O momento Trump

Marcelo Guimarães Lima - "X" , acrílico sobre madeira / acrylic on wood 2018.
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Por AUGUST H. NIMTZ JR.*

Por que aconteceu, por que “nos esquivamos da bala” e o “Que Fazer?”

Introdução

O mais instrutivo sobre 6 de janeiro de 2021 não é a mini-rebelião dentro do Capitólio, mas o fato de que apenas 30 ou 40 mil pessoas dos 74 milhões que votaram em Donald Trump, em 3 de novembro, viajaram para Washington com o objetivo de participar de uma manifestação pacífica para demonstrar seu apoio contínuo a ele. Esta cidade vivenciou inúmeras manifestações progressistas desde 1963, em número que facilmente engoliria esta manifestação. E daqueles que frequentaram a manifestação, cerca de 8 mil pessoas aceitaram a sugestão de Trump de que eles “caminhassem” até o Capitólio. E desse grupo, em torno de dez por cento decidiu trespassar. Baseado nos registros de prisão, até o momento, parece que cerca de metade dos 800 invasores, entre 400 e 500, agiu conscientemente – talvez – para evitar uma transferência pacífica do poder presidencial. E desse grupo seleto, “40% dos presos no Capitólio são proprietários de empresas ou têm empregos de colarinho branco”. [1]

Em outras palavras, uma porcentagem infinitesimalmente pequena dos 74 milhões de eleitores de Trump, ou uma porcentagem ainda menor dos 240 milhões de eleitores, não representativos da totalidade da população do país, voluntariamente, expressaram suas opiniões para tentar impor seus interesses à maioria. Não se trata de menosprezar o que os 400 fizeram em 6 de janeiro, mas sim de um apelo para não exagerar sua importância. Uma ação política, certamente desse porte, em que a atenção de muitos dos participantes foi direcionada para suas próprias câmeras, não poderia ter sido uma ameaça ao poder político em um país de 330 milhões de habitantes cujos cidadãos gozam de direitos democráticos básicos. Faça assim a respiração profunda proverbial e relaxe! Mas não muito.

Para que eu não seja acusado de escrever do ponto de vista confortável de uma retrospectiva haja vista que Trump não tem mais acesso ao púlpito para repetir o que fez em 6 de janeiro, considere o que escrevi logo no início do seu mandato. Apesar de todo o barulho que saía da Casa Branca, ao contrário de tudo o que já foi visto, provocando os primeiros estágios do que a trupe da Fox jocosamente denominara de “Síndrome de Insanidade de Trump”, aconselhei:

“A crise capitalista e a política do mal menor desgastada pelo tempo produziram Trump em 8 de novembro. Mas contra a histeria liberal, isso não anunciava a chegada do apocalipse. Três meses ou mais da presidência de Trump, a realidade sistêmica capitalista começou a se afirmar em meio ao barulho no nível da aparência. Sua eleição foi um tiro de advertência, uma bala que acho que vamos nos esquivar”.

“Mas”, acrescentei imediatamente, “não devemos abusar da sorte”. [2]

Para compreender o advento de Trump

Quando encontrei o movimento Impeach Bush pela primeira vez em 2007, tive que pensar em como responder de uma maneira pedagógica e não sectária. Comecei a dizer, “Se não impugnarmos o sistema que colocou Bush na Casa Branca, teremos alguém lá que nos fará ansiar por ele”. Não, eu não tinha uma bola de cristal para prever o presidente Donald Trump; apenas os ensinamentos legados por Marx e Engels, e enriquecidos com as lições de seu estudante mais capaz, Lênin, e mais outras de alguns dos seus seguidores nos Estados Unidos.

A crise de longo prazo do capitalismo tardio e sua economia política cotidiana, falando de uma forma altamente destilada, tornou possível uma presidência de Bush – assim como a de Trump. O fim do boom econômico pós-Segunda Guerra Mundial, sinalizado pelas duas recessões das décadas de 1970 e 1980, inaugurou o início do fim do “Sonho Americano” para seus trabalhadores urbanos e rurais. O crescimento estagnado e a produtividade anêmica, devido à crise de lucros do capitalismo tardio, levaram a um encolhimento do bolo econômico – para o qual os defensores do capitalismo não têm outra solução senão apertar o torno das vidas dos trabalhadores, dos seus direitos e de seus padrões de vida. Pressionar os trabalhadores para restaurar a lucratividade capitalista também exigia cortes nos salários sociais, isto é, benefícios sociais. [3] A realização de ambos os objetivos exigia uma mudança para a direita na política burguesa – mas um resultado que estava longe de ser inevitável.

A razão subjacente ao caráter contencioso de mais de 25 anos da política dos Estados Unidos, sua “polarização”, seu “tribalismo”, é a realidade preocupante de que o melhor que o capitalismo tinha a oferecer aos trabalhadores ficou para trás. Na ausência de uma alternativa política independente da classe trabalhadora, a política sob o capitalismo só pode ser a política burguesa, uma luta por cujo grupo, em qualquer cor de pele, gênero, nacionalidade ou o que quer que seja – qualquer coisa que não seja a consciência e solidariedade da classe trabalhadora – mantém, obtém ou aumenta para “seu povo” sua fatia diminuta do bolo. Essa foi a parte necessária da mistura que possibilitou a Trump entrar na Casa Branca em 2016 – um estranho que se comprometeu não apenas a construir o muro, jogando a carteira de identidade “branca”, mas “para drenar o pântano”, o fedor da política burguesa.

Determinantes para a vitória de Trump em um nível mais granular foram os 206 condados no chamado Rust Belt que votaram duas vezes em Obama, mas migraram para Trump. Também foi instrutivo Flint, Michigan, com metade de sua população afro-americana. O envenenamento do abastecimento de água da cidade por chumbo, iniciado sob uma administração republicana, mas efetivamente ignorado pelos democratas, incluindo a Casa Branca de Obama, explica por que quase dois terços do eleitorado da cidade ficaram em casa no dia das eleições, em 8 de novembro de 2016. Ajudou Trump a tomar o estado de Michigan, um dos três estados do “campo de batalha” para sua vitória.

