Ciências sociais, política e crise do presente

Annika Elisabeth von Hausswolff, O Fotógrafo, 2015
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Por BRUNO KARSENTI*

Considerações sobre a crise atual das ciências sociais

Ciências sociais em perigo ? Nós somos muito interrogados sobre o tom alarmista, defensivo, desta questão. Ela não nos agrada, porém nos parece inevitável. O ponto de interrogação, como acontece frequentemente, fez um papel de modulação, sinal que não queríamos confundir tudo num simples grito de alerta. É que, quanto a estes perigos em si, um esclarecimento se impôs logo de início. Para isto, a única tarefa, tão indispensável seja ela, de enumeração e de denúncia, não é suficiente. Interessa identificar o que estes perigos têm de específico, de plural, de irredutível e, sobretudo, de novo na situação atual.

Esta situação é tanto contextual, ligada às condições sociais e políticas nas quais o trabalho em ciências sociais se produz hoje pelo mundo, quanto estrutural, ligada ao que as ciências sociais tornaram-se e à sua lógica interna, ao modo como elas constroem hoje seus conhecimentos. O ponto incontestável, é que a percepção dos perigos está viva em nossos grupos profissionais, e que ela se manifesta em várias frentes, internas e externas ao campo científico. O que é igualmente claro para a maior parte dos atores, é o que estes perigos têm em comum : eles se configuram no interior da relação, jamais completamente pacificada e inevitavelmente problemática, entre conhecimento e política, prática científica e prática política.

Sublinhemos uma coisa : falamos aqui especificamente das ciências sociais. Assim sendo, não desconhecemos que o caráter problemático da relação entre conhecimento e política vale para todo tipo de ciência – ficando claro que todo saber tem um poder, mesmo que seja apenas porque ele se impõe e age sobre a opinião, de modo que esse poder singular não pode deixar de entrar em tensão com os diferentes poderes instituídos, quer eles se encarnem no Estado, na administração e nos poderes públicos, quer provenham de componentes mais ou menos organizadas e influentes da sociedade civil. Que as duas forças possam regularmente confluir, articulando lógicas políticas e lógicas econômicas, poder público e interesses setoriais e privados, só complica e intensifica os constrangimentos em jogo.

Todavia, para estes tipos particulares de conhecimento que tomam os fenômenos sociais como objeto, revelando a trama passada e presente, investem ares culturais distintos sobre a base de pesquisas empíricas que se querem rigorosas e de um comparatismo que se quer controlado, podemos dizer que a tensão é mais forte. A razão se conhece facilmente: é que os poderes instituídos, no período moderno, não podem excluir de sua própria legitimação o conhecimento racional e objetivo dos processos sociais sobre os quais se exerce sua ação. É porque, por mais difícil que seja o contexto, o tipo de conhecimento que nós representamos existe, persiste, insiste um pouco por toda parte. Atacada tão duramente quanto possível, a vontade de conhecer que este tipo de saber exprime, porque está incrustrada no desenvolvimento das sociedades modernas, se impõe para além do que, aqueles que dela gostariam de se livrar, podem fazer.

Ocorre que este problema geral conhece, desde algum tempo, uma forte acentuação, é o que faz com que a palavra perigo surja espontaneamente. Na verdade, o problema foi abordado de múltiplas maneiras, suscitando diferentes tipos de reações defensivas, em torno das quais um grande número de atores de nossas comunidades profissionais se mobilizou nos últimos anos. Veremos neste colóquio vários exemplos das formas que tomaram protestos, resistências e defesas concertadas em um clima considerado cada vez mais desfavorável. Mas, passar do grito de alerta à reflexão – o que nosso trabalho, bem entendido, nos impele a fazer – é, primeiro, interrogarmos-nos em que realmente consistem os perigos percebidos, como os distinguir histórica e analiticamente.

Se sua particularidade de época se deixa descrever, isso pressupõe que, embora permanecendo atento à singularidade das situações, não se renuncie a formular um juízo do todo. Tal juízo é tanto mais necessário hoje, quando sabemos que estes conhecimentos, jamais foram tão interligados e internacionalizados, de modo que os danos causados onde quer que seja, afetam por contra-golpe o conjunto de nossas práticas. Daí a necessidade urgente que está na origem deste colóquio: colocar as bases de algo como uma consciência comum transnacional, e forjar a partir daí um diagnóstico para uso comum. Para criar este diagnóstico, sem de modo algum antecipar as conclusões das discussões, gostaria, em poucas palavras, de traçar o quadro geral pelo qual, na minha opinião, a reflexão deve se orientar, e indicar os pontos estratégicos dentre os quais devemos nos mover.

