Por MARIA RITA KEHL*
A psicanálise do ressentimento como sintoma social
A atualidade do tema do ressentimento é, antes de mais nada, clínica. Essa paixão triste comparece com frequência em nossos consultórios, alimentada por acusações contra alguém ou contra o mundo todo. “Eu sofro: alguém deve ser culpado por isso”: assim Nietzsche resume a lógica do ressentido e seu apego ao dano. O ressentimento é uma constelação afetiva que serve aos conflitos característicos do homem contemporâneo, entre as exigências e as configurações imaginárias próprias do individualismo, e os mecanismos de defesa do “eu” a serviço do narcisismo. A lógica do ressentimento privilegia o “indivíduo” em detrimento do sujeito, e contribui para sustentar nele uma integridade narcísica que independe do sucesso de seus empreendimentos. Adianto a hipótese de que a versão imaginária da falta, no ressentimento, é interpretada como prejuízo.
Ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer. Um outro a quem delegamos, em um momento anterior, o poder de decidir por nós, de modo a poder culpá-lo do que venha a fracassar. Neste aspecto, o ressentido pode ser tomado como o paradigma do neurótico, com sua servidão inconsciente e sua impossibilidade de implicar-se como sujeito do desejo. Mas esta é uma definição genérica demais para nos permitir focar nosso objeto.
O ressentimento não é uma estrutura clínica, e tampouco se confunde rigorosamente com um sintoma, embora se possa considerá-lo como uma solução de compromisso entre dois campos psíquicos, o do narcisismo e o do Outro. Ressentimento não é um conceito da psicanálise; é uma categoria do senso comum que nomeia a impossibilidade de se esquecer ou superar um agravo. Impossibilidade ou recusa? Na língua portuguesa, o prefixo “re” indica o retorno da mágoa, a insistência em uma queixa, a conservação ativa de uma ofensa. A partícula “re” também se apresenta em outros idiomas. Ressentiment, resentfulness, resentimiento, respectivamente em francês, inglês e espanhol. Trata-se de uma repetição mantida ativamente por aquele que foi ofendido. O ressentido não é alguém incapaz de se esquecer ou de perdoar; é um que não quer se esquecer, ou que “quer não se esquecer”, não perdoar, nem superar o mal que o vitimou.
O filósofo Max Scheler, que discute as teorias de Nietzsche a partir de uma ótica cristã, considera como “auto-envenenamento psicológico” o estado emocional do ressentido, um introspectivo ocupado com ruminações acusadoras e fantasias vingativas. Trata-se de uma disposição psicológica relativamente estável que, por um recalcamento sistemático, libera certas emoções e certos sentimentos, por si só normais e inerentes aos fundamentos da natureza humana, e tende a provocar uma deformação mais ou menos permanente tanto do sentido dos valores quanto da faculdade de julgamento [1].
Para Scheler, a constelação afetiva do ressentimento compõe-se da soma de rancor, desejo de vingança, raiva, maldade, ciúmes, inveja, malícia. Uma conjunção maligna, portanto, na qual o desejo de vingança exerce um papel predominante; a palavra ressentimento indica que se trata de uma reação – mas se esta reação tivesse sido posta em ato no momento do agravo, ainda que fosse um ato de palavra, o sentimento de injúria ou agravo teria sido aplacado.
O conceito de repressão indica que um impulso foi impedido de se efetivar. O que ocorre no ressentimento é que o ofendido não se atreve, ou não se permite, responder à altura da ofensa recebida. O “envenenamento psicológico” a que se refere o autor produz-se a partir da reorientação para o “eu” dos impulsos agressivos impedidos de descarga, gerando uma disposição passiva para a queixa e a acusação, assim como a impossibilidade de esquecer o agravo passado.
Mas observemos que, no caso em questão, esse desejo não se confunde absolutamente com uma tendência à resposta ou à defesa, acompanhada de cólera, de raiva ou de indignação”[2].