A ausência de um partido político que represente e lute pelos interesses dos trabalhadores – um fator contingente e exatamente por que a virada para a direita da política burguesa não era inevitável – tornou aqueles que antes votaram no Partido Democrata cada vez mais vulneráveis ​​ao canto de sereia do outro partido capitalista, os republicanos. Marx certa vez disse em algum lugar que uma pessoa que está se afogando agarrará um galho se achar que isso pode salvá-la. Para os trabalhadores que não conseguiram votar em um republicano, eles se abstiveram cada vez mais, como em Flint; 43% nacionalmente em 2016 e 33% até mesmo na eleição altamente disputada de 2020. Não ser esquecido é a realidade diária da concorrência na mídia capitalista, a razão de todo o tempo de antena gratuito que Trump obteve – também foi determinante em sua vitória.

Por último, e não menos importante, o fator Hillary Clinton, uma candidata que sintetizou tudo o que há de tão problemático na política burguesa para a classe trabalhadora. Business as usual. Literalmente – a compra e venda como forma política, como acontece com tudo sob o capitalismo, incluindo integridade pessoal. O fato da confiança pública no governo estar em um nível historicamente baixo antes da eleição funcionou especialmente como uma desvantagem para ela – exatamente por que a promessa demagoga de Trump de “drenar o pântano” ressoou bem entre muitos trabalhadores. Embora tenha tentado voltar atrás, Clinton nunca foi capaz de superar a reação negativa entre os trabalhadores ao pronunciamento em West Virginia, no início da campanha, de que, se eleita, colocaria “muitos mineiros e empresas de carvão fora do mercado”. Suas avaliações desfavoráveis, pelo menos até 6 de janeiro, ainda eram mais altas do que as de Trump.[4] Isso diz muito a respeito do produto danificado que o Partido Democrata estava vendendo em 2016.

Mas Clinton era simplesmente a representante de um partido, com raízes na escravocracia, que tinha um longo histórico de se associar a movimentos progressistas, começando com o movimento original na década de 1890 e, em seguida traí-los – sua cova. “Fora das ruas, para as suítes” tem sido seu canto coletivo, a caminho de serem domesticados.

A prova principal é o que aconteceu em Minnesota, o único estado na história dos EUA onde um partido da classe trabalhadora, o Farmer-Labour Party (FLP) [Partido Fazendeiro-Trabalhista], ganhou quatro eleições consecutivas para governador – que eram bienais – de 1930 a 1936. Mas o partido era ideal para cooptação pelos democratas, como o fizeram em 1944, quando já havia se tornado uma força esgotada. Farrell Dobbs, um líder sindical militante em Minnesota que uma vez discordou do FLP, e que mais tarde tornou-se um socialista revolucionário, explicou por que anos depois:

“A ação política trabalhista independente requer mais do que uma ruptura organizacional com o sistema bipartidário capitalista. Se o programa de um partido de massas permanecer limitado a buscar reformas compatíveis com o capitalismo, os trabalhadores se verão presos em normas procedimentais destinadas a servir aos interesses da classe dominante. Oportunistas dentro do partido, que colocam suas ambições pessoais acima das necessidades das massas, agirão como agentes de fato do capitalismo; e o que deveria ser um movimento social emancipatório degenerará em um instrumento estreito que ajuda a perpetuar as próprias injustiças que inicialmente se propôs a corrigir. Assim, as esperanças e aspirações dos trabalhadores tornam-se frustradas”. [5]

A avaliação incisiva de Dobbs pode ser o epitáfio não só para o FLP, mas também para a socialdemocracia do século passado, virtualmente em todos os lugares; e também o motivo da maior dificuldade do trabalho organizado em entregar o voto de seus membros aos democratas nas eleições presidenciais de 2016 e 2020. Não havia nada de inevitável acerca da decadência e eventual morte do FLP nas garras alegres e pacientes do Partido Democrata. Trump se beneficiou dessa decisão fatídica porque o renomeado Democratic-Farmer-Labor Party (DFL) [Partido Democrático-Fazendeiro-Trabalhista] havia se tornado cada vez mais desconectado das necessidades dos trabalhadores que antes votavam quase religiosamente no partido. [6]

A duplicidade do Partido Democrata foi plenamente exposta após o assassinato de George Floyd em 25 de maio de 2020. Os protestos multirraciais em massa sem precedentes que eclodiram pela primeira vez em Minnesota constituíram um desafio para o partido, especialmente em um ano de eleição presidencial em que a prioridade absoluta era considerada a derrota de Donald Trump. Em um dos protestos no Capitólio, um funcionário do DFL instou os manifestantes a direcionar suas energias para derrotar Trump, a única maneira de acabar com a brutalidade policial. Em nível nacional, a então estrela em ascensão do Partido Democrata, Stacey Abrams, ecoou essa afirmação. Em um artigo de opinião no New York Times, escrito no auge dos protestos, ela quase implorou aos manifestantes que entendessem que “o voto… em uma democracia… é o poder final”.[7] Nada poderia estar mais longe da verdade.

Fetichismo do Voto

A tendência de muitas pessoas normalmente inteligentes de ver os 71 milhões que votaram em Trump em 2016 – a “cesta irredimível cheia de deploráveis” de Clinton – e, mais tarde, os 74 milhões que votaram nele catastroficamente em 2020 é demonstrar aflição com o que eu chamo de “fetichismo do voto” – uma doença tanto da esquerda quanto da direita. É um erro tratar o voto como um exercício real de poder. É um direito democrático importante, muitas vezes conquistado na luta, de registrar preferência por um candidato ou por uma política, nem mais, nem menos. Registrar uma preferência, entretanto, não é exercer poder. Fazer o último significa impor sua vontade. Cada vez que você pressiona o botão para ligar o computador, por exemplo, você está fazendo exatamente isso; que é chamado de “power”. Mas, uma ação que leva em média não mais do que um minuto para ser realizada e é realizada sozinha – o significado comum de votação política – não poderia estar mais distante do que é necessário para o exercício do poder político.

Da próxima vez que ouvir uma pessoa sem dúvida bem-intencionada aconselhar que a ação política mais importante que você pode fazer é votar, questione. A primeira vez que tentei votar, em 1964, em New Orleans, no período das leis Jim Crow, tive esse direito negado devido à cor da minha pele. Quatro anos depois, eu poderia tê-lo feito. Como explicar? Exatamente porque pessoas que se pareciam comigo e nossos aliados “votavam com os nossos pés”, nas ruas – através das marchas em massa em Selma, Alabama e outros lugares para exigir o direito de voto – impondo com sucesso nossa vontade. De que outra forma explicar o fato de que aqueles que não podiam votar ganharam o direito de votar?

