Consciência negra

Imagem: Madison Inouye
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Por JUACY DA SILVA*

A questão da desigualdade, principalmente a de raça e cor, precisa estar presente na agenda nacional em busca de uma sociedade justa, aberta e democrática

Hoje, 20 de Novembro é o Dia Nacional de Zumbi, herói quilombola, morto pelas forças de repressão do Brasil Colônia, há 328 anos. É também o Dia da Consciência Negra. Aí, surge a indagação/pergunta, qual a relação dessas duas datas com a realidade brasileira atual?

É isto que tentaremos refletir um pouco neste artigo. Antes, porém, tentaremos responder sinteticamente qual o Brasil de nossos sonhos, o Brasil que queremos, em substituição ao Brasil que temos.

Queremos e o povo deste país é mais do que merecedor, um Brasil justo, solidário, equitativo, sustentável, moderno, plenamente desenvolvido, com governos e instituições realmente transparentes e eficientes, mas para tanto precisamos lutar com “unhas e dentes”, sem cessar pelo fim da pobreza, da miséria, da fome, da degradação ambiental, do trabalho escravo ou análogo à escravidão, do subemprego, do desemprego, das desigualdades sociais, setoriais, regionais e econômicas, da violência, do racismo estrutural, dos preconceitos contra os diversos segmentos demográficos, étnicos e religiosos, dos privilégios e mutretas que beneficiam acintosamente os “marajás da República e os donos do poder”, verdadeiras familiocracias e, mais do que tudo isso, claro, pelo fim da corrupção que rouba recursos necessários a execução das políticas públicas e enriquece políticos, empresários e gestores públicos desonestos.

Há poucos dias (em 15 de Novembro) “comemoramos” 134 anos da Proclamação da República, que ocorreu por um golpe militar, apoiado pelos cafeicultores da região Sudeste e outros potentados da economia do Império, enfurecidos com a Família Real que, pelo Ato da Princesa Isabel, havia determinado a “libertação” dos escravos, negros vindos da África e seus descendentes aqui nascidos, sem indenização por parte do Estado/governo, como queriam os donos de escravos, já que tanto terras, quanto produção, animais e também pessoas (escravos) eram suas propriedades.

O Marechal Deodoro da Fonseca era, antes da proclamação da República, amigo da Família Imperial, principalmente do Imperador Dom Pedro II; mas acabou, graças a algumas fake news espalhadas a seu respeito, se bandeando para o lado dos republicanos e aceitou liderar o golpe militar que derrubou o Império. Marechal Deodoro da Fonseca disse, ao investir-se como Presidente (interino) da República “Até ontem, a nossa missão era fundar a República; hoje, o nosso supremo dever perante a Pátria e o mundo é conserva-la e enriquecê-la”.

O movimento republicano tinha duas correntes, uma dos fazendeiros escravocratas que estavam muito mais insatisfeitos com o Império do que, propriamente, imbuídos dos ideais republicanos e outra dos republicanos liberais que queriam não apenas o fim do império, mas também o fim total da escravidão e suas consequências e outros valores como liberdade, a separação da Igreja do Estado e a participação popular, ou seja, algo que se aproximava do que hoje entendemos por democracia.

Mas com o golpe militar as ideias liberais acabaram perdendo espaço e a abolição da escravidão pouco ou quase nada significou em termos de melhoria das condições de vida e de cidadania aos ex-escravos e seus descendentes e aos pobres da época, os quais, até hoje representam a parcela abandonada, excluída e discriminada da sociedade brasileira.

Esta é a realidade que ainda hoje, há 135 anos da assinatura da Lei Áurea, e 134 anos de República, é conceituada como racismo estrutural, razão pela qual o movimento negro passou a considerar o dia 20 de Novembro como seu marco histórico (e não o 13 de Maio, publicação da Lei Áurea), data em que o maior líder quilombola, na história da luta dos escravos pela liberdade, que foi Zumbi dos Palmares foi morto.

Assim, no intervalo de apenas cinco dias dois momentos importantes de nossa história são celebrados, a Proclamação da República em 15 de Novembro e o dia da consciência negra em 20 de Novembro. Entre essas duas efemérides existe outra data importante, que está ligada aos dois anteriores que é o dia mundial dos pobres, instituído em 2015 pelo Papa Francisco, como forma de reafirmar a opção preferencial que a Igreja Católica e creio que por similitude, todas as demais igrejas e religiões fazem pelos pobres.

Aí surgem mais algumas perguntas/indagações: quem são os pobres no Brasil? Existe alguma relação entre pobreza e raça? Pobreza, raça, racismo estrutural e violência em nosso país fazem parte de um mesmo mosaico social?

São três dimensões que se entrelaçam: o Império (poder estatal), o sistema escravocrata como base da economia e da política durante os períodos do Brasil Colônia (de Portugal) e Império e, a presença e posição da Igreja Católica frente à escravidão e ao movimento abolicionista.

De acordo com artigo acadêmico, fruto de pesquisas extensas, de autoria de Tulio Augusto de Paiva Pereira, intitulado “A Igreja católica e a escravidão negra no Brasil a partir do Século XVI”, a mesma condenava a escravidão de indígenas, mas aceitava a escravidão de negros vindos da África e seus descendentes aqui nascidos, ou seja, posição bem diferente da atualidade, principalmente após o Concílio Vaticano II e o surgimento da Teologia da Libertação, em que a Igreja defende os pobres, oprimidos e excluídos, como eram os escravos e afrodescendentes libertos ate o fim do Império.

Vejamos a síntese inicial do citado artigo “A participação da Igreja Católica no processo de implantação e manutenção da escravidão negra africana no Brasil, a partir do século XVI, se deu de diversas formas e, isto foi possibilitado pela instituição de uma união entre o Estado português e a Igreja, chamado de “padroado real”. Esta união, na verdade, subordinava a Igreja ao Estado português em troca da exclusividade da ação evangelizadora nas terras descobertas, visando aumentar o seu número de seguidores. Por outro lado, a Igreja e a religiosidade foram utilizadas na justificação do sistema colonial, de cunho mercantilista, voltado para a geração de riquezas para Portugal. A escravidão negra se tornou um dos pilares na estruturação da sociedade e da economia colonial. Porém, este era um sistema hediondo de exploração humana para estar ligado a uma instituição que foi criada para promover a fraternidade, a justiça e a paz entre os homens”.

Cabe ressaltar que durante os períodos colonial e imperial o catolicismo era a religião oficial e somente quando da publicação do Decreto 119-A, de 7 de Janeiro de 1890 e, constitucionalmente, com a promulgação da primeira Constituição Republicana em 1891, ocorreu a separação entre a Igreja Católica e o Estado, que, coerente com o “espírito republicano” deveria ser laico e garantir a liberdade de culto e outras garantias individuais e coletivas.

No caso dos ex-escravos e seus descendentes (hoje denominados de afrodescendentes, que incluem as pessoas pretas e pardas) desde antes do fim legal da escravidão vem lutando para garantir direitos, inclusive de reparações históricas, como atualmente acontece com os quilombolas, cujos territórios não são respeitados.

Formal ou legalmente já ocorreram inúmeras “conquistas”, todavia na grande maioria das vezes essas “conquistas” ficam apenas no papel, basta examinarmos dados estatísticos de natureza econômica, social e política para percebermos que ainda existe um grande fosso entre a população afrodescendente e a população branca, principalmente de classes média e alta, já que os brancos pobres desfrutam de condições socioeconômicas e nível de vida bem próximas ou iguais aos dos afrodescendentes.

Na caminhada em busca de garantir direitos, os afrodescendentes tem lutado em diversas frentes, inclusive em relação aos direitos políticos (votar e ser votado), bem como direitos econômicos, sociais, civis e outros mais.

Na “Série Inclusão: antes excluídos, hoje índios e negros participam ativamente do processo eleitoral”, elaborada pelo TSE em 19/04/2013, podemos conhecer um pouco desta trajetória, que é também uma conquista, à semelhança da Lei das cotas atualmente.

“Na história política do Brasil, por muito tempo, mulheres, negros, pobres e analfabetos não votavam. É impossível tratar da cidadania dos negros brasileiros e da promoção de seus direitos humanos sem que se faça uma leitura do passado. Isso porque, com relação ao voto dos negros, nunca houve proibição formal, mas velada. Quando da escravidão, os escravizados eram considerados propriedade de seu senhor, portanto, não possuíam direitos. Depois, o impedimento veio por conta da proibição do voto para os analfabetos”.

Voltando à questão do Dia da Consciência Negra, seis estados: Alagoas, Amazonas, Amapá, Rio de Janeiro, Mato Grosso e São Paulo o dia 20 de Novembro já é feriado e em outros dez estados pelo menos em um ou mais municípios também, o mesmo ocorrendo em três capitais: Goiânia, João Pessoa e Florianópolis.

O Senado Federal também já aprovou um projeto de Lei de autoria do Senador Randolfe Rodriges (PT-AP) considerando o Dia da Consciência Negra feriado Nacional, o citado projeto está na Câmara Federal e, em sendo aprovado, deverá ser encaminhado ao Presidente Lula, que, com toda a certeza deverá sancioná-lo.

