Crônicas 1964

Jan Vercruysse, M(M10), 1993
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Por LUIZ BERNARDO PERICÁS*

Comentários sobre o livro de crônicas de Gianfrancesco Guarnieri e das ilustrações do cartunista Otávio Câmara de Oliveira

Dizer que Gianfrancesco Guarnieri foi um dos mais famosos e respeitados artistas contemporâneos de nosso país não é exagero. Bem menos conhecido, por outro lado, é o cartunista Otávio Câmara de Oliveira, que assinava seus trabalhos apenas como “Otávio”. 

O primeiro, nascido em Milão, em 6 de agosto de 1934, se mudou para o Rio de Janeiro dois anos mais tarde e desde jovem se envolveu com o teatro e a política. Naquela cidade, foi presidente da Associação Metropolitana dos Estudantes Secundários e vice-presidente da União Nacional dos Estudantes Secundários. Depois, se transferiu para São Paulo e atuou como secretário-geral da União Paulista dos Estudantes Secundaristas (isso para não falar que ele também foi membro ativo do Partido Comunista).

No início da adolescência, escreveu sua primeira peça, Sombras do passado (tinha, então, apenas 14 anos de idade). Posteriormente, em 1955, iria fundar com Oduvaldo Vianna Filho o Teatro Paulista do Estudante (nesta época, ajudou a montar a peça Rua da igreja, de Lennox Robinson e Está lá fora um inspetor, de J. B. Priestley, que lhe rendeu o Prêmio Arlequim no Festival Paulista de Teatro Amador). Como ator, ainda participaria do filme O grande momento, de Nelson Pereira dos Santos e das peças Escola de maridos, de Molière, Dias Felizes, de Claude André Puggete Ratos e homens, baseada no livro homônimo do escritor norte-americano John Steinbeck (que marcou a estreia de Augusto Boal como diretor), ganhando, neste caso, o prêmio de ator revelação. Guarnieri escreveu Eles não usam black-tie em 1956, peça que estreou em 1958 no Teatro de Arena (em 1981, ela seria adaptada para o cinema com um roteiro dele, direção de Leon Hirszman e um elenco que incluía nomes como Fernanda Montenegro, Paulo José, Francisco Milani, Milton Gonçalves, Bete Mendes e Carlos Alberto Ricelli; o filme ganharia cinco prêmios no Festival de Veneza, entre os quais, o Leão de Ouro Especial do Júri). Suas outras peças também teriam forte caráter político, como A semente (1961), encenada no TBC; O filho do cão (1964); Arena conta Zumbi (1965); Arena conta Tiradentes (1967), em parceria com seu amigo Boal; Basta! (1972); Botequim (1973) dirigido por Antonio Pedro Borges; Ponto de partida (1976); Crônica de um cidadão sem nenhuma importância (1979); Meu nome é Pablo Neruda (1990); e Anjo na contramão (1997), junto com seu filho Cacau Guarnieri, encenada por Roberto Lage, só para citar algumas das mais conhecidas. Foi diretor de teatro, participou de telenovelas e minisséries, se destacou como ator em filmes nacionais. E ainda foi compositor de várias canções (em parceria com músicos de sucesso na época, como Edu Lobo, Adoniran Barbosa e Sérgio Ricardo), assim como secretário de Cultura de São Paulo, em meados dos anos 1980. Já no início do século XXI, chegou a começar a escrever uma peça teatral sobre a trajetória de Che Guevara (seu último trabalho). Um homem comprometido até o final. Talvez por tudo isso, ao longo da vida, tenha recebido tantas homenagens. 

Otávio, por sua vez, nasceu em 25 de junho de 1930, no Rio de Janeiro. Entre 1951 e 1952, esse grande cartunista (e também pintor) trabalhava como gerente do Banco Hipotecário Lar Brasileiro, enquanto ao mesmo tempo desenhava tiras de quadrinhos para o recém-fundado jornal Última Hora. Foi morar em São Paulo em 1953, continuando a exercer suas funções no mesmo banco durante o dia, e laborando à noite na redação do UH paulista até o encerramento do expediente noturno, sendo o responsável por produzir caricaturas, charges e ilustrações variadas para o periódico. Segundo o estudioso Worney Almeida de Souza, Otávio não só chegou a ter uma página exclusiva sua naquele jornal, na qual “comentava os fatos da metrópole”, como produzia mais de 15 “trabalhos” por dia. A partir de 1963, abandonou o emprego no banco e decidiu se dedicar de corpo e alma à sua arte. Ainda contribuiu, nos anos seguintes, com a Gazeta Esportiva e a Folha da Tarde, a revista Placar e, por algum tempo, o jornal Notícias Populares. Sua obra, assim como a de Guarnieri, também tinha um caráter bastante provocador (inclusive suas charges de futebol). Ele foi, sem dúvida, um dos mais importantes cartunistas de nosso país.    