A política real – ou, melhor, a política transformadora – ocorre nas ruas, nos piquetes, nas barricadas ou no campo de batalha. Em outras palavras, envolve muitas pessoas agindo juntas e leva muito tempo. Foi assim que o direito de voto foi conquistado e exatamente como ele pode ser defendido com sucesso. Nem toda ação revolucionária resulta imediatamente em sucesso; a maioria, na verdade, fracassa. Mas sem elas, nenhuma mudança significativa é possível – o que as revoluções bolchevique e cubana ensinam – enquanto insurreições genuínas.

A réplica tão perspicaz de Lênin aos críticos da Revolução Bolchevique como Karl Kautsky sobre a realidade das eleições foi a inspiração para a minha formulação de “fetichismo do voto”. Sua falácia, ele argumentou, era “imaginar que problemas políticos extremamente importantes podem ser resolvidos pelo voto. Na verdade, esses problemas são resolvidos pela guerra civil se forem agudos e agravados pela luta”.[8] A noção de Marx e Engels, de “cretinismo parlamentar”, a crença equivocada de que o que acontece na arena legislativa seria o início e o fim de tudo da política, foi outra inspiração. Mas, isto significa que Marx, Engels ou Lênin rejeitaram as eleições e a participação na arena parlamentar? Ao contrário. Como Lênin escreveu dois anos após a ascensão bolchevique, essas esferas foram “indispensáveis” para seu sucesso. Não como um fim em si mesmo, mas, como Marx e Engels ensinaram, como um meio para um fim, para fazer uma revolução – o que ele rotulou de “parlamentarismo revolucionário”, em nítido contraste com o “parlamentarismo reformista” ao estilo socialdemocracia. [9]

A lição revolucionária para mim sobre a realidade do voto foi a eleição presidencial de 2000. Os eleitores do candidato Al Gore, do Partido Democrata, que representava a maioria, estavam dispostos a registrar sua preferência, mas não a impor sua vontade. Os eleitores de Trump pelo menos realizaram uma manifestação; Gore nem mesmo entendeu isso. No final, uma pessoa, nomeada, em vez de eleita a um posto vitalício, a juíza da Suprema Corte Suprema dos Estados Unidos Sandra Day O’Connor, decidiu em uma deliberação de cinco votos a quatro que George W. Bush, que ganhou o colégio eleitoral, mas não o voto popular, seria o presidente dos Estados Unidos – feito não de uma forma conspiratória pelo “estado profundo”, mas legalmente, seguindo a Constituição. Tudo pôde ser visto através da rede de transmissão do C-SPAN. Imagine a conversa a 90 milhas de distância, em Cuba ou em qualquer outro país do Terceiro Mundo ou semicolonial. “Você quer dizer”, alguém provavelmente perguntou, “que uma pessoa não eleita poderia realmente decidir quem seria o presidente dos Estados Unidos, o modelo de governo democrático? E não houve protestos?” Só então entendi por que a palavra “democracia” nunca foi incluída no documento de fundação da República.

Duas décadas depois, o povo de Porto Rico, súditos coloniais, deu outra lição. Quase metade dos habitantes da ilha saiu às ruas no verão de 2019 para forçar o governador a deixar o cargo. A última vez que algo semelhante aconteceu em um território relacionado aos Estados Unidos foi a rebelião liderada por Nathaniel Bacon na Virgínia colonial, em 1676, o que não foi nenhuma coincidência. Os súditos coloniais tendem a ser mais esclarecidos sobre a realidade do poder porque são obrigados a sê-lo; pois são mais sóbrios do que aqueles que gozam de direitos democráticos burgueses. [10]

O ponto de Lênin sobre a “guerra civil” também é preciso. A questão mais crítica da história dos Estados Unidos, como acabar com a escravidão, não foi resolvida na Suprema Corte, no Congresso ou por uma eleição presidencial. Somente no campo de batalha essa questão tão polêmica poderia ser resolvida. Argumentar, como no julgamento do impeachment de Trump no Senado, que o grupo heterogêneo de 400 pessoas na manifestação de 6 de janeiro constituiu uma ameaça existencial à República não é apenas subscrever o “cretinismo parlamentar” – talvez melhor, “solipsismo parlamentar” – mas depreciar a importância da Appomattox em 1865. A rebelião da escravocracia quatro anos antes foi e continua sendo a única ameaça real ao projeto democrático dos EUA – um trabalho ainda em andamento.

Como os eleitores de Gore, os partidários de Donald Trump nunca estiveram dispostos – pelo menos até agora – a se mobilizar em número suficiente para exercer o poder, para impor sua vontade. Sair no mundo virtual tem se mostrado aparentemente mais atraente do que fazer política em pessoa, política real – não muito diferente de grande parte da esquerda na Zoomosfera desde o bloqueio pandêmico. Charlottesville, na Virgínia, em 2017, foi o primeiro sinal. Duzentos e cinquenta pessoas, no máximo, participaram do infame desfile da tocha tiki, após meses de organização nas redes sociais. Apesar da reação alarmista dos liberais ao teatro de aspirantes nazistas, os progressistas apareceram em dezenas de milhares em Charlottesville e Boston nos dias seguintes para deixar claro que não era ainda o momento de enviar os palhaços – pelo menos o mais perigoso (retorno a isso mais tarde). As forças progressivas tiveram, portanto, uma trégua – até agora.

Também instrutivo sobre os liberais é a demasiada importância dada às ações de tão poucos no dia 6 de janeiro, comparado com os talvez 25 milhões de pessoas de todas as cores de pele e outras identidades que tomaram as ruas na primavera e no verão passado, em meio à Covid-19, em todas as esquinas da América, para protestar contra o assassinato de George Floyd. O ano de 2020, apesar da pandemia, não foi o ponto mais baixo para nossa espécie, como alguns tomados pelo lockdown devido à pandemia nos querem fazer acreditar. Ter tido a oportunidade de participar de qualquer uma das ações foi literalmente uma lufada de ar fresco. Até mesmo o segundo turno das eleições na Geórgia dias antes contribuiu para diluir as ações dos invasores do Keystone Kop Capitol – fatos óbvios que as travessuras dos 400 invasores não registraram, ao contrário do catastrofismo liberal, de forma alguma uma reação triunfante.

Exacerbar a importância dos “insurgentes”, é a contra-imagem partidária que a turma da Fox fez com os protestos de George Floyd. O momento comparável à invasão do Capitólio foi o que ocorreu no primeiro desses protestos, em Minneapolis, no dia seguinte ao assassinato de Floyd.

