPI. Minto, tive uma professora negra quando fiz dois semestres de intercâmbio na Inglaterra. O que me faz pensar que deveria haver algum constrangimento ao se deparar com a composição do CO e das congregações das unidades da USP à luz do fenótipo da quase totalidade das terceirizadas ou da população prisional brasileira; qual o nome disso em um país como o Brasil?

Como dito mais acima, o apartheid no Brasil não existe, ele só funciona. Nuno M. M. S. Coelho, diretor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, em artigo intitulado “O racismo na composição do corpo docente da USP – e a oportunidade que não podemos perder” e veiculado no site do Jornal da USP, lembra que mesmo se as 876 contratações que têm sido feitas e que estão programadas para os próximos anos fossem todas de pessoas negras, ainda assim a USP não teria nem 20% de seu corpo docente PPI. Ainda segundo ele, há tremenda indignação na África do Sul pelo fato de suas universidades contarem com apenas 14% de professores negros mesmo após 20 anos de democratização e segregação, ao passo que, no Brasil, normaliza-se o fato de mesmo após 130 anos da abolição da escravidão, termos nem 3% de docentes PPI na universidade-vitrine do país.[iii]

Contudo, o pior mesmo é que todo o argumento de George Matsas está alicerçado em uma certeza mascarada: não há negros na elite intelectual do Brasil por algum defeito nosso. Raciocinemos juntos: se ele afirma a todo momento que tudo tem que continuar como está porque assim selecionamos as melhores cabeças e a esmagadora maioria dos professores universitários nesse país é branca, logo, há um problema com a maioria PPI desse nosso sofrido país. Seja como for, a grita não tem razão de existir porque o que se fez, como as leis abolicionistas dos sexagenários e do ventre livre, foi só para inglês ver. O próprio reitor da USP, em declaração à Folha de S. Paulo em 22 de maio de 2023, fez uma afirmação que vai em sentido quase idêntico.

O sistema de bonificação deve acabar sendo mais usado para os concursos para docentes, já que, em geral, os departamentos abrem apenas uma ou duas vagas. Avalio que foi o melhor formato encontrado. Não podemos ter uma política muito agressiva, que coloque em risco a qualidade de uma universidade com o prestígio da USP. [iv]

É curioso, ou revelador, a escolha de palavras aqui. O que é agressivo é uma tentativa de reparação histórica e não o descalabro de que o país que recebeu a maior quantidade de pessoas da diáspora africana só ter 2,3% de seus docentes PPI. O que está nas entrelinhas nessa fala é que a supremacia branca no corpo docente/dirigente da universidade é sinônimo de normalidade e qualidade, daí não haver problemas que terceirizadas, alunos, técnicos e administrativos sejam escuros, ao passo que escurecer o corpo docente/dirigente pode causar problemas e perda de excelência.

Vale a pena o leitor voltar ao primeiro parágrafo deste escrito, levando em consideração que a pessoa que anuncia as cotas, ou o grupo que ele representa dentro do conjunto de forças que atuam na universidade, é a mesma que emite tal declaração e regulamenta uma medida que, na prática, inviabiliza as cotas. Está aí, para quem quiser ver, a cordialidade que singulariza o racismo à brasileira.

A impressão que dá ao ler o texto de George Matsas e as declarações do reitor é que eles acham mesmo que, em um país como o Brasil, todos ocupam os postos que ocupam por mérito, que não há reserva de vagas para brancos graças a mais de 300 anos de escravismo, racismo, encarceramento em massa, etc. Recordemos que nem 15% dos nossos jovens estão na universidade, que o Brasil tem a terceira maior população prisional do mundo (sendo quase 70% dela composta de homens negros). Como se pode falar em mérito sob essas condições?

O estudo comparativo das duas posições, no entanto, é produtivo de um ponto de vista do mapeamento ideológico desta discussão. Vemos dois tipos de reação: aquela preventiva e cujo desejo explícito é que tudo permaneça como está e outra que se adianta à mudança “na marra” para que nada efetivamente mude. Ambas reações cordiais e envenenadas. É óbvio que esta última procura uma acomodação em vez da deseducação baseada em senso comum, mitologias e na manipulação de preconceitos populares da segunda. Porém, isso não anula o fato de que certos gradualismos ocorrem para que não haja transição, que a justiça que tarda falha e que a incorporação e desfiguração de pautas é um mecanismo conhecido de desarticulação de movimentos mobilizadores.

Alguém poderia argumentar que a cor não garante qualidade, o que é sem dúvida verdadeiro. A pergunta que fica então é o porquê de não podermos ter pessoas que não são supostamente “competentes” o suficiente para ocupar o cargo que ocupam que não sejam brancas? De repente acordamos em um país em que a meritocracia é a regra e não o favor e as relações pessoas? A verdade nua e crua é uma só: um lugar em que a ampla maioria dos que ocupam os postos de mando é branca e os que limpam são pretos, é um ambiente mergulhado em um racismo institucional que só atrapalha inclusive o trabalho intelectual, porque provincianiza e transforma o espaço em um lugar alienado do próprio país.

*Lindberg Campos é pós-doutorando no Departamento de Letras Modernas da USP.

Notas


[i] Ver em https://adusp.org.br/universidade/docentes-negros-e-negras-entregam-a-carlotti-jr-proposta-de-reserva-de-vagas-nos-concursos-para-professoraes-e-defendem-que-usp-tem-autonomia-para-adotar-o-sistema/

[ii] Ver em https://leginf.usp.br/?resolucao=resolucao-no-8434-de-24-de-maio-de-2023

[iii] Ver em https://jornal.usp.br/artigos/o-racismo-na-composicao-do-corpo-docente-da-usp-e-a-oportunidade-que-nao-podemos-perder/

[iv] Ver em https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2023/05/usp-aprova-cotas-raciais-para-professor-em-concursos-com-mais-de-3-vagas.shtml


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