Por HOMERO VIZEU ARAÚJO*
Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
Argumentarei na sequência do texto que encontramos em Benjamim (1995), de Chico Buarque, uma espécie de memória esquiva e mesmo ambivalente dos anos de repressão sob a ditadura brasileira. Uma armação literária que tende a perverter a fórmula mais óbvia de reelaboração entre melancólica e acusatória do período, daí resultando um romance malicioso e de técnica refinada. Segundo meu ponto de vista, o conjunto compõe amnésia oportuna, atração fatal e lirismo pérfido em saga carioca.
No Bar-restaurante Vasconcelos, Benjamim Zambraia encontra pela primeira vez a mulher que vai guiá-lo rumo ao fuzilamento que ocorre na última página do romance. Trata-se de Ariela Masé, a jovem corretora de imóveis que, antes de levar o protagonista ao desfecho letal, exerce a profissão de levar clientes aos imóveis oferecidos pela imobiliária Cantagalo. É em boa medida o fascínio que Ariela desperta nos homens que organiza a narrativa, marcada também por coincidências improváveis que parecem razoáveis graças às manhas do narrador em terceira pessoa.
Ariela tem pernas longas que atraem o olhar de Benjamim Zambraia, do vendedor de carros Zorza e do arrivista e candidato a deputado Aliandro Esgarate, embora esteja comprometida com o paraplégico Jeovan, policial militar. Mas Jeovan é só uma referência pontual enigmática ao longo do livro até que ganhe corpo e detalhes no último capítulo. É o deslocamento contínuo de Ariela que mobiliza Benjamim, o melancólico Zorza e o acelerado candidato Esgarate. Vale notar que Zorza sai logo de cena e restam Benjamim e Esgarate no encalço de Ariela, embora esta fórmula seja enganosa em uma narrativa em que comparecem encontros casuais e coincidências. Driblando acaso e percalços, Benjamim vai perseguir a moça até seu final entre sinistro, poético e irônico, em um mix que assinala a qualidade superior do livro.
Se Ariela oferece imóveis, se Zorza oferece automóveis, se Esgarate oferece pão e circo para se eleger, Benjamim oferece a si mesmo na condição de modelo publicitário, ex-garoto propaganda que virou senhor grisalho a entregar uma aparência madura de pouca demanda na firma de publicidade de G. Gâmbolo, mais um nome estranho entre outros. Masé, Zambraia, Gâmbolo, etc., circulam numa grande cidade que simula o Rio de Janeiro: há praia, pedras imensas, subúrbios degradados, favelas, edifícios de vários tipos e tamanhos, samba do último carnaval, sem falar no ambiente tropical, quente e úmido. Mas os nomes de ruas, bares, bairros são reinventados por Chico Buarque para criar seu próprio Rio de Janeiro, o que empurra a narrativa para uma situação de lusco-fusco, é e não é, que se ajusta à retórica dubitativa e insinuante que arma o enredo. Em dois momentos cruciais Gâmbolo e Esgarate dizem a mesma frase “Você não morre tão cedo!” para interlocutores distintos. Essa mistura de descontração, ironia e alguma desfaçatez não deixa de ser folclore carioca, aqui em chave sinistra, se levarmos em conta a trajetória de Benjamim que inicia e termina no mesmo fuzilamento.
Mas se Ariela é quem puxa o fio erótico que conduz os homens, é Benjamim quem incorpora as oscilações entre realidade urbana, mercantilizada e esfuziante, raciocínios disparatados, lirismo fascinado, nostalgia culpada, etc. Ele identifica em Ariela a filha da amada de sua juventude nos anos 60, Castana Beatriz, que restava esquecida. De forma cômica mas também patética, um rápido encontro em bar leva Benjamim de volta à sua amada crucial, que ele próprio involuntariamente entregara aos algozes da repressão da ditadura. No jogo de espelhamento do livro, Benjamim é responsável pela morte da talvez mãe Castana, enquanto a suposta filha Ariela guia Benjamim ao pelotão de fuzilamento no presente.