A raiva, a cólera, a indignação, impedidas de se exercer na direção do objeto, transformam-se em raiva e indignação contra si mesmo; a má consciência, como veremos em Nietzsche, é a contrapartida necessária do ressentimento. A culpa que o ressentido insiste em atribuir ao outro, responsável pelo agravo, é a face manifesta do “sentimento inconsciente de culpa”[3] que o “envenenamento psíquico” – o retorno das pulsões agressivas sobre o eu – produz. O ressentido é um vingativo que não se reconhece como tal.
Há uma diferença entre o desejo de vingança e o impulso de responder a um ataque, indignar-se contra ele ou defender-se. A vingança é uma necessidade psíquica que só faz sentido nos casos em que a vítima não foi capaz de reagir. Nesse ponto, Max Scheler vale-se de uma metáfora de ressonâncias nietzscheanas: a fera capturada que morde o caçador não está tentando se vingar: está tentando livrar-se do cativeiro. A vingança decorre da falta de resposta imediata ao agravo. É “um prato que se come frio”, diz o povo; a vingança deve ocorrer depois de um tempo durante o qual o contra ataque da vítima fica como que em suspenso, adiado mas nunca renunciado, alimentado pela raiva, ou pela impossibilidade do esquecimento de uma raiva passada.
Mas no ressentimento, o tempo da vingança nunca chega. Muito menos o da justiça. O ressentido é tão incapaz de vingar-se quanto foi impotente em reagir imediatamente aos agravos e às injustiças sofridos. Voltando à constelação “maligna” enumerada acima, nenhum daqueles afetos por si só é suficiente para produzir ressentimento. O rancor que deságua em agressão, a indignação que se expressa em uma catadupa de acusações, a inveja que mobiliza o invejoso para a conquista do objeto cobiçado, não precisam perpetuar-se na forma de ressentimento. Para que ele se instale, é preciso que a vítima não se sinta à altura de responder ao agressor; que sinta-se fraca, ou inferior a ele. Ou então, na via oposta, queira ostentar uma superioridade moral. É por isso que Nietzsche o considera como qualidade dos “escravos”. Para Max Scheler, o terreno onde ele se origina, só dele, faz do ressentimento a característica dos serviçais, dos comandados, dos que se debatem em vão sob o aguilhão da autoridade.
Uma das condições centrais do ressentimento é que o sujeito estabeleça uma relação de dependência infantil com um outro, supostamente poderoso, a quem caberia protegê-lo, premiar seus esforços, reconhecer seu valor. O ressentimento também expressa a recusa do sujeito em sair da dependência: ele prefere ser “protegido” ainda que prejudicado, do que livre, mas desamparado. Com isso quero antecipar aqui que, no ressentimento, o Outro é representado pelas figuras que, na infância, tinham poder efetivo para proteger, premiar e punir a criança. É a face imaginária do Outro, à qual se endereçam demandas de amor e reconhecimento, que determinam que o ressentido se represente não como faltante, mas como prejudicado.
O ressentimento como sintoma social
Percebe-se aqui a importância política do tema; embora eu priorize abordar o ressentimento predominantemente do ponto de vista dos arranjos e negociações subjetivos, que é o ponto de vista da psicanálise, é possível perguntar se o ressentimento não seria o efeito mais provável produzido em certas condições de opressão nas quais que só resta ao sujeito “debater-se em vão sob o aguilhão da autoridade”. Como colocar em ato o saudável impulso de reação imediata aos agravos, nos casos da impotência objetiva de quem se vê diante da força de coerção do opressor? Como reagir a uma injustiça, mesmo à força de argumentos e protestos, nos casos em que qualquer reação custaria a vida do injustiçado? Sob uma ditadura militar, sob estado de exceção, sob regimes de terror, toda reação tem que ser forçosamente adiada, até mesmo para que tenha chances de sucesso. Em que circunstâncias esse adiamento forçado, esse “recuo tático”, funciona para organizar forças e amadurecer um projeto de retomada legítima do poder, e em que condições o adiamento da reação pode transformar-se em ressentimento?
