Por FÁBIO MASCARO QUERIDO*
Introdução do livro sobre a trajetória do marxista francês
Versão bastante modificada e condensada de uma tese de doutorado em sociologia, defendida em 2016 no IFCH/Unicamp, sob orientação do professor Marcelo Ridenti, este livro almeja – como seu objetivo geral, em torno do qual gravitam os mais específicos – analisar e conferir inteligibilidade à trajetória de um intelectual contemporâneo que, na sua especificidade, sintetiza alguns dos dilemas dos intelectuais politicamente engajados nas últimas décadas: Daniel Bensaïd (1946-2010).
Não por acaso, como se verá, especial destaque é dado à forma como Daniel Bensaïd respondeu e, assim, se reposicionou intelectualmente frente à mudança de época que se inicia, na Europa, no final dos anos 1970, ampliando-se na década seguinte, até o epílogo da derrocada do socialismo burocrático na URSS e no leste europeu entre 1989 e 1991.
A fim de perseguir esse objetivo, toma-se como parâmetro o modo como a redescoberta da obra de Walter Benjamin o auxiliou nessa travessia no deserto europeu: com o filósofo alemão à l’esprit, Daniel Bensaïd encontrou um caminho possível por onde, sem renunciar às esperanças revolucionárias de outrora, se tornava possível, em sua ótica, buscar respostas aos desafios apresentados ao marxismo e aos intelectuais politicamente engajados, obrigados que são a sair em busca da legitimidade perdida. Isso porque, sabe- se bem, nem mesmo na França – a pátria dos intelectuais, a antiga República das Letras, lócus por excelência dos intelectuais engajados, de Émile Zola a Jean-Paul Sartre – essa figura resistiu intacta ao novo espírito do tempo, cujo rebaixamento do “horizonte de expectativa” parecia lhe retirar a própria razão de ser.
Entender os móveis histórico-sociais e, ao mesmo tempo, os resultados autorais produzidos em meio a essa tensão entre um intelectual formado na atmosfera dos anos 1960 e a época que se abre a partir dos anos 1980 é, portanto, o que se pretende fazer aqui.
Objetivo para cuja realização se impõe a necessidade de uma abordagem capaz de articular – o que é fácil de dizer, difícil de fazer – a análise da obra e a reconstituição da trajetória nas suas relações com as condições determinadas da cena intelectual correspondente, e, por fim, com as mudanças do contexto histórico-social mais amplo. É em meio a esse quadro complexo que se compreende a importância decisiva da obra de Walter Benjamin na trajetória de Daniel Bensaïd a partir dos anos 1980.
Naquele momento, Walter Benjamin lhe aparecera como uma orientação intelectual e política em um período em que o marxismo se encontrava sob fogo cruzado, acusado pelos crimes e desastres provocados em seu nome. Isso explica o modo profundamente interessado com que Daniel Bensaïd interpreta o crítico alemão: falando e escrevendo sobre Benjamin, muitas vezes é como se estivesse falando e escrevendo sobre si próprio, num contexto – como o da virada para os anos 1990 – em que, embora muito menos dramático do ponto de vista de suas consequências imediatas, parecia tão ou mais difícil para os intelectuais marxistas do que os anos 1930, já que o que agora estava em xeque era a ideia mesma de que outro mundo era possível e, em particular, desejável. Estávamos no auge, vale lembrar, da proclamação desabusada do fim de tudo: da história, das ideologias, das utopias, das classes sociais e etc.
Ninguém melhor do que Walter Benjamin, nesse cenário, para ajudá-lo a realizar um novo diagnóstico de época, a fim de apreender os contornos do capitalismo contemporâneo sem, por outro lado, renunciar à ideia de que uma forma de sociedade qualitativamente distinta daquela proclamada como vencedora ainda é possível e necessária – além de desejável. Tanto quanto Gramsci, para quem o pessimismo da razão não desautoriza o otimismo da vontade, Benjamin apostava na possibilidade de que o pessimismo – necessário diante de uma situação adversa – se transmutasse num impulso para a ruptura com um estado de coisas aparentemente imodificável. O pessimismo, ou, mais precisamente, o “pessimismo revolucionário”, era o que, para o crítico alemão, aproximava visões de mundo distintas, embora não antitéticas, como o marxismo e o surrealismo.