Partirei desta proposição inicial. Há, evidentemente, um significado político intrínseco à prática das ciências sociais.

“Evidentemente”? Nesta proposição, desde que aceitável, cada palavra, desde que tentemos compreendê-las verdadeiramente, perde sua evidência e suscita uma série de questões. “Escopo político intrínseco”? Um escopo é o contrário de um postulado. É uma posição conquistada através do próprio saber, num prolongamento de sua prática, e não um pressuposto ideológico de fundo. No entanto, esta posição conquistada, neste caso, é realmente política. Como tal, penetra e modifica o campo onde se enfrentam as ideologias. O engajamento neste espaço pode ser mais ou menos marcado, segundo os casos, em função dos objetos, das disciplinas, dos pesquisadores individuais – eu diria dos temperamentos. O que permite supor que, por menor que seja, jamais será nulo.

As ciências sociais são parte integrante da configuração moderna. Ora, nesta configuração, são os conflitos ideológicos que estruturam a experiência política e lhe conferem conteúdo. Além disso, é exatamente assim que nossos conhecimentos consideram as ideologias : não, de maneira reducionista, como figuras da falsa consciência e dos erros de julgamento, mas como perspectivas determinadas sobre toda a sociedade, movidas, sem dúvidas, por interesses de grupos, mas também pelos ideais expressos por estes grupos, pelos quais se engajam a partir de sua posição na discussão e na luta por leis comuns, cuja ordem não está fixada a priori, fixada pela tradição. É uma vez ultrapassado este limiar crítico, nas sociedades historicamente empenhadas na recuperação e transformação resoluta das suas próprias normas, que as ideologias emergem.

Para as ciências sociais, que nascem do mesmo movimento geral, elas são algo que deve ser decifrado. Este trabalho consiste em tomá-las em conjunto, em relação umas com as outras, em simetrizar suas respectivas posições, em determinar as relações reais em torno das quais cada uma se determina, e a fazer aparecer as normas implícitas que elas veiculam as confrontando num mesmo espaço. A partir destas considerações gerais sobre a crítica imanente às ideologias, na qual nos empenhamos sempre, em certa medida, fico com o seguinte: se o escopo político das ciências sociais tem um significado, ele reside essencialmente na clarificação do campo global que as ideologias definem, tomadas em relação aos ideais nelas conflitantes, às controvérsias que nelas se desenrolam e aos modos de justiça praticados delas decorrentes. Daí segue-se uma verdadeira tomada de posição. Ela reside em uma intervenção fundada sobre o maior grau de lucidez que um conhecimento desta natureza tornou possível.

Esta intervenção é de qual tipo? Respondamos retomando alguns conceitos fundamentais que não cessam de nos guiar, quer sejamos historiadores, antropólogos, sociólogos, juristas, economistas, ou filósofos das ciências sociais. O famoso princípio da neutralidade axiológica – ou, para tomar seu equivalente durkheimiano, a crítica às prenoções – nunca significou a despolitização do saber, mas uma forma de ultrapassar os pressupostos político-ideológicos naquilo que eles têm de parciais e situados, seu fim último sendo sua objetivação, sua inscrição num sistema de relações e de clarificação de suas perspectivas, a possibilidade de traçar uma nova linha política onde o futuro comum dos grupos presentes possa ser mais conscientemente questionado.

Karl Mannheim, discípulo heterodoxo de Weber que sem dúvida levou mais longe a análise da relação entre ciências sociais e ideologias, falava a esse respeito de um “relacionismo”. E insistia no fato que tal ponto de vista não conduz, contrariamente ao que poderíamos crer, a um relativismo paralisante da ação. É exatamente o contrário. A política intrínseca ao conhecimento que estas ciências carregam consigo é verdadeiramente uma política, forjada através do distanciamento que operaram e da completa objetivação das posições que alcançaram. Pois este circuito, onde se vinculam um desvio e um retorno à experiência política, é a única maneira verdadeiramente consistente de honrar o requisito essencial da política moderna, que é o de fundar sua justificação normativa nas expectativas de justiça que emanam do desenvolvimento social e a auto-compreensão da qual é capaz.

Descrevi em largos traços o fundo comum sobre o qual nossas práticas científicas se erigem e assumem seu significado político. Funda-se aquilo que podemos chamar, simplesmente, de uma política esclarecida. Está enraizada no Iluminismo do século XVIII, se soubermos desvendar esta corrente como alguns historiadores contemporâneos fizeram, identificando nela a primeira alavanca de um deslocamento crítico aberto à reapropriação em vários contextos sociais e políticos que nunca cessaram de se expandir, tanto dentro como fora da Europa.