Após um protesto pacífico de 5 mil pessoas, a maioria dos quais eram caucasianos – uma ação sobre a qual tive o privilégio de assistir e escrever [11] – os manifestantes marcharam próximo à delegacia. Decidi não participar naquele momento sabendo o que era provável que ocorresse. Cerca de um punhado dos manifestantes já foram condenados por incendiar a estação; entre eles, alguns ultradireitistas. Ao contrário das afirmações liberais de que a polícia tem sido mais dura com os manifestantes contra a brutalidade policial do que a multidão que atuou no Capitólio, o incêndio e os saques subsequentes em Minneapolis e St. Paul aconteceram impunemente. Como no Capitólio, a grande maioria dos manifestantes era de meros espectadores, não atores – a diferença entre entretenimento e algo mais significativo. Somente quando parecia que outra delegacia de polícia seria atacada, a classe dominante de Minnesota encontrou os meios, três dias depois, para chamar a Guarda Nacional para restaurar a ordem.

Assistir a tudo na televisão local e sentindo o cheiro das brasas acesas a cinco quilômetros de distância me fez lembrar o que li sobre o dia 1º de janeiro de 1959, a greve geral em Cuba que marcou o triunfo da revolução. Ao contrário de Minneapolis, não houve queima de delegacias de polícia. Ao invés, elas foram tomadas por milhões nas ruas, sob a liderança que Fidel Castro fundara seis anos antes, e convertidas em instituições que serviram suas populações locais pela primeira vez. O que acontece, em outras palavras, em uma verdadeira insurreição, e por que, portanto, o fenômeno George Floyd não existe em Cuba. [12]

Três meses depois, ficou claro que os governantes locais já haviam encontrado seu equilíbrio. O saque e o vandalismo desenfreados na jóia da coroa do distrito comercial central de Minneapolis, após um relatório falso de brutalidade policial, trouxeram de volta a Guarda Nacional em tempo rápido.[13] Os saqueadores, quaisquer que fossem seus motivos, deram à classe dominante de Minnesota um motivo barato para fazer seu trabalho – deixar de rodeios e impor suas regras.

Nisso embutido estava o resultado mais perigoso do saque e vandalismo. As elites governantes locais puderam retomar o espaço político em nome da restauração da lei e da ordem. Isso também é o que foi o mais problemático no dia 6 de janeiro. O estado nacional capitalista, especialmente desde os ocorridos do dia 11 de setembro de 2001, encontrou um novo pretexto para infringir os direitos democráticos e as liberdades civis. Alguém realmente acredita que sua campanha atual para reprimir o “extremismo” estará confinada apenas às forças de direita / reacionárias? A história das causas progressistas, certamente nos Estados Unidos, ensina o contrário – lições que seus apoiadores ignoram por sua conta própria e risco. [14] “Sedição”, que entrou no vocabulário de milhões pela primeira vez devido aos acontecimentos de 6 de janeiro, foi a acusação oportuna contra o candidato presidencial do Partido Socialista, Eugene V. Debs, condenado e forçado a conduzir sua campanha de 1920 de uma cela da prisão. A perseguição de Debs por exercer a liberdade de expressão antecipou a caça às bruxas de McCarthy duas décadas depois.

Que Fazer?

“Uma coisa é certa”, escrevi em 2013: “a lógica do capital dita que, a menos que haja uma alternativa real da classe trabalhadora, a política burguesa continuará se movendo para a direita – especialmente no contexto da crise [capitalista] ainda em desenvolvimento. Cada atraso na busca de uma ação política independente da classe trabalhadora apenas encoraja a reação”. [15] Quatro anos depois, novamente, três meses dentro da presidência de Trump, também escrevi:

“Trump, ao contrário da histeria liberal possuída pelo pensamento do mal menor, está longe de ser o pior que a crise do capitalismo prenuncia. [Pense no presidente Ted Cruz ou no presidente Tucker Carlson! Rebuscado?] Tanto a ala democrata quanto a republicana da classe dominante e seus porta-vozes na mídia estavam dispostas a arriscar um bufão de inclinação bonapartista na Casa Branca para impedir a vitória de um socialista rosa [Bernie Sanders], e isso diz muito sobre o que eles estão dispostos a recorrer para defender seu sistema. [Alexis de] Tocqueville, ao contrário de seus admiradores modernos, teve pelo menos a honestidade de admitir por que ele poderia ter permitido, e de fato permitiu, que a ‘mediocridade grotesca’ original tomasse o poder, Luís Bonaparte, em 1851: ‘Sou instintivamente aristocrático porque eu desprezo e temo as multidões’”. [16]

O medo e o desprezo de Tocqueville pelas massas soam completamente atuais: o que os liberais consideram mais alarmante sobre Trump são os “deploráveis ​​irredimíveis” que o apoiam. Esse sentimento se aprofundou ainda mais ao longo da presidência de Trump, principalmente quando se soube que o eleitorado de Trump cresceu em torno de três milhões nas eleições de 2020, contando com mais negros, indígenas e pessoas de cor (BIPOCs)!

O que escrevi em 2013 antecipou o momento Trump de forma mais convincente do que minha resposta ao movimento Impeach Bush em 2007. A Grande Recessão de 2008 e o tributo que ela estava cobrando da classe trabalhadora tornaram isso possível. Da mesma forma, as antigas deficiências de soluções do Partido Democrata para o proletariado ainda existiam. O que informou meu ponto de vista, também, foi uma crítica, algumas páginas antes, que fiz sobre o movimento trabalhista dos EUA: sua “prostituição cínica… em conluio com seus dirigentes, do Partido Democrata”. Por exemplo, algo que agora se destaca em minha narrativa:

“O chefe da AFL-CIO [de Delaware] [um afro-americano] me contou, em 2011, como, depois de expressar insatisfação ao vice-presidente Joseph Biden com o desempenho medíocre do governo Obama sobre as relações de trabalho, Biden respondeu: ‘Do que você está reclamando? Você sabe que não tem outro lugar para ir!’ A verdade dura é que Biden estava certo. Enquanto os funcionários trabalhistas continuarem a se recusar até mesmo a considerar romper com os democratas, isso será eternamente explorado até o seu fim”. [17]

Isso explica em muito por que a liderança enganosa dos sindicatos dos EUA não pode mais garantir que seus membros votem nos democratas – algo de que Trump se beneficiou. “Cada atraso”, para repetir, “na busca de uma ação política independente da classe trabalhadora apenas encoraja a reação”. Não há nada que sugira que agora o presidente Biden tenha uma posição diferente sobre o movimento trabalhista, o que significa que a classe trabalhadora não pode esperar nenhuma melhora significativa em sua situação – o que mais uma vez aumenta o potencial de vitórias eleitorais de direita em 2022 e 2024.

