Democracia segundo Jair Bolsonaro

Imagem: Ramy Kabalan
image_pdf

Por FELIPE CALABREZ*

Como um sujeito que não tolera os requisitos mínimos de uma democracia do século XIX afirma defender a democracia?

1.

Poucos dias após o anúncio da vitória eleitoral de Donald Trump nos EUA, o ex-presidente brasileiro de credenciais semelhantes assina um artigo de jornal em que pede para que aceitemos a democracia. Jair Bolsonaro argumenta haver em curso uma onda conservadora que, a despeito da censura dos meios de comunicação e aparatos de justiça, seguirá imbatível porque é fruto da decisão soberana do povo. Estaríamos, portanto, diante da pura expressão da democracia.

Ora, mas como é possível que palavras em favor da democracia partam de um político que sabidamente busca miná-la, seja negando a credibilidade do processo eleitoral, atacando as instituições da justiça e a imprensa livre, apoiando ações que recusam aceitar o resultado do pleito, ou ainda tentando mobilizar as forças armadas para um golpe militar ao estilo dos anos 1960, tempos de que sente saudades?

Podemos começar concordando com o ex-presidente. De fato, parece estar em curso uma onda conservadora no Brasil e um fortalecimento de identidades políticas de direita. Valores morais conservadores são legítimos e é desejável que encontrem canais político-institucionais de expressão. Porém a concordância acaba aqui.

Em uma democracia, ser conservador de direita é legítimo, assim como ser progressista. Como as sociedades são plurais, essas visões de mundo são politicamente disputadas pelos partidos políticos, que competem eleitoralmente entre si e propõem políticas públicas mais alinhadas às suas visões. No entanto, como apontado pelo filósofo político liberal John Stuart Mill, já no século XIX, as liberdades do indivíduo podem ir até onde começam as do outro. Não se pode esmagar a liberdade de um indivíduo em nome da minha liberdade, assim como a vontade das maiorias expressa nas urnas não pode oprimir as liberdades das minorias.

Durante o século XX a ciência política produziu diversos conceitos de democracia, e todas as experiências políticas que entendemos por democráticas tentaram de alguma maneira garantir a coexistência entre vontades majoritárias expressas nas urnas e garantia dos direitos individuais e de minorias, se quisermos, soberania popular e direitos humanos, que incluem também a liberdade de imprensa.

Sabemos que Jair Bolsonaro representa o oposto de tudo isso. Contesta as urnas e apoia manifestações violentas contra o resultado eleitoral, afirma que direitos humanos são coisa “da esquerda” enquanto apoia explicitamente torturadores, e ataca meios de comunicação que não lhe sejam subservientes.

2.

Então recoloco a questão: Como um sujeito que não tolera os requisitos mínimos de uma democracia do século XIX afirma defender a democracia?

Jair Bolsonaro faz uso de um clássico discurso e performance populistas, que consistem basicamente em construir discursivamente uma categoria de “povo”, que nada tem nada a ver com classes populares ou qualquer categoria sociológica, para contrapô-lo ao que seriam os interesses ilegítimos de “poderosos”, que na sua gramática seriam os meios de comunicação, as próprias instituições que garantem o estado democrático de direito, além de artistas, intelectuais, um imaginário “comunismo” e todos que representam valores plurais ou progressistas. Tudo recheado com uma boa dose de grosseria e falta de boas maneiras, como seu correspondente estadunidense.

Ocorre que o “povo” de seu discurso é uma categoria profundamente excludente. E em contraste com Donald Trump e os populismos de extrema direita europeus, de caráter xenófobo, seus inimigos são internos. Porém, invertendo absolutamente o sentido de conceitos como democracia, liberdade e autoritarismo, Jair Bolsonaro se vê capaz de falar em vontade do povo e soberania popular.

Mas o populismo é o menor de seus defeitos. Ele funciona apenas como uma espécie de motor de mobilização de insatisfações difusas, muitas das quais são legitimas, mas às quais se somam os afetos políticos mais vis, o ódio e a intolerância política típicos do fascismo. Assim, populismo seria um meio; seu projeto político é a morte das instituições democráticas e das liberdades individuais e de grupos que não se adequam à sua visão autoritária, intolerante, violenta, misógina e pretensamente religiosa de sociedade. É a morte da democracia.

Graças a uma sociedade civil pujante e plural, ao sistema de freios e contrapesos e à falta de apoio externo, conseguimos evitar o pior em 2022. Mas as demandas conservadoras e de direita seguem existindo. Para que sigamos em uma democracia é preciso separar intolerância autoritária, violência política e golpismo, representados por Jair Bolsonaro, do conservadorismo que ele afirma representar. E que este último encontre líderes capazes de jogar o jogo democrático.

*Felipe Calabrez é pesquisador de pós-doutorado no Centre de Recherches politiques de Sciences Po-Paris (Cevipof). Autor do livro Introdução à economia política: o percurso histórico de uma ciência social (Editora InterSaberes).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES