Economia política da arte moderna – parte 2

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Por LUIZ RENATO MARTINS*

Verbetes e notas para um roteiro de lutas e debates

No fim das contas, foi através de uma série de críticas símiles[i] que a arte moderna se instituiu como perspectiva negativa e modo político ativo: críticas, por exemplo, primeiro, de Daumier (1808-1879) à entronização da burguesia na monarquia de Luís-Felipe (1773-1850); depois, de Courbet (1819-77) e Manet ao II Império e à modernização de Paris pelo Barão Haussmann (1809-1891), e a seguir, à república conservadora erguida sobre o massacre da Comuna; de Cézanne e Van Gogh à devoração do trabalho pela linha de montagem, nas vísceras da dita belle époque; do fovismo e do cubismo à corrida intra-imperialista e às disputas chauvinistas, na raiz da carnificina de 1914-18; de Picasso e Miró (1893-1983) à irrupção fascista na Espanha e alhures; da pintura nova-iorquina ao complexo militar-industrial, ao totalitarismo macarthista e à vida administrada… Foi nesses termos que se desenvolveu a arte moderna, em linha geral como expressão, mesmo contraditória, de valores anticapitalistas.

Eis, em síntese, o sentido do percurso desta investigação. O conjunto das correntes artísticas, assentadas nos valores da maestria artesanal e herdeiras da radicalização de tais setores desde a Revolução Francesa, tiveram suas bases históricas tornadas anacrônicas pela nova divisão social do trabalho, que se impôs com força esmagadora. Essas correntes desenvolveram consecutivamente ante a nova ordem social uma disposição antitética e combativa, ainda quando fruto de uma totalização histórica incipiente ou meramente intuída, mas que, por conta das perdas inflingidas pela expansão capitalista, resultou num discurso estético agressivo e provocativo – e nesse sentido histórica e socialmente fundado –, ainda quando à primeira vista gratuito e fragmentado.

Solipsismo, percepção, produtividade e perspectivas de classe

De outro lado, é preciso também considerar os estudos da fisiologia humana desenvolvidos entre 1810 e 1840, que dissolveram pela crítica o vínculo do sistema ocular ante o todo do sujeito do conhecimento, erradicando, no processo, todo parâmetro racional de verossimilhança.[ii]

A concepção clássica da visualidade (que supunha um feixe visual monocular segundo o modelo da pirâmide) foi submetida à crítica científica, que demonstrou a inatualidade não apenas daquele diagrama fundamental, mas também dos parâmetros e termos da visão como apreensão neutra de objetos naturais preexistentes. No contrapé das crenças mais arraigadas, a crítica científica refundou a visualidade em termos fisiológicos, a partir da espontaneidade individual, ou seja, segundo uma concepção ativa da sensibilidade como instância espontaneamente produtiva.

Em resumo, a redefinição biopsíquica da visão, alocada na concepção do corpo como foco espontâneo de sensações, convergiu com a crítica científica do esquema monocular da visão e com a crítica filosófica da noção de passividade sensorial. Combinou-se também à liquidação da inter-relação paradigmática entre arte e natureza, antigo fundamento estético da tradição artística.

No curso de tal processo, a reestruturação da concepção do olhar abandonou a dualidade dada pela espontaneidade da razão e a passividade senciente (binômio implicado, por exemplo, na concepção kantiana do sujeito transcendental). Nesse sentido, os advogados do “opticalismo” ou da arte “opticalista” (impressionistas, simbolistas e outros) celebraram a descoberta da espontaneidade do núcleo sensório individual e de sua autonomia correlativa ante os objetos da visão.

Notemos, contudo, que tal pretensão (a da autonomia perceptiva) trazia indisfarçável marca de classe. Com efeito, na escala geral e à exceção das classes dominantes, a visão jazia então ao sabor de processos heterônomos, no bojo de um todo corpóreo cujas funções sensórias e motoras se encontravam em pleno processo de reorganização compulsória. Desse modo, o corpo do trabalhador industrial, por exemplo, achava-se, como outros, em menor ou igual grau, em meio a mutações metabólicas incessantes, suscitadas pelo ritmo da linha de montagem, da produção em série, dos novos meios de transporte, sem esquecer da parafernália da informação e diversão em grande escala.

Em resumo, o antigo todo corpóreo, outrora dito à imagem e semelhança de totalidade maior, achava-se submetido, no caso da ampla maioria, aos novos processos de trabalho e de adestramento perceptivo. Não apenas era confiscado e alienado de sua consciência, mas – em função dos desmembramentos técnicos e das dissociações decorrentes da linha de montagem – era igualmente alvo de choques psico-fisiológicos variados, com não poucas consequências metabólicas.