Outro avanço nesta luta foi a constituição da bancada de deputados e deputadas negras na Câmara Federal, em 01 deste mês de novembro de 2023. Conforme informações da Câmara Federal nesta Legislatura existem 134 parlamentares que se autodeclaram pretos/pretas ou pardos/pardas, ou seja, afrodescendentes e 120 desses parlamentares participaram da constituição inicial da bancada dos afrodescendentes.

A existência de bancadas temáticas é um avanço na luta para conquistar direitos e espaços e, com certeza, será muito importante na luta do movimento negro unificado, principalmente na elaboração de legislação que atenda as pautas do citado movimento e de todas as pessoas afrodescendentes.

Finalizando vamos mencionar alguns dados estatísticos do IBGE, que demonstram o tamanho da desigualdade de cor e raça no Brasil, muito longe ainda de caracterizar nosso país como uma nação sob o primado da Justiça social.

Dados de artigo publicado em 20 de Julho deste ano (2023) pela Agência Brasil indicava que de acordo com o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança pública, divulgado na mesma data, em 2022 havia 442.044 pretos e pardos encarcerados no Brasil ou 68,2% do total de presos. A mesma tendência é observada em relação ao número de pessoas assassinadas, onde os afrodescedentes são a grande maioria, principalmente, quando se trata de pessoas mortas pela polícia.

Matéria veiculada no site Congresso em Foco traz dados estarrecedores “Pesquisa divulgada nesta quinta-feira (16) revela que nove em cada dez vítimas da polícia, em oito estados, têm pele negra. O número de pessoas mortas pela polícia em apenas oito estados brasileiros chegou a 4.219 em 2022. Desse total, 2.700 foram consideradas negros (pretas ou pardas) pelas autoridades policiais, ou seja, 65,7% do total. Se considerados apenas aqueles com cor/raça informada (3.171), a proporção de negros chega a 87,4%”.

No extrato populacional dos 10% mais ricos no Brasil, os brancos representam 70,6% e os afrodescendentes (pretos e pardos) apenas 27,7%; e no extrato dos 10% mais pobres a representação por cor/raça e diametralmente oposta: brancos 23,7% e os afrodescendentes 75,2%. Cabe ressaltar que os dois anos seguintes a pobreza aumentou em mais de 15 milhões de pessoas, em razão da covid e a população afrodescendente foi a mais excluída.

Em 2021, conforme dados do IBGE, 62,5 milhões de pessoas no Brasil viviam abaixo da linha de pobreza, sendo que 75% dessa população eram negros e pardos (afrodescendentes), percentual bem superior ao que os mesmos representam na população total que é de 55,8%.

No caso do acesso ao Ensino superior, jovens entre 18 e 24 anos, mesmo após a instituição das cotas raciais há dez anos, em 2022 78,8% dos brancos estavam na universidade e, em relação aos pretos e pardos eram apenas 55,6%, ainda uma grande diferença.

Entre as pessoas desempregadas, subempregadas ou desocupadas em 2022 nada menos do que 64,2% eram afrodescendentes. Em relação ao saneamento básico 42,8% da população afrodescendente não tinham acesso a este serviço em contraposição com 26,5% dos brancos pobres.

A mesma observação pode ser dita em relação à coleta de lixo, 12,5% dos afrodescedentes não tinham em comparação com a metade, 6% dos brancos pobres também não tinham.

Em relação à mobilidade ocupacional, ou seja, em cargos de gerência e de diretoria de empresas públicas ou privadas, brancos ocupavam em 2022 em torno de 85,9% desses postos e os afrodescendentes apenas 11,9%.

A mesma disparidade, porém muito mais gritante, pode ser observada no Poder Judiciário, muito mais do que nos demais poderes, principalmente nos Tribunais Superiores, onde a presença de pretos/pretas; pardos/pardas é quase inexistentes, o que tem demandado uma discussão pública e também nos altos escalões do referido poder no sentido de também no mesmo ser instituído o sistema de cotas, tanto na questão de gênero quanto no que concerne à questão de cor e raça.

A questão da desigualdade, em todas as suas dimensões, principalmente a desigualdade que tem por base raça e cor, além de outras como desigualdade de gênero e de renda precisam estar presentes na agenda nacional e em diversos outros debates que estão sendo travados atualmente em busca de uma sociedade justa, aberta e democrática. Este é o sentido e o significado do Dia da consciência negra!

*Juacy da Silva é professor titular aposentado de sociologia na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).


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