A roda gigante da violência

Imagem: David Peinado
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ MARQUES*

Como enfrentar a violência quando quase metade da população, de acordo com as pesquisas, se espelha na ultradireita

Grosso modo, a agressão se divide em dois campos: (i) por parte do Estado, que detém o monopólio da repressão policial-militar, é denominada “um ato de força” e; (ii) por parte do cidadão, que atenta contra a propriedade privada, a liberdade ou a vida é chamada de “violência”. Ambas as definições se referem à legitimidade moral e legal de uma ação.

A violência é constitutiva (acumulação primitiva) do capitalismo. “A situação miserável da classe operária não devia ser procurada em males isolados, mas no próprio sistema capitalista”, escreveu o jovem Friedrich Engels, no livro Situação da classe operária na Inglaterra, em 1845. Era a tirania do capital que iniciava sua aventura, a bordo do deixai-fazer: salários irrisórios, jornadas de trabalho extenuantes de 16 horas, exploração de mulheres e crianças.

No nazifascismo, a violência vincula uma política de identidade ao sentimento de pertencimento a um grupo, sejam os Sturmabteilung nazis, os camicie nere da Itália fascista, os camisas azules da Falange Espanhola, os camisas verdes do Integralismo brasileiro ou os camisas amarelas do cruento bolsonarismo. Hostilidades aos artistas, jornalistas e professores tornaram-se corriqueiras a partir do impeachment (2016) que instalou o neoliberalismo duro no país. Vide as reformas previdenciária e trabalhista, o teto de gastos públicos, a lei das terceirizações, a internacionalização do preço dos combustíveis, o fatiamento da Petrobras, a autonomização do Banco Central no controle da política monetária, o recrudescimento do processo de desindustrialização.

À época, se alguém por inadvertência passasse perto de uma manifestação da extrema direita corria o risco de linchamento. A estudante universitária que num domingo de sol pilotava a bike com uma camisa vermelha, ao estilo do grande herói de dois hemisférios, Giuseppe Garibaldi, foi agredida ao se deparar com a aglomeração de zumbis entorpecidos de preconceitos. O passaporte para o passeio no findi havia adquirido a cor do canarinho, e não a que trajava. A roda gigante da violência girava num ritmo alucinante, com a energia de séculos de dominação.

 

O Anti-intelectualismo

O Anti-intelectualismo é o produto da redução da política a um militontismo alienante. Ao descartar a inteligência para enaltecer as emoções, o que sobra é a atividade rasteira da desrazão como critério de performance na luta de classes. Fato que explica o nome belicoso (“combate”) dado por Benito Mussolini ao movimento Fasci Italiani di Combattimento (1919), convertido no Partito Nazionale Fascista (PNF, 1921). Coisa que, – por incompetência – o discípulo miliciano da Barra da Tijuca não logrou realizar, embora tivesse em mãos a poderosa caneta Bic.

“Ao ouvir falar em cultura, puxo o revólver”, “Este homem é perigoso, acredita no que diz”, “Uma mentira contada mil vezes torna-se verdade” são frases de Joseph Goebbels, ministro da Informação e da Propaganda da Alemanha nazista, braço direito de Adolf Hitler. As assertivas adaptaram-se à tragédia do Brasil, no período recente. A prática operacional do novo fascismo reverbera o fascínio pela violência ao refutar a ideia de política, da Antiga Grécia, de que a persuasão e o convencimento deviam buscar a verdade com a palavra, e não com a falsidade.

A invasão terrorista incentivada por Donald Trump ao Capitólio, em Washington, no 6 de janeiro de 2021, e a depredação por vândalos das sedes do poder republicano, alimentada ao longo do mandato do inelegível, em Brasília, no 8 de janeiro de 2023, têm em comum a frustração com a expectativa de desencadear um irresistível movimento negacionista do regime democrático, nos Estados Unidos e no Brasil. Por metonímia, imaginaram encarnar a nação. A disponibilidade subjetiva para atender a uma convocação para um conflito anunciado separa o simpatizante, do combatente. Ignorar a nuance compromete as ilusórias estratégias de mobilização.

Os partícipes do golpismo tiveram um gozo não compartilhado pela totalidade dos eleitores do populismo extremista. Na urgência, os estrategos confundiram a dinâmica da base radical com a “vontade geral” rousseauniana. São coisas distintas. Tivessem acertado o prognóstico, a história teria parido o totalitarismo e globalizado palhaços sociopatas.

 

Culto da ação pela ação

Para Umberto Eco, a rejeição ao modernismo, a mistificação da tradição e o culto da ação são traços incontornáveis do fascismo, tanto o velho quanto o novo. O antimodernismo resulta da decepção com o império da tecnologia que não garante empregos e rebaixa salários; o amor à tradição é uma reação ao feminismo, ao black lives matter e à homoafetividade; e, o ativismo, é uma resposta ao fracasso das teorias iluministas para revolucionar o mundo.