Fim da aura e produção serial

As reflexões de Walter Benjamin acerca do fim da “aura” e da nova reprodutibilidade técnica da arte, em seus diversos escritos redigidos entre 1935 e 1938, antecipam duas ordens de mudanças que decorrem do fim da singularidade do objeto único: não apenas a liquidação do senso de valor inerente à fatura artesanal da obra, mas também a necessidade crítica de deslocar a atenção do artefato artístico para o teor serial dos processos artísticos modernos.

A condição serial básica da arte moderna, partilhada com outros objetos “fabricados”, revelou o anacronismo das práticas críticas inerentes à pesquisa formalista do valor único ou da singularidade. Ademais, a condição serial também converteu tais práticas em meras técnicas de certificação e reprodução do valor.

Não é assim fortuito que a doutrina da “pura visibilidade” tenha nascido do empenho reflexivo de um colecionador (Fiedler) e que ela tenha contado entre seus representantes com um agente de galerias como Meier-Graefe, ao lado de outras figuras proeminentes do mercado de arte.

Processos da arte versus anacronismos críticos

Desde o momento em que se têm antes processos de trabalho do que obras acabadas, tais condições requerem práticas e disposições investigativas que priorizem a análise dos procedimentos produtivos, à contramão do que faz o regime analítico formalista. O formalismo hipostasia e isola obras acabadas e procedimentos autorais como formas ou valores em si, supostamente dotados de leis internas e imunes a fatores “externos” (modo de circulação, forças extraestéticas julgadas “impuras” etc.).

Fabricação

Desde o impressionismo, para muitos artistas, a questão serial se punha empiricamente nas próprias práticas de trabalho. Do ponto de vista da crítica e da historiografia, por seu turno, a evidência da nova condição produtiva só ficou plenamente demonstrada graças à investigação rigorosa e pormenorizada realizada por Pepe Karmel,[iii] acerca do novo modo de trabalho praticado nos primeiros tempos do cubismo (1906-1913) por Picasso, a partir do modo de permutação incessante dos desenhos entre um trabalho e outro. Neste artista, logo eleito como paradigmático, a utilização deliberada e corrente de permutações entre vários trabalhos, em curso simultâneo de realização, tornou, de uma vez por todas, a análise crítica feita peça a peça uma prática anacrônica.

Assim, o desvendamento por Karmel da invenção de Picasso – situada um grau adiante em relação às pinceladas modulares e quase seriais de Cézanne – pôs às claras uma verdadeira guinada copernicana na produção plástica: a dialética crítica da pintura, doravante conduzida para além do artesanato e confrontada à dinâmica do trabalho industrial, parcelado e serializado.

É certo que muitas vezes a série processual não era publicamente declarada enquanto tal, por razões várias – com o marchand ou mesmo o pintor vindo a apresentar cada item como peça singular, sem expor nem revelar o seu teor serial, de produção ou fabricação. Entretanto, mesmo em tal caso, a verdade da prática produtiva foi aceita intramuros – ainda que como verdade reservada a poucos, antes do reconhecimento público de sua nova condição. Ocorreu assim de o próprio artista, mesmo quando dispunha ou reservava variações ou formas preliminares (como se deu no caso de Monet), não considerar que esse modo de trabalho, que, de fato operava serialmente, tivesse maiores consequências e implicações.

Era então a ideologia das estruturas pictóricas orgânicas e das obras únicas que predominava. Assim, foi preciso liquidar ou “fazer o luto” (no sentido psicanalítico) do desaparecimento da “aura” e da concepção artesanal da arte, para que se admitisse que desenho, pintura e escultura – as artes em geral – podiam aparecer como matéria não de criação ou inspiração, mas de fabricação. Foi o cubismo que deu tal passo (como demonstrou a investigação de Karmel), para, em seguida, se pôr a ironizar programaticamente o caráter excepcional do ofício e da obra.

Consideremos, não obstante, que o assim chamado modo inacabado e o modelado sumário acometeram a arte moderna desde o início do realismo francês (vide, por exemplo, Manet e Cézanne, tão criticados à época pelo estado incipiente ou de provisoriedade de suas obras, ou o caso anterior de Daumier que sequer expunha suas pinturas e terracotas, tendo-as por meros esboços).

Finalmente, todas essas técnicas e práticas artísticas constituíram o sintoma inicial da industrialização (introduzida tardiamente na França só após o massacre de junho de 1848). A partir daí, cada obra moderna, em virtude da condição efêmera que lhe era inerente, cessou de se postular como única, para se pôr como mero exemplo ou alternativa possível entre outras.

Desde então, enquanto sinal de um modo produtivo, a obra moderna passou a aparecer como mero flagrante ou como momento processual de uma “obra em progresso (work in progress)”, segundo a designação funcional de 1924, finalmente adotada em 1939 como expressão de condição ou quase título, por James Joyce (1882-1941). Em resumo, a questão de saber, se o caráter serial do processo era proclamado abertamente, como no caso das notas complementares de Marcel Duchamp (1887-1968) – ou se era ou não pudicamente escamoteado por mestres à antiga (Monet) –, é uma questão cujo teor deriva principalmente da estratégia autoral adotada.