O comentário de 2017 é mais interessante porque argumenta a favor de um fator na vitória de Trump que é quase contraintuitivo – a ajuda dos liberais. O medo do “socialismo”, equivalente à “multidão” para Tocqueville, é exatamente o que o levou a entreter e eventualmente atrair Bonaparte a dar seu golpe de Estado. Ele admitiu que preferiria arriscar ter “a mediocridade grotesca” no poder do que “as massas”, isto é, “os socialistas”.

Se não for tão honesto quanto Tocqueville, não foi isso que o establishment do Partido Democrata fez para garantir que Bernie Sanders não tivesse a indicação do partido, não apenas em 2016, mas também em 2020? Mais uma vez, arriscar uma presidência e reeleição de Donald Trump? Eu deixo de lado a substância do “socialismo” de Sanders. [18] Ou, se a oposição a ele foi motivada sinceramente pela política de Sanders ou medo de sua derrota. Em meados do século XIX, a França de Tocqueville podia ser mais honesta, pelo menos publicamente, do que os chefes do Partido Democrata sobre o assunto. Mas certamente as páginas editoriais e de opinião do jornal liberal mais influente, o New York Times, deixaram claro que o fator “socialismo” pesou mais em sua posição anti-Sanders. É provavelmente verdade que Sanders, dados todos os seus compromissos subsequentes com o establishment do Partido Democrata, teria sido mais eficaz contra Trump em 2016 do que em 2020.

Chamar Trump de “bonapartista” uma vez no cargo era reconhecidamente problemático. Eu fiz isso inicialmente porque a caracterização memorável de Marx do protótipo Louis Napoleão Bonaparte, “a mediocridade grotesca”, parecia muito adequada. Porém, depois da metade de seu mandato, abandonei o rótulo. Bonaparte na verdade derrubou a Constituição e a Segunda República em 1852. Não estava claro, pelo menos para mim, que Trump queria fazer algo semelhante. Tudo o que era certo é que ele foi o capitalista mais autêntico a ocupar a presidência dos Estados Unidos, e com tudo o que isso implicou – o interesse próprio em alta dose. [19] Seu fracasso em mobilizar a multidão que o saudou alguns dias após sua alta do Hospital Walter Reed, uma oportunidade para levá-los ao frenesi, parecia notavelmente não-bonapartista. Tudo o que ele conseguiu fazer foi acenar para eles de dentro de sua caminhonete a caminho para o campo de golfe.

Portanto, seu comportamento eleitoral pós-2020, quando ficou cada vez mais claro que ele realmente queria reverter o resultado da eleição, foi inesperado. Nesse sentido, ele era de fato um bonapartista, ou pelo menos um aspirante. Mas ele enfrentou um grande problema que o original não enfrentou. Não foi um momento bonapartista. A classe capitalista dominante, ao contrário do cenário original, não era um parceiro voluntário – certamente nenhuma ala significativa.[20] Assim o foi porque as massas da classe trabalhadora não eram uma ameaça ao seu governo, como fora cada vez mais verdade na França nos anos que antecederam ao golpe de Estado de Bonaparte. E, além disso, por que provocar descontentamento em massa desnecessariamente (e provavelmente mais) e concordar com a campanha de Trump para reverter a eleição? Como analisou a página editorial do Wall Street Journal: “o que os republicanos acham que aconteceria se [o vice-presidente] Pence puxasse o gatilho, Biden tivesse negado os 270 votos eleitorais e a Câmara escolhesse Trump como presidente? Tumultos nas ruas seriam o menos importante”. [21] Raramente a página editorial de um prestigiado diário burguês está disposta a admitir o que realmente importa na política.

Ao contrário de Bonaparte, Trump, portanto, era muito inepto para dar um golpe, para mobilizar as massas em seu nome e incapaz de convencer qualquer parte importante da classe dominante a endossá-lo. O herdeiro indulgente de um magnata do mercado imobiliário de Nova Iorque foi incapaz de organizar um desafio sério às eleições; nada em sua formação o preparou para fazer algo muito mais ameaçador. Nosso lado está com sorte! A bala que esquivamos.

Quanto aos republicanos no Congresso que concordaram com Trump, como explicaram os editores do Wall Street Journal, eles o fizeram, exatamente porque sabiam que isso não aconteceria; era tudo teatro. Ao contrário de Trump, Patrick Buchanan, aspirante ao Partido Republicano em 1992, provavelmente não tinha apenas as habilidades, mas também a vontade de organizar uma mobilização séria. Seu problema também era com a classe dominante. Eles não precisavam dele – naquele momento. Haverá um tempo em que precisarão e sua vitória dependerá da capacidade de luta da classe trabalhadora – o trabalho preparatório anterior às batalhas decisivas de classe.

O venerado autor de Democracia na America é o protótipo de um liberal em um autêntico momento bonapartista. O medo profundo de Tocqueville das massas antecipou sua resposta à classe trabalhadora em movimento na Revolução de 1848. Um grande protagonista do drama de meados do século, ele fez tudo o que pôde para esmagá-las. Com isso, ele inadvertidamente abriu o caminho para o golpe de Bonaparte; mas Tocqueville não se arrependia. Trump não tinha uma contraparte tocquevilliana que pudesse ter dado licença para um golpe. Como Tocqueville e seus companheiros liberais ajudaram e incitaram a derrubada de Bonaparte da Segunda República, não há melhor relato do que O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte escrito por Marx. [22]

Nas profundidades do DNA de um liberal como Tocqueville está o medo das massas em movimento. Martinho Lutero é o exemplo mais notável do início da história moderna. A liberdade de consciência era um objetivo nobre enquanto as massas camponesas não acreditassem e não agissem de acordo com a mesma crença; se o fizessem, morte para eles, como Lutero pediu quando se rebelaram em 1524-1525. Suas ações anteciparam as de Tocqueville trezentos anos depois. As páginas editoriais e de opinião do New York Times seguem essa tradição ignóbil; novamente, o apelo de Stacey Abrams aos manifestantes de George Floyd para direcionar suas energias para a arena eleitoral. Se os republicanos tendem a negar aos trabalhadores o direito democrático de votar, especialmente aqueles com pele preta e marrom, os democratas fazem campanha para convencer os trabalhadores de que somente por meio do voto a democracia pode ser exercida. O que ambos têm em comum é o medo da “turba”, das manifestações.