Nos anos 1930, as células comunistas reuniam-se para debater a conjuntura e a linha de atuação, afora distribuir tarefas postas pelo comitê central. Já enclaves fascistas, ontem como hoje, ao invés de encontros para discussão, reúnem-se para atacar propriedades, cercear liberdades públicas e surrar inimigos da causa autoritária. Marcelo Arruda, diretor do Sindicato de Servidores Municipais de Foz do Iguaçu (Sismufi), assassinado no dia do aniversário pelo ódio de um direitista armado, foi mais uma vítima da irracionalidade dos patriotas postiços.

As agressões do poder vão além dos mecanismos legítimos para a repressão. Também ocorrem pela identificação com um líder carismático ou então por um apego emotivo à simbologia emblemática da comunidade política (a bandeira, o hino nacional). Sem o que não se viabiliza a arregimentação para as demonstrações de potência, em passeatas e concentrações.

A guerra não é a continuação da política por outros meios, conforme pensava Carl von Clausewitz. Ao abdicar do discurso como instrumento para formação de consensos, a autoridade do argumento cede lugar ao argumento da autoridade imposto por um ato de força do Estado. Ora, trata-se aí da troca de um paradigma civilizacional, não de um método apenas.

 

Alexandre de Moraes/TSE

A violência sobre Alexandre de Moraes no aeroporto conjuminou uma agressão verbal (contra o ministro e a família) e a agressão física (contra o filho). Juridicamente, implicou uma coerção dirigida ao responsável por decisões relevantes para o futuro da República, na Suprema Corte e, em especial, na presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Com óbvia intenção provocativa, a atitude do empresário de Santa Bárbara d’Oeste/SP forçou o titular do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, a julgar a natureza da cena “uma ameaça às funções constitucionais e ao Estado de direito democrático”. A consequência expõe os autores aos rigores da legislação. Incivilidade não tem perdão.

A moda não começou com a ascensão do Bozo. Antes, com a benção da Lava Jato e da Rede Globo, os progressistas foram submetidos a um linchamento social sob a acusação de corruptos. Ricardo Lewandowski era xingado (sic) de garantista. A justiça regredira à Idade Média, onde a suspeição já significava meia culpa, pela presunção de culpa. A Idade Moderna funda a presunção de inocência, até prova em contrário e uma sentença em última instância.

Michel Foucault, em Vigiar e punir, no capítulo “Os recursos para o bom adestramento”, debruçou-se sobre o tema no contexto da modernidade. “O castigo disciplinar tem a função de reduzir os desvios. Deve, portanto, ser essencialmente corretivo. A punição disciplinar é, em parte, isomorfa à própria obrigação; ela é menos a vingança da lei ultrajada que sua insistência redobrada. O efeito corretivo que se espera de maneira acessória passa pela expiação e pelo arrependimento”. Bem-vindos os que chegam atrasados à sociabilidade democrática.

 

Para uma agenda positiva

A pergunta é: como enfrentar a violência quando quase metade da população, de acordo com as pesquisas, se espelha na ultradireita cujo prócer perverso venceu uma eleição presidencial acenando o gesto da arminha para lidar com a oposição antifascista? Aberta a Caixa de Pandora, inocentes morreram em abordagens da Polícia Rodoviária Federal (PRF) asfixiados em gás lacrimogêneo, no porta-malas de uma viatura da corporação – impunemente. Para impedir o alastramento do habitus da selvageria na sociedade, urge construir a agenda positiva.

Primeiro, defender uma governança que não se limite às “normas procedimentais” (Alain Touraine) ou às “regras do jogo” (Norberto Bobbio), e não fique de costas para a “questão social” qual os liberais clássicos fizeram e os neoliberais fazem. A saber, uma governabilidade sadia que promova políticas (re)distributivas. Segundo, defender a educação pública gratuita e de qualidade em todos os níveis, e o aperfeiçoamento do Sistema Único de Saúde (SUS), para revalorizar o conhecimento e a ciência em áreas sensíveis à percepção do povo trabalhador.

Terceiro, defender o ambiente natural e para superar a crise climática medidas que interpelem a sensibilidade ecológica da juventude. Quarto, defender a igualdade de gênero, de raça e dos grupos LGBTQIA+ para conferir concretude ao conceito de democracia “como um processo cumulativo de valores civilizatórios” e, junto, assegurar “o direito a ter direitos” (Claude Lefort). Quinto, defender a presença dos indivíduos na vida pública via o Plano Plurianual Participativo (PPA), na libertadora transição “de consumidor a cidadão” (Albert Hirschman).

Esse é o programa capaz de parar a roda gigante da violência. Punições severas às ações diretas, sem mediações institucionais, da extrema direita são necessárias. A iniciativa do governo Lula de elevar as penas é oportuna, dialoga com a noção de que “a lei é para todos”. Mostra o panóptico estatal (que tudo vê, como o olho de Deus) ativo. Valha para desvendar o mandante da execução covarde de Marielle Franco e Anderson Gomes, no triste 14 de março de 2018, no Rio de Janeiro. Porém, é insuficiente. Ao par disso, é preciso cortar pela raiz as condições sociais que levam a ideologia do neofascismo apoiar-se na violência. Capisci?

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

 


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Gilberto Lopes Ricardo Abramovay Benicio Viero Schmidt Eugênio Trivinho Luiz Werneck Vianna Ronald Rocha Alexandre de Lima Castro Tranjan Denilson Cordeiro Luís Fernando Vitagliano Alysson Leandro Mascaro Ronald León Núñez Afrânio Catani Alexandre Aragão de Albuquerque José Costa Júnior Michel Goulart da Silva Airton Paschoa Ricardo Musse Luiz Bernardo Pericás Igor Felippe Santos Lorenzo Vitral Andrés del Río Celso Favaretto Marilena Chauí Ladislau Dowbor Atilio A. Boron Eleonora Albano Eugênio Bucci Vladimir Safatle Paulo Nogueira Batista Jr Milton Pinheiro Marcelo Módolo Francisco Pereira de Farias Flávio Aguiar José Micaelson Lacerda Morais Everaldo de Oliveira Andrade Luiz Roberto Alves Carla Teixeira João Adolfo Hansen Anselm Jappe Henri Acselrad Yuri Martins-Fontes Fernão Pessoa Ramos Bruno Machado Vinício Carrilho Martinez Érico Andrade José Geraldo Couto Gilberto Maringoni Otaviano Helene Dennis Oliveira Juarez Guimarães Chico Whitaker Ronaldo Tadeu de Souza Ricardo Antunes Maria Rita Kehl Daniel Costa João Lanari Bo João Feres Júnior Tales Ab'Sáber Liszt Vieira Marcos Silva João Sette Whitaker Ferreira Armando Boito Marcelo Guimarães Lima Kátia Gerab Baggio Gabriel Cohn Alexandre de Freitas Barbosa Eliziário Andrade Elias Jabbour Salem Nasser Bento Prado Jr. Osvaldo Coggiola Leda Maria Paulani Daniel Brazil Ari Marcelo Solon Plínio de Arruda Sampaio Jr. Fábio Konder Comparato Marcos Aurélio da Silva Bernardo Ricupero Luciano Nascimento Tadeu Valadares Jorge Luiz Souto Maior Francisco Fernandes Ladeira Marjorie C. Marona Fernando Nogueira da Costa Priscila Figueiredo José Luís Fiori Manchetômetro Jean Marc Von Der Weid Gerson Almeida Heraldo Campos Henry Burnett Boaventura de Sousa Santos Lincoln Secco André Singer Luiz Eduardo Soares Eduardo Borges Dênis de Moraes Berenice Bento Chico Alencar Marcus Ianoni Paulo Fernandes Silveira Vanderlei Tenório João Carlos Loebens Tarso Genro Valerio Arcary Sandra Bitencourt Leonardo Avritzer Valerio Arcary Claudio Katz Flávio R. Kothe Ricardo Fabbrini Walnice Nogueira Galvão Bruno Fabricio Alcebino da Silva Carlos Tautz José Raimundo Trindade Jean Pierre Chauvin José Machado Moita Neto Julian Rodrigues Annateresa Fabris Daniel Afonso da Silva Manuel Domingos Neto Luiz Carlos Bresser-Pereira Celso Frederico Mário Maestri Eleutério F. S. Prado Michael Löwy Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Luiz Renato Martins Rafael R. Ioris Slavoj Žižek Remy José Fontana Paulo Sérgio Pinheiro Antônio Sales Rios Neto Jorge Branco Lucas Fiaschetti Estevez Matheus Silveira de Souza Leonardo Boff Samuel Kilsztajn Paulo Capel Narvai Andrew Korybko Luis Felipe Miguel Paulo Martins Renato Dagnino Luiz Marques Thomas Piketty Rubens Pinto Lyra João Paulo Ayub Fonseca Marilia Pacheco Fiorillo Leonardo Sacramento João Carlos Salles André Márcio Neves Soares Rodrigo de Faria Caio Bugiato José Dirceu Antonio Martins Sergio Amadeu da Silveira Francisco de Oliveira Barros Júnior Antonino Infranca Mariarosaria Fabris Michael Roberts

NOVAS PUBLICAÇÕES