Por FRANÇOIS DUBET*
Leia a “Introdução” do autor ao livro recém editado
Novas desigualdades, novas cóleras
O espírito do tempo pactua com as paixões tristes. Sob o pretexto de se desfazer do bom-mocismo e do politicamente correto, pode-se acusar, denunciar, odiar os poderosos e os fracos, os ricaços ou os paupérrimos, os desempregados, os estrangeiros, os refugiados, os intelectuais, os especialistas. De maneira um pouco mais atenuada, desconfia-se da democracia representativa, acusada de ser impotente, corrompida, distante do povo, submissa aos lobbies e mantida na coleira pela Europa e pelo sistema financeiro internacional.
Cóleras e acusações antes consideradas indignas têm agora direito de cidadania. Elas invadem a internet. Numa grande quantidade de países, encontraram uma expressão política com os nacionalismos e os populismos autoritários. E essa tendência está aumentando, na Grã-Bretanha como na Suécia, na Alemanha e na Grécia. A questão social, que oferecia um contexto para nossas representações da justiça, parece se dissolver nas categorias da identidade, do nacionalismo e do medo.
Este ensaio almeja entender o papel das desigualdades sociais no desdobramento dessas tristes paixões. Minha hipótese é a seguinte: mais do que a amplitude das desigualdades, é a transformação do sistema de desigualdades que explica as cóleras, os ressentimentos e as indignações de nossos dias. As desigualdades, que antes pareciam incrustradas na estrutura social, num sistema tido como injusto, mas relativamente estável e compreensível, agora se diversificam e se individualizam. Com o declínio das sociedades industriais, elas se multiplicam, mudam de natureza, transformando profundamente a experiência que temos delas.
A estrutura das desigualdades de classe se difrata numa quantidade de provações individuais e de sofrimentos íntimos que nos enchem de cólera e nos indignam, sem ter – por ora – outra expressão política senão o populismo.
A percepção das desigualdades
Para esclarecer essas mudanças, não faltam explicações. A maior parte delas mostra como as sociedades industriais, nacionais e democráticas foram sacudidas pelas transformações do capitalismo, pela globalização, pelo colapso da União Soviética, pela crise de 2008 e pelo terrorismo. Os governos são impotentes diante das crises e das ameaças. Os trabalhadores pouco qualificados são submetidos à concorrência dos países emergentes, que se tornaram as fábricas do mundo.
Para a maioria dos analistas, o neoliberalismo (aliás, de definição bastante vaga) surge como causa essencial dessas transformações e dessas preocupações. Não somente a onda neoliberal destruiria as instituições e os atores da sociedade industrial como também imporia um novo individualismo, fraturando as identidades coletivas e as solidariedades, esfacelando a civilidade e o controle de si. Resumindo, “é a crise” e “antes era melhor”.
A atenção concedida à transformação das desigualdades não deve levar à subestimação de seu aumento ou, mais exatamente, do esgotamento da longa tendência de sua redução, que marcou as décadas do período pós-guerra. Em todos os lugares, a porcentagem mais rica da população enriqueceu e colheu a maior parte do crescimento. Enquanto, em 1970, o 1% mais rico recebia 8% dos rendimentos nos Estados Unidos, 7% na Grã-Bretanha e 9% na França, em 2017, essa parcela subiu para 22% nos Estados Unidos e para 13% na Grã-Bretanha (permanecendo estável na França em 9%). As desigualdades se agravam em benefício dos altos rendimentos, os dos capitais e dos altíssimos salários.
Elas se acentuam ainda mais se considerarmos os patrimônios. Após um longo período de redução da parte do patrimônio em relação aos salários entre 1918 e 1980, os patrimônios se vingaram: por conta do fraco crescimento econômico, os juros sobre o capital e o preço das terras crescem atualmente mais rápido que os salários. Os riquíssimos se tornaram tão ricos que fazem secessão,(1) enquanto a maioria da população tem a impressão de ver sua situação se degradar.