Sobretudo, nossas disciplinas herdam o tipo de crítica reflexiva mais avançada e cientificamente constituída que se acentua na segunda metade do século seguinte : aquela que radicaliza e formaliza as condições epistêmicas do comparatismo, e acima de tudo refere-se às transformações efetivas das sociedades em questão, às injustiças estruturais que engendram, e às formas de regulação e solidariedade da quais são a um só tempo portadoras.

Hoje, sentimos em toda parte isto: relembrar os grandes princípios é insuficiente. Isto porque os últimos decênios do século XX e os primeiros do XXI manifestaram a crise do modelo no interior do qual se inscreviam. As causas desta crise são múltiplas, impossível analisá-las aqui. O que podemos dizer é que elas estão enraizadas no dilema cada vez mais agudo, refratado em diferentes níveis, de determinar os novos processos de integração que exigidos pelas dinâmicas em operação, em termos de individualização das relações sociais, diferenciação das esferas de atividades, intensificação e internacionalização das trocas, e da extensão das relações de interdependência entre grupos, no e para além dos Estados-nação.

A gramática e os métodos das ciências sociais que tinham progressivamente sido consolidados no período precedente, e que, de fato, correspondiam a uma época em que o modo de coesão das sociedades políticas e o tipo de integração que realizavam podia gozar de uma relativa clareza, precisaram se renovar profundamente. Este desafio cresceu nos últimos decênios. Constituiu para as ciências sociais contemporâneas um forte estímulo, e , é preciso dizer, testemunhou um renascimento notável.

Vou retomar aqui os termos escolhidos por Isabelle Thireau para apresentar nosso colóquio. Na coleta e construção dos dados, na interpretação a que os submetemos e na generalização feita, na capacidade de apreender as perspectivas morais e intencionais dos atores sociais e de os transformar numa dimensão constitutiva dos fenômenos estudados, os progressos foram consideráveis em todas as nossas disciplinas. Um “fio mais fino, mas também mais forte” foi assim tecido. Surgiram novos paradigmas e novas abordagens que permitiram completar as operações analíticas e descritivas requeridas pela configuração mais instável, tensa e mais complexa em que nos encontramos.

No entanto, ao curso desta evolução, e a despeito do desenvolvimento e enriquecimento dos métodos, o alcance político intrínseco ao conhecimento perdeu sua clareza. O trabalho, nestas condições, foi negligenciado, o que resultou em duas consequências : por um lado, um recuo positivista, onde os objetos sociais são apresentados de modo resolutamente fragmentado, e onde a extrema especialização serve frequentemente de álibi para rejeitar qualquer teorização julgada por princípio incômoda – ao passo que, por mais difícil que seja, ela é indispensável a uma consistente politização; por outro lado, o aumento do poder das orientações ideológicas suportadas e aceitas antes que objetivadas, e aos preconceitos que induzem no questionamento e na investigação – o que traduz neste caso, e contrariamente às aparências, um fenômeno de sub-politização das ciências sociais, uma vez que é por este meio que se tornam presa voluntária de uma politização que lhes é extrínseca.

As duas tendências, concebemos sem esforço, são de fato interdependentes. Combinam-se, superpõem-se, alternam-se ou conjugam-se ainda mais facilmente, em última análise, porque procedem do mesmo déficit. Mas, sobretudo, acompanham uma evolução política mais geral que levanta obstáculos inéditos, revelando-se, sob muitos aspectos, hostis à formação, manutenção e redistribuição destes complexos circuitos entre formas de conhecimento e práticas sociais que a política das ciências sociais requer para se construir.

Este plano, que podemos dizer contextual – mas o contexto não é jamais completamente exterior aos conhecimentos que se concebem eles mesmos como fatos sociais – se determina paralelamente antes. De fato, ambos são inseparáveis. Quanto mais as ciências sociais perdem seu escopo político, menos esclarecido é o debate político. Quanto menos esclarecido ele é, mais ele cresce e se enrijece em posições fechadas ao conhecimento e à compreensão dos processos de integração de novo tipo, exigidos pela diferenciação social, pelas reivindicações de direitos individuais e coletivos e pelas novas interdependências dentro e fora dos Estados-nação.

