Espelho de vazios

Imagem: Konstantin Shpankov
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por URARIANO MOTA*

Uma reflexão sobre o feminismo a partir de Uma casa de bonecas de Ibsen

Na Agência Brasil, lemos: “O Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios, anunciado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no encerramento da Marcha das Margaridas 2023, em Brasília, nesta quarta-feira (16), atende ao terceiro dos 13 eixos da pauta de reivindicações políticas das mulheres participantes da mobilização. O de Vida livre de todas as formas de violência, sem racismo e sem sexismo”.

 

1.

Esse poderia ser o gancho jornalístico, o motivo da leitura de Uma casa de bonecas, de Henrik Ibsen. Mas a peça é tão boa que não precisa de gancho. Henrik Ibsen (1828-1906) foi dramaturgo norueguês, um dos criadores do teatro realista moderno. Entre tantas fundamentais peças, em 1879 escreveu Uma casa de bonecas, sobre uma mulher que abandona o marido e os filhos. Segundo o grande Bernard Shaw, uma inovação na dramaturgia de Ibsen foi introduzir a discussão no texto teatral a partir de Uma casa de bonecas, pois “antes nós tínhamos, no que se chamava peça-bem-construída, uma exposição no primeiro ato, a situação no segundo e o desfecho no terceiro. Mas em Uma casa de bonecas temos exposição, situação e discussão”.

Mas, faz parte do nosso dever, trazer o que Otto Maria Carpeaux escreveu sobre a peça: “Os seus problemas são hoje obsoletos – ninguém mais se interessa pelas consequências morais da sífilis hereditária – ou foram inteiramente resolvidos – como a emancipação legal da mulher […] Uma casa de bonecas é hoje, sendo a emancipação da mulher um fato consumado já desde decênios, a peça mais antiquada de Ibsen. Para então foi uma peça incrivelmente revolucionária; os feministas de ambos os sexos fizeram em torno dela um barulho enorme, toda a Europa a discutiu. Uma casa de bonecas parece proclamação teatral da luta feminista. Mas que temo nós outros, em 1973, com feminismo?”.

Essa é uma reflexão profundamente infeliz, equivocada, do mestre de humanidades de várias gerações no Brasil. Otto Maria Carpeaux, um imigrante judeu austríaco, fecundou com a sua cultura enciclopédica os jornais e livros em português. Homem de esquerda, na linha de frente contra a ditadura. Mas no caso particular de Uma casa de bonecas e de seu feminismo, ele foi uma infelicidade chocante. Isso para ser educado e respeitoso para com o mestre.

Primeiro, a emancipação legal não se faz emancipação de fato na realidade de mulheres assassinadas. Se na Noruega o feminicídio está hoje superado, no Brasil e na América Latina é um assunto de urgência, frente à barbárie de assassinatos de mulheres todos os dias até hoje. Agora mesmo, neste momento. São mulheres a quem os maridos, “companheiros” ou namorados querem ter a posse de senhor frente à escrava. Então, para dizer o mínimo, Carpeaux não conhecia a sociedade brasileira.

Isso para não lembrar que o tema, o problema de uma obra, não se esgota jamais quando se faz obra de arte. Se assim fosse, estariam superados a tragédia do casamento de Édipo com a própria mãe, o amor entre jovens de famílias inimigas em Shakespeare, o delírio do Dom Quixote com os romances de cavalaria! Então, mesmo que o feminismo estivesse obsoleto, Uma casa de bonecas estaria como um “obsoleto” seminal, de hoje e do futuro. E não está, nem mesmo como problema. Pelo contrário, ali está uma urgência que pede e clama justiça.

 

2.

Na edição que tenho, da Veredas, as seis últimas páginas contêm os diálogos mais contundentes de feminismo.

“Helmer – Quem a amou mais do que eu e seu pai?

Nora (meneando a cabeça) – Vocês jamais me amaram, apenas lhes era divertido se encantarem comigo.

Helmer – Nora, o que você está dizendo?

Nora – É assim mesmo, Helmer; quando eu estava em casa, papai me expunha as suas ideias, e eu as partilhava. Se acaso eu pensasse diferente, não o dizia, pois ele não teria gostado disso. Chamava-me sua bonequinha, e brincava comigo, como eu brincava com as minhas bonecas. Depois vim morar na sua casa.

Helmer – Você emprega uma expressão singular para falar do nosso casamento.

Nora (imperturbável) – Quero dizer que das mãos de papai passei para as suas. Você arranjou tudo ao seu gosto, gosto que eu fingia partilhar. Vivi das gracinhas que eu fazia para você, Helmer; mas era o que lhe convinha. Você e papai cometeram um grande crime contra mim. Se eu de nada sirvo, a culpa é de vocês.

Helmer – Como você é injusta, Nora, e ingrata! Não foi feliz aqui?

Nora – Nunca. Julguei que sim, mas nunca fui.

Helmer – Não foi … nunca foi feliz?