Ainda que possamos considerar o desemprego como uma desigualdade intolerável, na França, as desigualdades de rendimentos crescem, sem, contudo, “explodirem”. Segundo dados do INSEE(2) de 2004, o índice Gini (que mede a amplitude das desigualdades) passou de 0,34 em 1970 para 0,28 em 1999 e para 0,31 em 2011. No entanto, entre 2003 e 2007, os 10% mais pobres ganharam 2,3% da riqueza suplementar, ao passo que os 10% mais ricos ganharam 42,2%. Como em todo lugar, o crescimento dos altíssimos salários explica essa diferença e, ainda mais, a das desigualdades de patrimônio, posto que os 10% mais ricos possuem 47% do patrimônio, e o cêntimo superior, 17%. De todo modo, a pobreza (definida em 60% do ganho médio) chegou a regredir. Entre 1970 e 2016, a população pobre passou de 17,3% a 13,6%.
Há cerca de trinta anos, aproximadamente 80% dos franceses acreditam que as desigualdades aumentam, mesmo nos períodos em que este não é o caso. Elas são percebidas como mais fortes porque saímos de um longo período em que parecia evidente que as desigualdades sociais se reduziriam continuamente, nem que fosse em decorrência da elevação do nível de vida. Seguramente, um bocado de desigualdades aumenta, enquanto algumas outras diminuem. Assim sendo, seria equivocado estabelecer uma correlação mecânica entre a amplitude das desigualdades e a maneira como os indivíduos as percebem, as justificam ou se indignam com elas.
Sofrer “na qualidade de”
Nós nos encontramos numa situação paradoxal: o agravamento mais ou menos intenso das desigualdades se conjuga com o esgotamento de um certo sistema de desigualdades formado nas sociedades industriais, o das classes sociais. Mesmo que as desigualdades sociais pareçam inscritas dentro da ordem estável das classes e de seus conflitos, as clivagens (formações de grupos sociais distintos e, com frequência, opostos) e as desigualdades hoje em dia não param de se multiplicar, e cada indivíduo é, de certo modo, afetado por várias entre elas. Dentro do vasto conjunto que engloba todos aqueles que não estão no topo nem embaixo na hierarquia social, as clivagens não se sobrepõem mais de modo tão nítido, tão definido como antigamente, quando a posição dentro do sistema de classes parecia agregar todas as desigualdades de uma vez.
Nesse caso, não se trata de uma ampla classe média – à qual dizem, contudo, pertencer a maioria dos indivíduos –, mas de um mundo fracionado segundo uma infinidade de critérios e dimensões. Constitui-se um universo social dentro do qual nós somos mais ou menos desiguais em função das diversas esferas às quais pertencemos. Somos desiguais “na qualidade de”: assalariado mais ou menos bem pago, protegido ou precário, diplomado ou não, jovem ou idoso, mulher ou homem, vivendo numa cidade dinâmica ou numa região em dificuldades, num bairro chique ou num subúrbio popular, solteiro ou casado, de origem estrangeira ou não, etc. Essa lista, infinita, não é realmente nova.
Por outro lado, a multiplicação dos critérios de desigualdade é relativamente pouco congruente ou “integrada” assim que nos afastamos dos grupos que acumulam todas as vantagens e todas as desvantagens. Há um bocado de gente entre as famílias Groseille e as famílias Le Quesnoy.(3) Por sinal, nosso vocabulário social tem cada vez mais dificuldades para nomear os conjuntos sociais pertinentes. Às classes sociais e aos estratos que predominam no vocabulário dos sociólogos acrescentam-se sem cessar noções que revelam novos critérios de desigualdade e novos grupos: as classes criativas e as estáticas, os incluídos e os excluídos, os estáveis e os precários, os ganhadores e os perdedores, os minoritários estigmatizados e os majoritários estigmatizantes, etc.