Em termos políticos, isto traduz-se pelo fato de que o liberalismo e o nacionalismo se impulsionam mutuamente, o primeiro percebendo a diferenciação social apenas como individualização de interesses e pretensões subjetivas, o segundo congelando os pertencimentos em identidades fechadas e exclusivas. É o que se constata, eles não têm mais nada de incompatível entre si. No final das contas, aí também, os dois se fundem em novas sínteses políticas, cujo traço comum é dar as costas ao impulso histórico, social e intelectual do qual as ciências sociais têm sido o vetor.

Estas oscilações e sínteses podem assumir vários perfis. Elas são a contrapartida da crise das ciências sociais. Atribuir-lhes um papel casual, enfatizar em demasia o contexto, seria obviamente falso – sobretudo seria descompromissar-se muito facilmente e evitar enfrentar as nossas próprias responsabilidades. É melhor atemo-nos a esta constatação: as duas evoluções, científica e política, estão inteiramente correlacionadas. Elas se entre-exprimem, agem continuamente uma sobre a outra, traçam uma mesma configuração global, com suas saliências, clivagens e confusões. O que implica que cada um de nós deve estar preparado para tomar nas mãos o que depende de nós, única solução para que se vislumbre uma saída ao impasse no qual chegamos.

Em toda ética, profissional ou não, convém sempre circunscrever aquilo que os estóicos chamavam “coisas que dependem de nós”. Para os cientistas sociais hoje, é exatamente disto que se trata. Sem dúvida a tarefa não é a mesma e o tipo de esforço varia segundo a gravidade das situações, a intensidade das pressões, dos constrangimentos, até mesmo das coerções que pesam sobre aqueles e aquelas que decidiram fazer das ciências sociais sua profissão. É fato que, da evolução política anteriormente mencionada, emergiram ao curso dos últimos decênios políticas nacionalistas autoritárias, por vezes francamente ditatoriais, onde as ameaças foram levadas a cabo.

Elas provocaram o exílio de muitos pesquisadores e pesquisadoras, em razão das tragédias que se seguiram. O que, frequentemente, fez surgir estratégias de escrita, de pesquisa e de ensino em condições de grande vulnerabilidade. Nestes mesmos contextos muito limitados, assistimos também, veremos, a reconfigurações significativas. Redes e práticas científicas surgiram, com apoio de tudo aquilo que, no seio destas mesmas sociedades, continua a exprimir a necessidade das ciências sociais, sinal de contra-tendências que uma atenção exclusivamente direcionada ao funcionamento repressivo dos regimes ameaça negligenciar.

Nas democracias liberais – onde as correntes nacionalistas entraram, é preciso insistir, em uma fase de progresso cada vez mais tangível – a situação é muito diferente. Os perigos não assumem a caraterística de repressão. Eles emanam de várias fontes, tomam antes a forma da crítica afiada, da ignorância deliberada ou não, da denegação da cientificidade ou da acusação de corrupção intelectual; muitos deste discursos, chancelados ou não oficialmente, podem se traduzir em rebaixamento, descrédito, empobrecimento e perda de recursos. A função emancipatória e integradora das ciências sociais, aquilo que chamamos de seu significado político intrínseco, encontra-se no centro das atenções.

Ora, aí também – e talvez seja necessário acrescentar, aí sobretudo, quando as ciências sociais continuam a ser livres no sentido que a coerção e o controle não as ameaçam – coloca-se a questão de agir sobre aquilo que realmente depende de nós. É então que sentimos o imperativo de explicitar, para nós mesmos e para nossos interlocutores, em que consiste este significado político e qual é seu valor.

Nós optamos por dar ao colóquio uma questão, que concebemos como um tipo de viático apropriado a cada intervenção: “em que condições as ciências sociais, tais como eu as pratico, têm o efeito emancipador que deveriam ter?”. A questão aponta para um dever ser, e se coloca no nível das condições de possibilidade. Reforçando o que acabo de dizer, podemos traduzir da seguinte maneira : “como posso formular, a partir de algumas situações de minha experiência profissional e refletindo sobre a prática atual de meu ofício, o significado político intrínseco das ciências sociais?”.

As duas questões completam-se mutuamente. Em efeito, é com a ajuda deste operador, a legítima expectativa de emancipação individual e coletiva que atravessa as sociedades modernas e as orienta historicamente, que os perigos que hoje espreitam as ciências sociais podem ser discriminados e descritos. Eu só posso notá-los, ao longo de minha experiência, de forma rapsódica, mas eu gostaria, para terminar, de ordená-los em um tipo de diagrama – o que me conduzirá a dizer uma palavra sobre os eventos recentes que atingiram a EHESS no seu coração, isto é, concretamente, no campus onde nos encontramos.