O estado de exceção, segundo o filósofo Giorgio Agamben[5], impõe a suspensão de todos os direitos: só o Estado, soberano, exerce poder de vida e morte sobre todos os homens. A vida humana que perde as condições de cidadania é qualificada por ele como “vida nua”, desprovida de direitos e de garantias. Nos casos em que nenhum direito humano, nem mesmo o direito à vida, é garantido por antecipação (nisso consiste a responsabilidade dos Estados democráticos sobre a vida dos prisioneiros sob sua custódia) como detectar a implicação dos agentes sociais em relação às suas escolhas de destino, individuais ou coletivas? Nos casos em que o Estado dispõe da vida dos cidadãos, em condições de desrespeito absoluto aos direitos humanos, faz sentido pensar que o ressentimento seja uma reação provável das vítimas?
A leitura dos relatos de Primo Levi sobre os campos de concentração faz ver ao leitor que mesmo nas condições de opressão absoluta alguns prisioneiros mantiveram diante do algoz uma posição subjetiva que não predispõe ao ressentimento. Há quem seja capaz de – obrigado pela força a beijar as botas de seu carrasco – não viver esse ato de forma humilhante. A vergonha, a abjeção, escreve Levi[6], deve ficar do lado do homem que, tendo liberdade de escolha, quis forçar seu semelhante a um ato abjeto. No limite, alguns prisioneiros “escolhem” a morte como meio de preservar sua humanidade. Morrer, ou deixar-se matar, é a afirmação extrema de insubmissão sob regimes totalitários – nessas condições seria uma leviandade incluir certos casos de suicídio sob a rubrica da melancolia.
Mas a prova de que a organização dos campos de concentração sob o nazismo tinha como objetivo produzir a desumanização dos prisioneiros é que os índices de suicídio nos lager foram muito baixos. Desprovidos de qualquer implicação subjetiva em relação ao mal e à abjeção, reduzidos à condição de “coisa”, vítimas absolutas do arbítrio do Outro, os homens deixam-se abater passivamente, sem lançar mão do último recurso que distingue o humano do animal: a capacidade de escolher a própria morte. “É isso um homem?” pergunta Lévi ao leitor no título de seu livro mais conhecido.
Um outro destino para a raiva que não pode se expressar é possível? É possível passar pela condição da escravidão sem ocupar subjetivamente a posição de escravo? Creio que sim; nesse ponto é importante ressaltar que o ressentimento não é a conseqüência necessária da condição do derrotado. Ele tem mais a ver com a rendição voluntária do que com a derrota. A reação adiada que produz o ressentimento é aquela a que a pessoa se impediu por conta própria. A “fera capturada que morde o caçador” está lutando contra o cativeiro. Os prisioneiros de guerra foram vencidos em batalha, pela superioridade bélica do inimigo.
Quando uma revolta é abafada pelo poder militar, os revoltosos se vêem obrigados a recolher suas forças e esperar por condições mais favoráveis para voltar à luta. Essa “vingança adiada” não é a mesma das elucubrações mentais a que se entrega o ressentido, psicologicamente impotente para dar outro destino à sua amargura. Mas mesmo nos casos em que a derrota é imposta à força e a reação é objetivamente impedida, é possível que o adiamento prolongado da ação ameace arrefecer a disposição à luta. Nesses casos a manutenção ativa da memória do agravo, que em um primeiro tempo é necessária para alimentar a disposição dos revoltosos, pode degenerar em predisposição ao ressentimento.
Não se pode qualificar irrefletidamente como atos vingativos as convulsões sociais que põem fim aos regimes totalitários, nem de “ressentimento” o abatimento de escravos e prisioneiros impedidos à força do exercício de sua liberdade. O ressentimento não se confunde com a revolta silenciada nem com a resignação forçada que se produz sob regimes totalitários ou em sociedades fortemente estratificadas. A “vida nua” não produz ressentimento; ela é a vida humana desprovida de condições de humanidade, limitada à reprodução da sobrevivência biológica – como na escravidão, nos campos de concentração ou em situações de extrema miséria. Não é humana a vida que decorre em função da mera satisfação de necessidades, desprovida das condições que possibilitam aos homens criar alguma forma do “novo”, escreve Hanna Arendt[7].