Além disso, cada um desses conjuntos é ele mesmo atravessado por uma infinidade de critérios e clivagens, em função dos quais somos mais ou menos iguais (ou desiguais) aos outros. Essa representação e essa experiência das desigualdades se afastam progressivamente daquelas que dominavam a sociedade industrial, numa época em que a posição de classe parecia associada a um modo de vida, a um destino e a uma consciência.
A experiência das desigualdades
A multiplicação das desigualdades, somada ao fato de cada um se confrontar com desigualdades múltiplas, transforma profundamente a experiência das desigualdades. De início, as desigualdades são vividas como uma experiência singular, como um desafio individual, como um questionamento do próprio valor, uma manifestação de desprezo e uma humilhação. Progressivamente, desliza-se da desigualdade das posições sociais para a suspeita de desigualdade dos indivíduos, que se sentem ainda mais responsáveis pelas desigualdades que os afetam, pois eles se percebem como pessoas livres e iguais por direito, com o dever de o declararem.
Dessa forma, não surpreende que o respeito seja a exigência moral mais seriamente reivindicada hoje em dia – não o respeito e a honra devidos à posição, mas o respeito devido à igualdade. Como intuíra Tocqueville, mesmo quando as desigualdades são reduzidas, elas são cada vez mais vividas dolorosamente. A multiplicação e a individualização das desigualdades ampliam o espaço das comparações e acentuam a tendência de se avaliar com maior exatidão possível. Na verdade, nesse novo sistema, as “pequenas” desigualdades parecem bem mais pertinentes do que as “grandes”.
As grandes desigualdades, como a que opõe a maior parte de nós ao 1% dos mais ricos, são menos significativas e nos colocam menos questões do que as desigualdades que nos distinguem daqueles com quem cruzamos todos os dias. Principalmente, as desigualdades multiplicadas e individualizadas não se inscrevem em nenhuma “grande narrativa” suscetível de lhe dar sentido, designar suas causas e seus responsáveis e de esboçar projetos para combatê-las. Desafios singulares e íntimos, é como se fossem dissociadas dos contextos sociais e políticos que as explicavam, propiciavam razões de lutar juntos, ofereciam consolos e perspectivas.
A distância entre essas provas individuais e os desafios coletivos abre espaço para o ressentimento, as frustrações, por vezes ao ódio pelos outros, a fim de evitar o desprezo de si mesmo. Ela gera indignações, mas, por enquanto, estas não se transformam em movimentos sociais, em programas políticos e tampouco em interpretações sensatas da vida social. A experiência das desigualdades alimenta os partidos e os movimentos que, na falta de termo melhor, qualificamos como “populistas”. Estes se esforçam para superar a dispersão das desigualdades opondo o povo à elite, os naturais aos estrangeiros, e instauram uma economia moral na qual a rejeição dos outros e a indignação restituem ao cidadão infeliz seu valor e sua dignidade.
*François Dubet é professor de sociologia na Universidade de Bordeaux II e diretor de pesquisas na École des Hautes Études em Sciences Socials (França). Autor, entre outros livros, de Les places et les chances (Seuil).
Referência
François Dubet. O tempo das paixões tristes. Tradução: Mauro Pinheiro. São Paulo, Vestígio, 2020, 140 págs.
Notas do tradutor
(1) A ideia presente aqui é a de que os “riquíssimos”, uma vez que avaliam que o governo não protege seus direitos e interesses, veem-se no direito de abolir sua subserviência a esse governo.
(2) O Institut National de la Statistique et des Études Économiques, conhecido pela sigla INSEE (em português, “Instituto Nacional da Estatística e Estudos Econômicos”), é o órgão oficial francês responsável pela coleta, análise e publicação de dados e informações sobre a economia e a sociedade do país.
(3) Alusão às famílias protagonistas do filme La vie est un long fleuve tranquille, de Étienne Chatillez, 1988.