Por WILTON CARDOSO*
não há mais operários funcionários trabalhadores
apenas capital humano
os noias e ambulantes perambulam
entre os carros nos sinais fechados
empreendendo migalhas
e trocados
só há os perdedores
e os escolhidos de deus
um menino e sua mãe fuçam o lixo
nos containers do edifício
a xepa da feira e seus legumes quase podres
é o novo nicho de mercado
onde os empreendedores do trapo competem entre si
e com as moscas
os catadores puxam carruagens de sucata
burros de carga humanos ratos
recolhendo os restos
da civilização pós-moderna
nos meses secos os rios transpiram um odor de fezes
podres
os carros arrotam carbono e arrancam
para o sem fim das cidades
a urbe e seus milagres:
a transmutação do suor
dos colaboradores e empreendedores
na doce embriaguez das mercadorias
a multiplicação do pão monetário
para saciar a fome do deus
insaciável
mamon
moendo sonhos e corpos
nos algoritmos da produtividade
sempre alerta
gritam os escoteiros do mercado
só há capitais humanos
e o constante aprendizado
os homens bons frequentam reuniões importantes
de terno e gravata no calor tropical
sacrificam suas vidas pelo destino do povo
e relaxam depois em puteiros de luxo
enquanto as noias ocupam o nicho
das chupetas baratas
para os fazedores de bico
há espaço para todos
no laissez-faire da cidade
as madames contratam decoradoras
e domésticas para um lar clean
& cool
saem do ar
condicionado de casa para o do carro
e para o ar dos shoppings e academias de ginástica
e clínicas de plástica
assistem da janela de seus SUVs
os novos empreendedores descansando nos colchões
podres
de sua calçada-lar
clean & cool
deus é amor
e temor
grita o pastor da santa prosperidade
só há os escolhidos de Jesus
e os que não fizeram jus
lá fora a cidade
desaba de cansaço
e rancor
*Wilton Cardoso é poeta e ensaísta. Editor do blog literário, O engenheiro onírico.