Em 1964, os dois artistas iriam se unir no Última Hora de São Paulo em uma colaboração emblemática. Naquele ano, Guarnieri (convidado por Jorge da Cunha Lima), escreveria várias crônicas, que seriam acompanhadas de ilustrações de Otávio. Na época, Cyro de Queiroz Guimarães diria sobre o ator: “Aos 29 anos, Gianfrancesco Guarnieri é nome nacional e dramaturgo realizado. Talvez o maior neste país. Suas peças são bastante conhecidas: Eles não usam black-tie, Gimba, A semente e, agora, O filho do cão, que Guarnieri considera a mais bem desenvolvida de todas. Todo mundo sabe que ele é ator também, e dos bons. […] Em UH, terá seu canto diário para conversar com o povo, onde ele narrará e analisará em forma de crônica suas observações sobre a vida de cidade. Problemas sociais, como o drama dos retirantes desajustados na capital, o trabalhador que madruga no mercado, os núcleos de imigração japonesa e chinesa, a miséria que bate à porta dos hospitais públicos, tudo isso será assunto da coluna. Outros ângulos da grande cidade serão focalizados, com tinta de poesia que só a sensibilidade de Guarnieri pode preparar. […] A imprensa lhe dará a oportunidade que aguardava: a comunicação direta com seus personagens. Aguardemos Gianfrancesco Guarnieri e o que ele tem a dizer”. 

Suas 46 histórias foram publicadas durante dois meses em uma coluna diária (com exceção dos domingos) na segunda página do Caderno UH-Revista, numa parceria com o cartunista carioca que se encerrou com o golpe militar (logo depois, Guarnieri iria fugir com o amigo Juca de Oliveira para a Bolívia, onde ficaria por três meses). O próprio dramaturgo afirmou que escrever aquelas crônicas era uma loucura. Segundo um de seus depoimentos, ele as redigia em cinco minutos e um enviado do jornal, em seguida, ia retirar o material, para então levá-lo rapidamente para a redação do jornal. Por isso, ele admitiu que teve muito pouco contato pessoal com Otávio. De qualquer forma, Guarnieri considerava que aquele era um “trabalho militante”. Afinal, como um artista engajado, filiado ao PCB, acreditava que deveria passar sua mensagem social para o maior número de pessoas. E ele sabia que o Última Hora seria um veículo importante nesse sentido, já que tinha um público enorme de leitores. Segundo o próprio Guarnieri, “o pessoal do partido e da redação adorava os textos. As crônicas incomodavam mesmo”. 

Sua primeira história publicada foi “Primeiro filho”, na edição de 4 de fevereiro de 1964. A última, “Um pai”, saiu em 1º de abril, no dia do golpe. Em todas elas, tipos do cotidiano, homens do povo, pessoas comuns, trabalhadores na luta diária pela sobrevivência. Um verdadeiro retrato de um período conturbado de nossa história contemporânea. E um documento inestimável sobre o Brasil na primeira metade da década de 1960, especialmente do momento imediatamente anterior à tomada do poder pelos militares. 

Aqueles textos e desenhos ficaram esquecidos durante muito tempo e foram recuperados e publicados, alguns anos atrás, na coletânea de Guarnieri intitulada Crônicas 1964 (Xamã, 2007), organizada pelo jornalista e pesquisador Worney Almeida de Souza, um belo livro que, sem dúvida, merece ser lido e discutido na atualidade como um registro fundamental da colaboração de dois grandes nomes da cultura nacional, assim como também uma fotografia de uma época dramática da história brasileira (vale ressaltar aqui que as informações do presente artigo, em boa parte, se encontram no referido trabalho preparado por Worney, que merece todo o crédito pelo excelente levantamento de fontes). Esta antologia, dividida em três partes, contém um prefácio de Jorge da Cunha Lima, uma apresentação, um texto biográfico (que inclui uma lista de trabalhos do ator, diretor e dramaturgo no teatro, na TV e no cinema), um escrito de Cyro de Queiroz Guimarães, o editorial de Cunha Lima de 4 de fevereiro de 1964, um comentário sobre a peça O filho do cão (a partir do depoimento de Juca de Oliveira), uma cronologia dos acontecimentos nas manchetes do Última Hora, um depoimento de Guarnieri (de janeiro de 2006) e todas as crônicas ilustradas por Otávio, além de fotos, reproduções de páginas inteiras do jornal e anexos. Um livro muito interessante que deveria ser novamente editado.  Fica aqui a sugestão. 

*Luiz Bernardo Pericás é professor no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de Caio Prado Júnior: uma biografia política (Boitempo). [https://amzn.to/48drY1q]

Referência


Gianfrancesco Guarnieri. Crônicas 1964. Editora Xamã, 2008, 208 págs. [https://amzn.to/3VGBeIJ]


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