O escritor Chico Buarque organiza um arco que vai da execução de militantes políticos sob a ditadura ao justiçamento por militares ou milicianos na informalidade do Brasil moderno com democracia de mercado. Os procedimentos sumários de repressão política migram para a atividade de um grupo de policiais militares que zela pela honra de Jeovan entrevado, cabo de polícia paralítico em sequela de tiroteio, o que estabelece a continuação entre a informalidade da repressão que se abatia sobre a classe média contestatória e a informalidade de um esquadrão da morte machista que acompanha a jornada de Ariela. Entre um grupo de extermínio e outro vai a distância entre a luta contra ditadura brasileira modernizadora e a modernização alcançada, que, sendo autoritária e mercantilizada, depende da violência miliciana para garantir a ordem.
Benjamim toca a vida, mergulhado nas associações líricas e arbitrárias entre a Castana que ele ajudou a matar e a Ariela pela qual morrerá. O ex-garoto propaganda de sucesso agora tenta sobreviver na condição de modelo publicitário envelhecido submetido aos caprichos do patrão G. Gâmbolo, embora tenha economias investidas em ouro que, segundo seus cálculos canhestros, garantiriam sua sobrevivência em padrões modestos até os oitenta anos. Quando sua atração pela fugidia Ariela já virou uma obsessão calamitosa, ele começa a dissipar seu pecúlio em saques excessivos que reduzem sua estimativa de sobrevivência para pouco mais de setenta anos. Uma parte importante do humor irônico do livro deriva desta desagregação anotada com impassibilidade e lirismo pelo narrador, entre compassivo e piadista, que configura um achado literário de Chico Buarque.
Enquanto Benjamim projeta em Ariela a Castana do passado, ele também capta a simpatia pérfida do narrador, e as revelações sobre a relação com Castana vão surgindo em intervenções da narração e a memória de Benjamim. A personagem nas suas oscilações e fantasias contrasta com o ambiente materialista cru em que trafegam G. Gâmbolo, Zorza e o audacioso Esgarate, que estão inseridos na dinâmica de mercado. Zorza, casado, pai, fumante e vendedor de carros, mantém uma relação relativamente longa com Ariela, que, até onde explica o narrador, não está muito interessada no assunto. Quando Benjamim e Esgarate apresentam-se para a moça, Zorza é dispensado. Esgarate, que precisava de um imóvel, seduz um tanto pela ostentação agressiva, mas também pode simplesmente se impor pela ação de seus guarda-costas, que lá pelas tantas empurram a moça relutante para dentro do carro de Esgarate. Entre outras ironias, Benjamim é o pretendente ingênuo e preterido que termina fuzilado enquanto Zorza e Esgarate, que deitaram com Ariela, escapam ilesos.
Nestes termos, Ariela entrega ao pelotão de policiais o bode expiatório que permitirá talvez que ela volte a se encontrar com seus antigos amantes. Ela era a moça pobre que foi abordada pelo cabo Jeovan logo depois de chegar à cidade, e são dele os imóveis que ela vai tentar alugar e vender. Ela exerce fascínio pela beleza e alguma destreza em captar a simpatia masculina, com o narrador evitando revelar suas reações e motivos. Ela obteve prazer nas tardes com Zorza? Sua ternura por ele é momentânea, circunstancial? Seu interesse pelo suposto refinamento de Benjamim é um arroubo? Deixa-se levar pelas investidas abruptas e aleatórias de Esgarate por curiosidade ou aposta profissional? É inegável que seu perfil enigmático faz parte de seu charme, mas até que ponto é digamos espontâneo ou calculado é outro enigma, que por sua vez o narrador relativiza com observações detalhistas sobre cabelo, boca, atitudes, etc., numa espécie de devoção masculina por efeitos de corpo que ampliam o interesse e aumentam o impasse. Acho que não é exagerar se considerarmos que há uma sombra de Capitu aqui: a moça pobre e bela que atrai e perturba. Pode ser.
Mas Ariela, Zorza, Esgarate, G. Gâmbolo e mesmo Jeovan são criaturas inseridas, e mais ou menos satisfeitas, na cidade tropical; o problemático é mesmo Benjamim, que carrega o peso por ter revelado o paradeiro do casal subversivo formado por Castana e o professor Ribajó. A culpa havia desaparecido junto com a lembrança de Castana Beatriz, mas o encontro ocasional com Ariela vai encerrar a amnésia conveniente, tão classe média. Benjamim e Castana eram jovens e belos à disposição para entrar no negócio da propaganda, em breve estabelecem sintonia amorosa. Mas Castana tem pai abastado, o senhor Campoceleste, e interesses mais variados, em breve vai se afastar de Benjamim e discutir política e América Latina naquele momento de ativismo e rebeldia. Daí passará à relação intensa com o professor casado e engajado.