Ninguém deve duvidar de que grandes batalhas de classes estão para acontecer. A crise cada vez mais profunda do capitalismo obriga os trabalhadores – e reitero que somente em cujas costas os capitalistas podem resolver a crise – a procurar soluções radicais, não apenas na esquerda, mas também na direita. O Partido Republicano, certamente sua ala oficial, que não esconde a defesa de uma economia política sem direitos sociais – a posição padrão do capitalismo (pense na Inglaterra Dickensiana) – não tem nada a oferecer à classe trabalhadora. O Partido Democrata, por outro lado, desde sua cooptação do movimento operário nas décadas de 1930 e 1940 (com a ajuda crucial, aliás, da campanha do Partido Comunista dos EUA na Frente Popular), deve fingir representar os trabalhadores a fim de mantê-los sob seu domínio. Mas sua única resposta é “esperar até as próximas eleições” – uma não solução. Com as costas cada vez mais contra a parede, os trabalhadores prestes a ser despejados de suas casas não podem esperar até a próxima eleição. Nem os que estão desempregados ou, se empregados, podem esperar para trabalhar em um ambiente seguro na era da Covid-19 – apenas para citar os problemas mais óbvios que o crescente número de trabalhadores enfrenta.

Para a incessante pergunta liberal, “por que os republicanos se comportam assim?” A resposta é clara: “Porque eles podem se safar”; realmente não é mais complicado do que isso.[23] Contanto que o movimento trabalhista seja docilmente encerrado dentro do Partido Democrata, os republicanos não percebem nenhuma ameaça ao capitalismo e, portanto, não são obrigados a agir de forma diferente.

Embora ninguém possa dizer exatamente até quando a capacidade da burocracia operária irá refrear a classe trabalhadora, em colaboração com o Partido Democrata, nas condições atuais, isto não poderá durar indefinidamente. Daí a importância de trazer solidariedade a quaisquer lutas para defender ou formar um sindicato. Avanços, a história ensina, podem ocorrer com vitórias em lutas bem divulgadas, como a atual campanha de organização no centro de atendimento da Amazon em Bessemer, Alabama, ou em locais menos conhecidos, seja uma refinaria de petróleo em St. Paul Park, Minnesota ou num mercado de produtos agrícolas no Bronx.

Ambas as alas da classe dominante, conservadores e liberais, preferem espremer a classe trabalhadora sob condições democráticas burguesas em vez de sob um regime autoritário abertamente repressivo. É a maneira ideal de fazer isso porque dá aos trabalhadores esperança, especialmente em um ambiente como os Estados Unidos, onde a política burguesa reinou por tanto tempo, de que eles possam obter alívio por meio das arenas eleitoral e parlamentar. Em outras palavras, eles não terão – pelo menos esta é a esperança dos capitalistas e de seus porta-vozes – que recorrer a ações extraparlamentares e impor sua vontade com os pés como fizeram os súditos colonizados em Porto Rico (ora, ao contrário da multidão de 6 de janeiro, os quatro nacionalistas que realizaram um tiroteio dentro da Câmara dos Representantes em 1954 se tornaram heróis e heroínas na ilha).[24] Ou, o que os afro-americanos como eu, que não podiam votar, tiveram que fazer para superar. Foi sobre isso que o editorial do Wall Street Journal de 30 de dezembro advertiu os republicanos do Congresso. Anular a vitória de Biden seria brincar com fogo. “Tumultos”, novamente, “seria o menos importante”.

A arena eleitoral e parlamentar oferecem vantagens embutidas para a burguesia. Lá fora, com um terreno mais nivelado, é onde a classe trabalhadora tem mais chances de vencer, como a história tantas vezes revelou. É por isso que, ao contrário do que Stacey Abrams quer que acreditemos, os quatro policiais que assassinaram George Floyd foram indiciados. Dezenas de milhares de nós em Minnesota, a maioria dos quais tinha pele branca – tanto, então, para a era Trump / tese triunfante da supremacia branca [25] – não esperamos pelas eleições de novembro; fomos imediatamente para as ruas.

Mas, se no processo da tentativa do capital de restaurar lucros, um número suficiente de trabalhadores começa a perceber que não pode esperar até as próximas eleições e, depois de muitos desvarios, falsas promessas e desejos de esperança eles tentam impor sua vontade com os pés, ou seja, exercitar seu poder, o capital então irá considerar a verdadeira “opção nuclear”, a carta fascista. É hora de soltar os cachorros.

É isso que ensina o exemplo de Tocqueville. No caso dele, começou com a defesa de uma repressão às liberdades civis e ao espaço político em nome da lei e da ordem depois de uma verdadeira insurreição – a revolta em massa dos trabalhadores parisienses em junho de 1848 para protestar contra o fim do primeiro programa de desemprego sob o capitalismo. O contexto foi a primeira depressão capitalista transnacional. O proletariado desempregado não podia esperar até a próxima eleição. Eles já haviam feito a eleição em abril – a primeira vez para o sufrágio universal masculino – mas votar não salvou seus empregos e, consequentemente, nem eles nem suas famílias da fome. Como Marx explicou, “os trabalhadores não tiveram escolha; era morrer de fome ou se revoltar… O proletariado parisiense foi forçado à insurreição de junho pela burguesia”. [26]

Tocqueville, o que seus admiradores modernos convenientemente ignoram, ajudou a liderar a repressão sangrenta do levante. Essa derrota foi seguida por crescentes infrações pela Assembleia Nacional dominada pela burguesia sobre o sufrágio universal masculino – os passos lentos, mas constantes, que encorajaram o golpe de Estado de Bonaparte e o fim da Segunda República. Se os republicanos de hoje são conhecidos por querer minar os direitos de voto dos trabalhadores de peles preta e marrom, os democratas efetivamente fazem o mesmo com os trabalhadores de pele branca, especificamente os “deploráveis” rurais de Trump, com seus novos apelos para acabar com o colégio eleitoral. Refiro-me aqui apenas ao que motiva suas queixas sobre o colégio, não ao que é verdadeiramente problemático sobre a instituição.