Para um benjaminiano ainda vinculado à tradição marxista revolucionária “clássica”, como Daniel Bensaïd, o desafio a ser enfrentado era semelhante na sua forma, a despeito das diferenças históricas substantivas entre os anos 1920 e 30 e os anos 1980 e 90. Era preciso, afinal, apreender sem bloqueios doutrinários as razões da derrota. É nesse contexto que se desabrocham as afinidades benjaminianas de Daniel Bensaïd com Michael Löwy: ambos encontraram em Benjamin uma bússola intelectual e política para se guiar em meio às mudanças com as quais se deparavam, dentre as quais o declínio da figura do intelectual engajado, denunciada como cúmplice benelovente dos totalitarismos de todo tipo.
Por isso mesmo, como a leitora e o leitor poderão observar, Michael Löwy será presença constante neste livro. Em primeiro lugar porque a tese de doutorado, defendida em 2016, também abarcava a trajetória de Michael Löwy, autor sobre o qual já trabalhara no mestrado. Mas, mais fundamentalmente, porque a comparação com Michael Löwy nos permite apreender de modo mais circunstanciado a dinâmica e as mudanças do itinerário intelectual de Daniel Bensaïd, como se o percurso de um espelhasse o outro, num contraste em que ambos se entrelaçam como “vasos comunicantes” à procura da renovação de uma tradição que se recusam a abandonar, e tampouco a simplesmente celebrar.
Intelectual em combate numa época que lhe é desfavorável, Daniel Bensaïd estava “à esquerda do possível” – designação por ele utilizada a propósito de Benjamin – não porque se contentava em se situar à esquerda de um possível já pré-definido de antemão, mas sim porque estabelecera como uma das tarefas do intelectual engajado a de contribuir para alargar pela esquerda aquilo que é definido como espaço do possível. Ao “senso do real”, absolutizado pelos positivistas, Daniel Bensaïd acrescenta o “senso do possível”, segundo os termos do escritor austríaco Robert Musil, por ele admirado e citado. Tal qual o trapeiro baudelairiano, sob as vertigens da multidão, Daniel Bensaïd reconhece o mal-estar coletivo reinante, mas, ao mesmo tempo, pressente nessa atmosfera indeterminada a possibilidade de uma nova invenção democrático-radical e, por isso mesmo, anticapitalista.
À luz dos objetivos gerais acima referidos, o livro está dividido em três partes, abarcando, respectivamente, o antes, o durante e o depois da incorporação ativa, por Daniel Bensaïd, da reflexão benjaminiana sobre a história, em meio às transformações políticas e culturais do período. Assim, se na primeira parte é abordado o percurso intelectual e político de Bensaïd nas décadas de 1960, de 1970 e meados da de 1980, na segunda, o objetivo é compreender os diversos condicionantes que, juntos, explicam a inflexão benjaminiana pela qual passou o filósofo francês a partir do final dos anos 1980.
Para isso, além da análise dos textos (de Bensaïd) e dos contextos (da época), o livro explora alguns aspectos da trajetória intelectual, assim como da recepção da obra de Walter Benjamin ao longo da segunda metade do século XX, a fim de localizar aí a especifidade da interpretação bensaïdiana.
Finalmente, na terceira e última parte do livro, são analisados os desdobramentos dessa inflexão no itinerário de Daniel Bensaïd das décadas de 1990 e 2000, até o seu falecimento relativamente precoce, em 2010, com 63 anos. Especial destaque é conferido à maneira como, nesse cenário, Daniel Bensaïd se utilizou da referência benjaminiana como baliza para um reposicionamento intelectual visto como necessário em um contexto marcado pelo estreitamento do horizonte de expectativas.
Reposicionamento que ganha novas formas e dimensões a partir do final de 1995, com o movimento social vitorioso contra a reforma da seguridade social proposta pelo governo liberal-conservador liderado por Jacques Chirac (presidente) e Alain Juppé (primeiro-ministro). A partir de então, Daniel Bensaïd abriu novas frentes de intervenção, estabelecendo diálogo não apenas com diversas vertentes do marxismo, mas também com a filosofia política e com a sociologia crítica. No centro de suas preocupações estava a necessidade de uma reativação sob novas bases da política, da “política profana dos oprimidos”, como ele dirá, em chave benjaminiana, em contraposição tanto ao totalitarismo ecomômico quanto aos recuos identitários e/ou religiosos.
Fábio Mascaro Querido é professor no Departamento de Sociologia da Unicamp.
Referência
Fábio Mascaro Querido. Daniel Bensaïd: intelectual em combate. Belo Horizonte, Fino Traço, 2022, 272 págs.
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