Benjamim prossegue perseguindo a moça, obtém informações que, sob fraca pressão, acaba entregando ao pai Campoceleste. Aqui se estabelece o perfil do inocente útil, e o namorado insistente converte-se em delator acovardado. Isso associado à futilidade do meio publicitário rende uma fórmula de descompromisso que é compensada talvez pela devoção amorosa. Depois da primeira delação ao pai, vem a perseguição a Castana, com a polícia acompanhando os esforços do devoto, que assim colabora de forma tola e inconsequente com a repressão. O vigia vigiado oscila entre cômico e desastrado, não obstante o resultado drástico que é a revelação de onde se encontram Castana e seu professor.
Benjamim foi de mal a pior; sua paixão vigilante levou à execução do casal clandestino. Seu isolamento social (sem amigos, parentes, etc.) na atualidade em que tropeça com a sósia de Castana pode ter sido causado pelo desastre que em parte provocou. Uma prima de Castana deu uma cuspida no olho do pateta na fila de cinema, mas a narrativa não entra em detalhes. A cena é uma síntese do procedimento de Chico Buarque, com toques maliciosos a revelar as ilusões congratulatórias de Benjamim, seu autoengano e a anotação da reação de impacto da personagem feminina, a tal prima. Depois do assassinato de Castana, passado algum tempo Benjamim se vê no ostracismo:
“Benjamim tornou a procurar os amigos nos dias seguintes, na praia, no bar, e afinal por telefone: surpreendidos em contrapé, covardes, eles silenciavam e desligavam o aparelho. Cerca de um mês mais tarde, numa fila de cinema, Benjamim identificou pelas sardas nas costas uma prima irmã de Castana Beatriz que sempre lhe demonstrou bastante simpatia. Com ar desavisado ele falou “oi, Ana Colomba, eu pago o teu ingresso”, e preparou-se para o golpe. Ana Colomba voltou-se, engoliu em seco e pigarreou, depois sugou as bochechas e afunilou os lábios, como se quisesse depurar as palavras (“até hoje eu não me conformo”, “você deve estar destruído”, “foi você o amor da vida dela”, “eu sempre gostei do teu cheiro”). Benjamim ainda viu as pequenas bolhas que se formavam no seu bico, e que se coalhavam, e que tomavam mais ou menos o aspecto de uma couve-flor, depois não viu mais nada porque a cusparada o atingiu dentro dos olhos.”
Assombrado por esta culpa, Benjamim apagou o passado até topar com Ariela, na qual projeta Castana Beatriz. Em suma, ressurge a síndrome de ilusões, projeções e autoengano num ritmo que, vinculado a associações arbitrárias e hipóteses em torno de Ariela, pauta boa parte do romance. As hipóteses tolas ou razoáveis, os desejos insinuados etc., sucedem-se, mas se misturam à magistral anotação de cenas realistas e de detalhes nítidos; com o aceleramento da ação, emerge o mix de fantasia lírica, provocação realista e delírio convincente. Tudo isso repassado por humor entre distanciado e macabro, em geral mediante curtas e variadas entradas do narrador inventado por Chico Buarque. “Nada garante que Ariela seja filha de Castana Beatriz. Benjamim para de estalo no meio-fio, como que tropeçando na conjetura de que uma e outra sejam estranhas.”
O resultado é ambivalente e provocador, alcançando transformar em narrativa exigente a crônica de um idiota amoroso que se descobre responsável pela morte da militante política. Nos privilégios um tanto precários deste amável senhor de classe média está cifrado o valor da amnésia oportuna. Benjamim é um livro macabro, cômico e lírico, que pode ser lido como quase uma consequência de Estorvo, romance anterior de Chico Buarque. Mas isso já seria outro assunto.
*Homero Vizeu Araújo é professor titular de literatura brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autor, entre outros livros de Futuro pifado na literatura brasileira (Editora da UFRGS).
Referência

Chico Buarque. Benjamim. Companhia das Letras, 1995, 168 págs.
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