Quando os trabalhadores na França perceberam que não podiam confiar na elite dominante do establishment de qualquer ala da burguesia, só então eles, especialmente o campesinato, começaram a considerar um forasteiro, alguém que era diferente – o sobrinho do salvador da Pátria. A esquerda socialista comprometeu-se por não querer apoiar o levante do proletariado parisiense; muito radical para seu gosto. A esquerda comunista era muito subdesenvolvida para ser protagonista do drama. Em retrospecto, mas apenas em retrospecto, pode-se dizer que o bonapartismo do século XIX foi o precursor do fascismo do século XX.

Se grandes batalhas de classe estão certamente à nossa frente, é incerto se haverá uma liderança para direcionar a raiva justa dos trabalhadores de uma forma que avance os interesses de toda a humanidade – o ingrediente dolorosamente ausente nas Revoluções de 1848, a Primavera Europeia; pense também na Primavera Árabe.

Ao contrário de muitas opiniões supostamente informadas, os marxistas argumentam apenas que a luta de classes é inevitável, não que seu resultado seja inevitável. Caso contrário, não haveria necessidade de O Manifesto Comunista – escrito para dar à classe trabalhadora uma chance melhor do que até mesmo de vencer. Uma leitura honesta do documento deixa isso claro. Unvermeidlich no original, “inevitável”, aparece apenas uma vez, a última palavra na Parte I. Imediatamente após na Parte II, “Proletários e comunistas”, estão às instruções para “o que deve ser feito”. [27]

Lênin foi ainda mais claro. Se a classe trabalhadora – argumentou ele em 1901 – não tivesse um partido antes que “a merda acontecesse”, seria “tarde demais para formar a organização em tempos de explosão”. [28] Esse insight fatídico explica muito por que os bolcheviques foram capazes, ao contrário de qualquer outra corrente – incluindo, sem nunca ser esquecido, os liberais irresponsáveis ​​da Rússia – de liderar os trabalhadores e camponeses na Rússia ao poder em 1917. Não apenas para assumir o poder, mas para consolidá-lo e defendê-lo – tudo feito no meio da mortal pandemia de influenza mundial de 1918-1919.

O trabalho preparatório bolchevique, no qual o “parlamentarismo revolucionário” era “indispensável” (como Lênin, novamente, confirmou após a revolução de outubro-novembro), tragicamente nunca aconteceu na Alemanha. É por isso que seu exemplo não pôde ser imitado um ano depois neste país. Quando operários alemães fardados, isto é, soldados e marinheiros, subiram às barricadas para acabar com a carnificina da “Grande Guerra”, eles descobriram que lhes faltava o que seus congêneres na Rússia tinham, uma direção revolucionária. Esta falta de ingrediente tão essencial facilitou, indiscutivelmente, os assassinatos de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, os dois principais revolucionários, pelo governo socialdemocrata, agora no poder – a lógica do parlamentarismo reformista.

As consequências do fracasso da classe trabalhadora alemã em assumir o poder após três tentativas fracassadas continuam a ressoar. Isto pavimentou o caminho para a traição contrarrevolucionária de Stalin ao projeto bolchevique. O fascismo também foi criado nas cinzas dessas desmoralizantes oportunidades perdidas. Os lutadores conscientes da classe trabalhadora hoje, junto com seus aliados progressistas, têm a obrigação elementar de absorver essas lições, ganhas com sangue. Não fazer isso corre o risco de uma catástrofe semelhante e, portanto, real, desta vez, em um mundo com elites governantes detentoras de armas nucleares.

O teste para qualquer partido ou tendência que alega oferecer uma alternativa aos negócios capitalistas como de costume é sua perspectiva de construção partidária da classe trabalhadora independente e seu histórico na realização dessa visão. Exigir menos do que isso é ser politicamente negligente.

Que seja 6 de janeiro de 2021, portanto, sem alarme, uma chamada de atenção.

*August H. Nimtz Jr. é professor de ciência política na University of Minnesota (EUA). Autor, entre outros livros de The Ballot, the Streets – or Both: From Marx and Engels to Lenin and the October Revolution (Haymarket Books).

Tradução e revisão técnica: Mario Soares Neto e Graciano D. S. Soares.

Publicado originalmente em Legal Form.

Notas


[1] PBS News Hour, 4 Fevereiro de 2021.

[2] NIMTZ JR., August H. “The Graveyard of Progressive Social Movements: The Black Hole of the Democratic Party”. Montlhy Review Online, 9 de maio de 2017. Disponível em: https://mronline.org/2017/05/09/the-graveyard-of-progressive-social-movements. Acesso em 25.02.21.

[3] Sobre a crise de lucratividade de longo prazo do capitalismo e suas consequências, ver: ROBERTS, Michael. The Long Depression – How it happened, why it happened, and what happens next. Chicago: Haymarket Books, 2016), especialmente o capítulo 4.

[4] Ver: DUGAN, Andrew. “Hillary Clinton’s Favorable Ratings Are Still Low”. GALLUP, 28 de Setembro de 2018. Disponível em: https://news.gallup.com/poll/243242/snapshot-hillary-clinton-favorable-rating-low.aspx. Acesso em 25.02.21. Ver também: Projeto FiveThirtyEight, “How Popular Is Donald Trump?”. Disponível em: https://projects.fivethirtyeight.com/trump-approval-ratings/. Acesso em 25.02.21.

[5] DOBBS, Farrel. Revolutionary Continuity: The Early Years, 1848—1917. New York: Monad Press, 1980, p. 13.

[6] Fiquei sabendo em primeira mão sobre esse desenvolvimento seis meses antes da eleição de 2016. Ver: NIMTZ JR., August H. “A Black Socialist in Trump Country”. Star Tribune, 29 de julho de 2016. Disponível em: https://www.startribune.com/a-black-socialist-in-trump-country/388716201. Acesso em 25.02.21.

[7] ABRAMS, Stacey. “I Know Voting Feels Inadequate Right Now”, New York Times, 4 de junho de 2020. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/06/04/opinion/stacey-abrams-voting-floyd-protests.html. Acesso em 25.02.21.

[8] LÊNIN, V. I. “The Constituent Assembly Elections and the Dictatorship of the Proletariat” [1919]. IN: LÊNIN: Collected Works [LCW], vol. 30. Moscow: Progress Publishers, 1974, pp. 253-266.