A “vida nua” produz uma espécie grave de abatimento e resignação, mas esse estado não configura o ressentimento. Este último é o afeto característico dos impasses gerados nas democracias liberais modernas, que acenam para os indivíduos com a promessa de uma igualdade social que não se cumpre, pelo menos nos termos em que foi simbolicamente antecipada. Os membros de uma classe ou de um segmento social inferiorizado só se ressentem de sua condição se a proposta de igualdade lhes foi antecipada simbolicamente, de modo a que a falta dela seja percebida não como condenação divina ou como predestinação – como nas sociedades pré-modernas – mas como “privação”[8]. São os casos em que a igualdade é “oficialmente reconhecida mas não obtida na prática[9]” que produzem o ressentimento na política. É preciso que exista um pressuposto simbólico de igualdade entre opressor e oprimido, entre rico e pobre, poderoso e despossuído, para que os que se sentem inferiorizados se ressintam.
Mas outra condição deve estar presente aqui: é preciso também que a igualdade da lei democrática seja interpretada como dádiva paterna dos poderosos e não como conquista popular. O ressentimento na política se produz na interface entre a lei democrática – antecipação simbólica de igualdade de direitos – e as práticas de dominação paternalistas, que predispõem a sociedade a esperar passivamente que essa igualdade lhes seja legada como prova do amor e da bondade dos agentes do poder. No Brasil, em que essas duas condições se combinam de maneira freqüentemente perversa, os movimentos sociais oscilam entre as proposições ativas de transformações sociais e as manifestações reativas, ressentidas, que expressam insatisfação popular, mas não levam a nenhum resultado efetivo no sentido do aperfeiçoamento dos dispositivos da democracia.
Não sou capaz de responder à questão sobre as condições em que uma rebelião adiada produz o ressentimento; a ação política, mesmo que atravessada pelo campo de forças do inconsciente, tem sua especificidade em relação à psicanálise. Se enumero essas questões é porque elas estão associadas ao tema do ressentimento e não podem deixar de ser pelo menos formuladas, de modo a evitar um certo reducionismo psicanalítico no trato desse tema tão atravessado pelo campo da política.
*Maria Rita Kehl é psicanalista, jornalista e escritora. Autora, entre outros livros, de Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade (Boitempo).
Notas
[1] – Max Scheler, L’homme du ressentiment (1912). Paris: Gallimard, 1958. p.14: “une disposition psychologique, d’une certaine permanence, qui, par un refoulement systématique, libère certaines émotions et certains sentiments, de soi normaux et inhérents aux fondements de la nature humaine, et tend à provoquer une déformation plus ou moins permanente du sens des valeurs, comme aussi de la faculté du jugement (tradução minha).
[2] – Max Scheler, (cit), p. 15: Mais notons bien que, dans le cas qui nous occupe, ce désir ne se confond aucunement avec une tendence à la riposte ou à la défense, même accompagné de colère, de rage ou d’indignation. (tradução minha).
[3] – A expressão é empregada por Freud em O eu e o isso (1923), para explicar a relação existente entre o sentimento de culpa e a prática de atos delinqüentes que visam o castigo, “como se o indivíduo sentisse alívio em poder relacionar este sentimento inconsciente de culpa a um ato real e atual” (p. 2274). Esse tema já tinha sido abordado por ele no texto “Os delinqüentes por sentimentos de culpa”, de 1916. Mais adiante, em O eu e o isso, Freud reafirma o caráter inconsciente de grande parte dos sentimentos de culpa em função de sua relação com a parte inconsciente do supereu, herdeiro do complexo de Édipo: “o surgimento da consciência moral está intimamente ligado ao complexo de Édipo, que permanece inconsciente”. (p. 2721)
[4] – M. Scheler, p. 19: Le terrain où il prend naissance, à lui seul, fait du ressentiment le propre des serviteurs, des commandés, de ceux qui se cabrent en vain sous l’aguillon de l’autorité.
[5] – Giorgio Agambem, Homo Sacer. Belo Horizonte: UFMG, 2002. Tradução de Henrique Burigo.
[6] – Primo Levi, É isso um homem? (1947). Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
[7] – Ver Hanna Arendt, The human condition (1958). Chicago: The University if Chicago, 1958.
[8] – O conceito de privação será mais desenvolvido no capítulo 1, “O ressentimento na psicanálise”.
[9] – M. Scheler, p. 21.