Nora – Nunca; era alegre, nada mais. Você era tão amável comigo! Mas a nossa casa nunca passou de um quarto de brinquedos. Fui sua boneca-esposa, como havia sido boneca-filha na casa do meu pai. E os nossos filhos, por sua vez, têm sido as minhas bonecas. Eu achava engraçado quando você me levantava e brincava comigo, como eles acham engraçado que eu os levante e brinque com eles. Eis o que foi o nosso casamento, Helmer….

Helmer -Você não deve dar atenção a isso.

Nora – Devo tentar educar a mim mesma. E você não é o homem indicado para me ajudar nessa tarefa. É algo que devo empreender sozinha. E para isso eu vou deixá-lo.

Helmer (erguendo-se de um pulo) – O que você está dizendo?

Nora – Preciso estar só, para avaliar a mim mesma e a tudo quanto me rodeia. Por isso não posso continuar a viver com você.

Helmer – Nora! Nora!

Nora – Quero me retirar já. Por esta noite ficarei na casa de Kristina.

Helmer – Você está delirando. Não poso deixar. Eu a proíbo!

Nora – De agora em diante, você não pode me proibir nada. Levo só o que me pertenço. De você nada quero, nem agora, nem nunca”.

Quantas mulheres do povo brasileiro gostariam de agir dessa maneira? Quantas já tentaram viver esse rompimento? Lembro da minha infância, quando vi uma senhora que tentou sair da opressão do marido, e depois, sem meios de sobreviver, voltou. Até a morte.

“Helmer – Antes de mais nada, você é esposa e mãe.

Nora – Já não creio nisso. Creio que antes de mais nada sou um ser humano”.

 

3.

Em boa parte da peça, Nora é uma outra pessoa. Bobinha, feliz, egoísta em relação à sorte de outras. Goza a sua condição burguesa, de mulher do futuro diretor de banco. Poderá gastar mais, muito mais do que antes, comprar, comprar mais, o que parece ser a sua felicidade. Tanto canta enquanto caminha pela casa, que o marido a chama de cotovia. E repete o elogio tantas vezes que tive a curiosidade de ouvir o canto da ave aqui https://www.youtube.com/watch?v=P5AvKci6b_w.

Nora é tão cantora e dançarina quanto uma bailarina de biscuit.

Vive num estado de alienação que se confunde com uma pequena loucura. Curte, curte, vive entre bens que se estendem ao amor. Mas o que é o amor? Ibsen insinua a pergunta em outras páginas. O amor é aquilo que dá à mulher uma posição mais vantajosa. Poetas, seresteiros, namorados, fodam-se. O amor não se cura com belas palavras, ainda que venham de Camões, Vinícius ou Carlos Pena Filho.

“Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer….

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento…

Deu-lhe a mais limpa manhã
Que o tempo ousara inventar.
Deu-lhe até a palavra lã,
E mais não podia dar”.

Para ela, mulher burguesa, o amor está onde houver bens mais concretos. Sólidos, de valor de mercado. Pois onde se vai amar com fome, poeta? Não se pode viver conforme o engenho poético. Se arder, incendeia-se. Então Nora se dá em um novo engano. Canta, dança, gira, é bonita, então é amada. Ela é, contém no ser molas de fada. Na verdade, a relação do casal é espelho de vazios. No momento culminante da peça, ela descobre que fingia ser feliz Mas o que é a felicidade de um casal? Baile, fantasia, champanhe? Ser desejada e desejado em cima do quê?

Então, se Nora só fingia antes ser feliz, se a alienação trazia a cilada o alçapão da cotovia para pare feliz na gaiola, e como ela não sabia estar dessa maneira, então ela antes vivia grogue e dormia, como se morta estivesse. E ressurge do sepulcro depois da irrupção de raiva do marido:

Helmer – Durante oito anos você foi a minha alegria e o meu orgulho, e agora vejo que é uma hipócrita, uma impostora. Pior ainda, uma criminosa! Que abismo de torpezas. Ah, que horror! Eu devia ter sabido que uma coisa dessas iria acontecer. Devia ter previsto. Com os princípios levianos do seu pai… princípios que você herdou! Ausência de religião, ausência de moral, absoluta ausência do senso de dever… Você continuará na minha casa, mas eu não lhe permitirei educar as crianças. Não me aventuro a confiá-las a você”.

Daí, Nora ressurge do sepulcro. Mas não sobe aos céus da sua glória. Vai para os séculos fora da prisão. Não irá alegre ou contente em seus próximos passos. Quem sabe, com a felicidade do amargo.

“Helmer – Você está doente, Nora, tem febre. Quase me convenço de que perdeu o juízo.

Nora – Sinto-me esta noite mais lúcida e mais segura de mim do que nunca.

Helmer – E é com essa firmeza e em perfeita lucidez que você abandona o seu marido e os seus filhos?

Nora -Sim….

Helmer – Nora, por você eu trabalharia alegremente dia e noite. Suportaria tudo, preocupações e provações. Mas não há ninguém que sacrifique a sua honra pela pessoa que ele ama.