Em primeiro lugar, existem os perigos provocados pela emancipação das ciências sociais, que as fazem ser vistas como ameaça direta à ordem social e política, o que coloca seus conhecimentos em uma posição de alvo predileto. Estes perigos variam em intensidade e natureza segundo os regimes políticos, e segundo as forças que se lhes opõem no seio das sociedades concernidas.

Em seguida, existem os perigos que nascem da função emancipatória contestada, da ignorância de seu significado ou da hostilidade que suscita, que podem vir de poderes externos (interessados nesta reconsideração por razões políticas variáveis, nas democracias liberais como em qualquer regime), mas também pelo desconhecimento ou perda de pontos de referência internos ao campo científico, por meio de práticas científicas defasadas em relação às exigências da política intrínseca acima mencionada (em relação a isso, os perigos parecem mais acentuados nas democracias liberais, marca dos desenvolvimentos políticos e intelectuais que aí se realizam ).

E enfim, existem perigos de outro tipo, mais inquietantes, talvez. Eles nascem daquilo que poderíamos chamar expectativas frustradas, isto é, do sentimento de que a promessa de emancipação individual e coletiva carregada pelas ciências sociais foi de fato traída, que sua honra não corresponde às suas pretensões. De modo que estes conhecimentos eles mesmos passam subitamente para o lado do inimigo. Eles são estigmatizados por posições que se percebem e se afirmam como mais capazes de agir rumo à emancipação. Mais ainda: eles são denunciados como o engodo que é preciso prioritariamente ultrapassar para se enveredar por outro caminho – onde, para além disso, nada pode, nem quer ser dito, a revolta em si é suficiente e, muito frequentemente, há mesmo uma glorificação de seu mutismo.

Nas democracias liberais, estes não são, de forma alguma, os perigos menores, longe disso. Suspeitamos que não sejam alheios àqueles que elenquei na segunda categoria, que são mais específicos a estes contextos democráticos que àqueles que não o são. Ora, notaremos que é deles que provém o que corresponde simplesmente, aqui mesmo, à violência expressa verbalmente e traduzida em atos. Entre as pixações feitas para marcar o ataque sistemático do prédio da EHESS há alguns meses, trabalho de ocupantes, dentre os quais se encontravam alguns estudantes de ciências sociais (da instituição ou de outros lugares, pouco importa), lemos inscrições do tipo : “Morte à sociologia”; “Antropologia disciplina colonial”.

Vou saltar as ameaças de morte ad hominem. Vou também passar sobre os livros e instrumentos de trabalho destruídos. Sobre as paredes, se lia ainda : “Morte à democracia”, como que para traçar o espaço mais abrangente do ódio endereçado a estes conhecimentos como tais, pois é verdade que o seu desenvolvimento foi e continua a ser permitido por este tipo singular de regime político, a democracia, e sobretudo pelo tipo de existência social e histórica que lhe corresponde.

Qualquer erupção crítica é significativa, mesmo que ela apenas rejeite o discurso. Quanto ao nosso discurso, ele tem menos a justificar-se perante ele do que a consolidar-se, a esclarecer-se no seu alcance presumido. Isto implica retomá-lo como um vetor de reflexividade e de melhor recolocá-lo na situação política ampla, da qual as formas enganosas da crítica, como as convicções conservadoras e as denegações liberais, são os polos agora dominantes. Em síntese, nesta triangulação que nos encerra, nosso lugar deve ser reconstruído pela comunidade que representamos, incluindo professores e estudantes.

Pelo fato de que o último perigo que acabo de mencionar nos concerne uns aos outros, nós que cumprimos muito frequentemente missões de ensino tanto quanto de pesquisa, duas tarefas cujo vínculo orgânico não deve ter nenhuma necessidade de ser demonstrado. Ele esteve no percurso de preparação deste colóquio e lhe deu, de fato, uma tonalidade muito particular. Digamos que ele tornou mais urgente sua forma, porque indicou de modo imperativo a necessidade de redefinir, para um público mais amplo – que compreende a jovem geração que nos comprometemos formar, munida de questões e de expectativas -, o significado daquilo que efetivamente fazemos, e a política científica que nos move quando à ela consagramos nossas forças.

*Bruno Karsenti é diretor de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Autor, entre outros livros, de Politique de l’esprit: Auguste Comte et la naissance de la science sociale (Hermann).

Artigo redigido a partir da palesttra no colóquio “Ciências sociais em perigo? Práticas e saberes de emancipação” organizado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, nos dias 23 e 24 de junho de 2022.

Trad. Mariana Barreto.

Publicado originalmente no site Politika.


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