[9] Maiores detalhes ver: NIMTZ JR., August H. The Ballot, the Streets – or Both? From Marx and Engels to Lenin and the October Revolution. Chicago: Haymarket Books, 2019.

[10] Suspeito, com base em evidências anedóticas, que os porto-riquenhos de minha geração não ficaram chocados com o que aconteceu em 6 de janeiro; provavelmente houve alguma diversão. Em 1954, em 1º de março, quatro nacionalistas da ilha realizaram um ataque com arma de fogo na Câmara dos Representantes, não pretendendo atirar em ninguém, mas apenas chamar a atenção para a causa da autodeterminação porto-riquenha. Em minha casa afro-americana, em Jim Crow New Orleans, nenhuma lágrima foi derramada; na verdade, risos. Meus pais, ativistas políticos, divertiram-se com o fato de que alguns dos “bons e velhos rapazes”, nossos nêmeses, tiveram que se esforçar para tentar se encaixar sob suas carteiras.

[11] NIMTZ JR., August H. Justiça por Georg Floyd: reação foi gigantesca e multirracial. Tradução: Mario Soares Neto. Jornal Brasil de Fato, 31 de maio de 2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/05/31/artigo-foi-muito-importante-que-a-reacao-tenha-sido-gigantesca-e-multirracial. Acesso em 25.02.21.

[12] NIMTZ JR., August H. Por que não há George Floyds em Cuba? Tradução: Mario Soares Neto e Graciano D. S. Soares. Jornal Brasil de Fato, 20 de junho de 2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/06/20/artigo-por-que-nao-ha-george-floyds-em-cuba. Acesso em 25.02.21.

[13] NIMTZ JR., August H. “The Discomforting Lessons of Nicollet Mall”. MinnPost,14 de Setembro de 2020. Disponível em: https://www.minnpost.com/community-voices/2020/09/the-discomforting-lessons-of-nicollet-mall. Acesso em 25.02.21.

[14]A questão está sendo enfrentada na Alemanha no momento. Ver: SCHULTHEIS, Emily. “A Alemanha está tratando um grande partido como uma ameaça à sua democracia”. New York Times, 19 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/02/19/opinion/afd-germany-ban.html. Acesso em: 25.02.21

[15] NIMTZ JR., August H. The Ballot, the Streets – or Both? p. 411.

[16] NIMTZ JR., August H. “Graveyard”.

[17] NIMTZ JR., August H. The Ballot, the Streets – or Both? p. 409.

[18] A Parte III do Manifesto Comunista, “Literatura Socialista e Comunista”, ainda tem validade, especificamente, a distinção que faz entre “Socialismo Burguês” e “Comunismo”. Ver: MARX, Karl; ENGELS, Frederick. “Manifesto of the Communist Party” [1848]. IN: Karl Marx e Frederick Engels, Collected Works, vol. 6. Moscou: Progress Publishers, 1976, pp. 477-517. O primeiro exemplifica melhor a política de Sanders.

[19] NIMTZ JR., August H. “What Is Unmistakable About Trump: His Naked Capitalism”. MinnPost, 6 de Setembro de 2019. Disponível em: https://www.minnpost.com/community-voices/2019/09/what-is-unmistakable-about-trump-his-naked-capitalism. Acesso em: 25.02.21.

[20] Como foi o caso em 1933, no auge da Grande Depressão. Em seu primeiro discurso de posse, Franklin Delano Roosevelt levantou a possibilidade de que para resolver a crise seria necessário pedir ao Congresso “amplo poder executivo para travar uma guerra contra a emergência, tão grande quanto o poder que me seria dado se fosse de fato invadido por um inimigo estrangeiro”. Ver: Primeiro Discurso Inaugural de Franklin D. Roosevelt (4 de março de 1933). A proposta não gerou nenhuma oposição significativa da classe dominante. O protesto da Marcha de Bônus de 1932 no Capitólio pesou muito no cérebro de FDR e na classe dominante.

[21] Conselho Editorial, “Trump’s Embarrassing Electoral College Hustle”, The Wall Street Journal, 30 de dezembro de 2020. Disponível em: https://www.wsj.com/articles/trumps-embarrassing-electoral-college-hustle-11609371708. Acesso em:25.02.21.

[22] Trazer Tocqueville para o cenário enriquece e confirma o relato de Marx, especificamente, o papel da ala liberal da burguesia, à qual ele pertencia, no convite ao golpe de Bonaparte. Marx não poderia ter sabido do relato de Tocqueville porque, por um bom motivo – seu caráter confessional – foi publicado muito depois de ambos terem morrido. Para obter detalhes, consultar: NIMTZ JR., August H. Marxism versus Liberalism: Comparative Real-Time Political Analysis. Houndmills: Palgrave Macmillan, 2019. O que falta no uso de Zeynep Tüfekçi do O Dezoito Brumário de Marx na tentativa de explicar o comportamento pós-eleitoral de Trump é qualquer discussão sobre o papel dúbio de liberais como Tocqueville na ascensão de Bonaparte. Ver: TUFEKCI, Zeynep. “This Must Be Your First”. Atlantic, 7 de dezembro de 2020. Disponível em: https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2020/12/trumps-farcical-inept-and-deadly-serious-coup-attempt/617309. Acesso em: 25.02.21.

[23] NIMTZ JR., August H. “Why Do Republicans Behave the Way They Do?”. MinnPost. 26 de Janeiro de 2018. Disponível em: https://www.minnpost.com/community-voices/2018/01/why-do-republicans-behave-way-they-do. Acesso em: 25.02.21.

[24] Ver nota 11 acima.

[25] Ver minha crítica: NIMTZ JR., August H. “The Meritocratic Myopia of Ta-Nehisi Coates”. Monthly Review Online, 17 de novembro de 2017. Disponível em: https://mronline.org/2017/11/17/the-meritocratic-myopia-of-ta-nehisi-coates. Acesso em: 25.02.21. Aqueles que subscreveram a tese tiveram dificuldade em acreditar no que seus “olhos mentirosos” estavam dizendo sobre a composição racial dos protestos.

[26] NIMTZ JR., August H. Marxism versus Liberalism, p. 45.

[27] MARX; ENGELS. “Manifesto of the Communist Party”, pp. 496-97.

[28] LÊNIN, V. I. “Where to Begin?” [1901]. IN: LCW, vol. 5, pp. 13-18.

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