Nora – Milhares e milhares de mulheres têm feito isso”.

Então Nora vai mais fundo na visão da sociedade e do futuro que a espera: “Quando uma mulher deixa a casa do seu marido, como eu estou fazendo agora, as leis absolvem o marido de qualquer obrigação para com ela. De qualquer modo, eu o deixo livre de agora em diante. Inteira liberdade de parte a parte”.

Norma agora é uma pessoa.

A peça termina, mas não a sua maior personagem. Apagam-se as luzes no palco, fechamos o livro. A gente fica sozinho num canto a refletir sobre o quanto gostaríamos de ter visto mulheres assim tão valentes em nossa infância. Mas lhes faltava tudo: pão, açúcar, consciência do próprio valor. Já hoje, para as brasileiras do povo neste 2023, vêm balas e morte desferidas pelos “companheiros”. Só nos resta seguir para um novo ato.

*Urariano Mota é escritor e jornalista. Autor, entre outros livros, de Soledad no Recife (Boitempo).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Mário Maestri Liszt Vieira Bruno Machado José Machado Moita Neto Andrés del Río Érico Andrade Vanderlei Tenório Daniel Costa Otaviano Helene Jorge Branco Michel Goulart da Silva Caio Bugiato Chico Whitaker Luiz Carlos Bresser-Pereira Flávio Aguiar Igor Felippe Santos Eleonora Albano Everaldo de Oliveira Andrade José Geraldo Couto Carla Teixeira Andrew Korybko Tadeu Valadares Vladimir Safatle Ricardo Fabbrini Alexandre de Lima Castro Tranjan Ronald Rocha Bruno Fabricio Alcebino da Silva Sandra Bitencourt Luiz Werneck Vianna Eduardo Borges Marilena Chauí Eugênio Trivinho Alysson Leandro Mascaro Sergio Amadeu da Silveira Gilberto Lopes Eleutério F. S. Prado Paulo Sérgio Pinheiro Tarso Genro Jean Pierre Chauvin Alexandre de Freitas Barbosa Leonardo Sacramento Berenice Bento Francisco Pereira de Farias Leda Maria Paulani Gerson Almeida Bernardo Ricupero Denilson Cordeiro Luiz Bernardo Pericás Manuel Domingos Neto Celso Favaretto Gabriel Cohn João Adolfo Hansen Luis Felipe Miguel Celso Frederico Afrânio Catani Luiz Renato Martins Julian Rodrigues Daniel Brazil Luiz Marques Gilberto Maringoni Marcus Ianoni Thomas Piketty Juarez Guimarães Fernão Pessoa Ramos José Dirceu Elias Jabbour Kátia Gerab Baggio Luís Fernando Vitagliano Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marcelo Guimarães Lima Alexandre Aragão de Albuquerque Airton Paschoa Priscila Figueiredo Anselm Jappe Valerio Arcary Eugênio Bucci Milton Pinheiro Marjorie C. Marona Annateresa Fabris Leonardo Avritzer Luiz Eduardo Soares Paulo Capel Narvai Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Vinício Carrilho Martinez Luiz Roberto Alves Michael Roberts Ari Marcelo Solon Paulo Fernandes Silveira Heraldo Campos Mariarosaria Fabris Samuel Kilsztajn Atilio A. Boron Fábio Konder Comparato Marcelo Módolo Daniel Afonso da Silva Boaventura de Sousa Santos André Márcio Neves Soares Lorenzo Vitral Slavoj Žižek Henry Burnett Claudio Katz Paulo Martins Flávio R. Kothe Osvaldo Coggiola Antônio Sales Rios Neto Armando Boito José Raimundo Trindade Paulo Nogueira Batista Jr José Costa Júnior Ronaldo Tadeu de Souza Bento Prado Jr. Ricardo Antunes João Feres Júnior Walnice Nogueira Galvão Jorge Luiz Souto Maior Fernando Nogueira da Costa João Carlos Salles Rafael R. Ioris Antonino Infranca Chico Alencar Antonio Martins Rodrigo de Faria Valerio Arcary Henri Acselrad José Luís Fiori Michael Löwy Ladislau Dowbor Ricardo Abramovay Marcos Silva Maria Rita Kehl Remy José Fontana Francisco de Oliveira Barros Júnior Carlos Tautz Dennis Oliveira Marcos Aurélio da Silva João Lanari Bo José Micaelson Lacerda Morais João Paulo Ayub Fonseca Rubens Pinto Lyra Benicio Viero Schmidt João Sette Whitaker Ferreira Jean Marc Von Der Weid Lincoln Secco Luciano Nascimento Eliziário Andrade Ricardo Musse Marilia Pacheco Fiorillo Dênis de Moraes Renato Dagnino Francisco Fernandes Ladeira Salem Nasser Manchetômetro Lucas Fiaschetti Estevez João Carlos Loebens Ronald León Núñez Tales Ab'Sáber Matheus Silveira de Souza Yuri Martins-Fontes André Singer Leonardo Boff

NOVAS PUBLICAÇÕES