De todo modo, dos seus primórdios até o seu epílogo emblemático (ocorrido com o movimento pictórico nova-iorquino), as obras mais decisivas da arte moderna já vinham abertamente postas como transientes. Tal condição as constituía estruturalmente como formas provisórias e estases momentâneas de um processo cuja originalidade e radicalismo eram inerentes à concepção do modo produtivo. Na arte moderna norte-americana, foi exemplar nesse sentido a tirada irônica de Mark Rothko (1903-1970), segundo a qual ele podia “encomendar suas telas pelo telefone” aos seus assistentes.[iv] Não por acaso ela foi lançada em direção ao crítico Clement Greenberg – exemplo paradigmático, no tardio mercado de arte moderna nova-iorquino, de agente responsável pela atribuição do valor-fetiche de unicidade a certas telas.

Concluamos: de télos ou finalidade estética, a obra moderna tornou-se documento ou registro efêmero de um determinado modo produtivo. Assim, a obra moderna veio a reestruturar-se cientemente em nome de uma nova ordem para cujo desenvolvimento fez-se supérfluo o virtuosismo artesanal. (Notemos, porém, que tal “virtuosismo” subsiste, e robustamente, em nossos dias, enquanto fetiche, objeto de culto e ideologia, no plano nos dispositivos de projeção e das instalações ditas imersivas, destinadas ao grande público, em torno de obras de Van Gogh, Picasso, etc. Mas aí se trata de outra discussão).

Guerra civil, trabalhos de sapa e montagem

Para o resgate do sentido e da significação histórica de obras e questões decisivas da arte moderna, é preciso não apenas reconstruir o contexto original de cada questão, obra ou problema, mas também armar quanto às respectivas “fortunas críticas” um confronto ponto a ponto. Para tanto, é preciso recorrer à história materialista que efetua, uma após a outra, a sapa e a arqueologia do campo conflagrado, no curso da longa guerra civil da crítica envolvendo a arte moderna.

De fato, a inconsistência das interpretações correntes, em geral formalistas, avulta no embate direto com o objeto, à medida em que este ganha inteligibilidade em seus traços concretos e decisivos na contramão dos anacronismos e pontos cegos das narrativas aceitas, acerca de cada autor fetiche. Nesse sentido, cada um dos minúsculos elementos críticos, de um ou outro processo, pode se converter no “cristal do acontecimento total (Totalgeschehen)”, para retomar uma formulação de Walter Benjamin que observou nesse sentido: “Um problema central do materialismo histórico a ser finalmente considerado: será que a compreensão marxista da história tem que ser necessariamente adquirida ao preço da visibilidade (Anschaulichkeit) da história? Ou: de que maneira seria possível conciliar um incremento da visibilidade com a realização do método marxista? A primeira etapa desse caminho será aplicar à história o princípio da montagem. Isto é, erguer as grandes construções a partir de elementos minúsculos, recortados com clareza e precisão. E, mesmo, descobrir na análise do pequeno momento individual o cristal do acontecimento total. Portanto, romper com o naturalismo histórico vulgar. Apreender a construção da história como tal. Na estrutura do comentário. (Resíduos da história, N 2, 6”.[v]

Desafios do neomodernismo tardio

A desmontagem da argumentação formalista exige igualmente o trato específico da questão da chamada Escola de Nova York – dita também do expressionismo abstrato (que, no entanto, nada tinha de abstrato) ou ainda, por outros, “action painting”, literalmente pintura de ação (por sua vez, designação alternativa proposta pelo crítico Harold Rosenberg, porém com o inconveniente de eclipsar ou superpor a perspectiva subjetiva perante as questões do modo pictórico e da construção objetiva dos resultados, levando, logo, cedo ou tarde, a que se os ignore).

Questões de denominação à parte, o enfrentamento da argumentação formalista passa necessariamente pelo exame da nova ideia de arte implicada nos trabalhos de Jackson Pollock (1912-1956), que constituíram feito crítico inédito e maior – para o qual contribuíram decerto os encontros e diálogos do pintor com Duchamp e Mondrian [1872-1944], ambos conselheiros atuantes e responsáveis pela contratação de Jackson Pollock pela galeria de arte de Peggy Guggenheim (1898-1979) (Não caem por isso os méritos próprios aos trabalhos de Jackson Pollock. Ao contrário, a causa crítica e a reflexividade dialógica inerentes ficam mais nítidas, sem as marcas de intempestividade e de irreflexão a eles atribuídas a pretexto de “pintura de ação”).

Apresentado como corolário da arte moderna e exaltado como emblema da excepcionalidade e legitimidade da presença norte-americana no centro da cultura moderna avançada, o movimento nova-iorquino foi posto pela crítica de Greenberg como descendente direto de correntes paradigmáticas da arte moderna francesa (já integradas, nessa altura, aos acervos dos museus norte-americanos): o impressionismo, o cubismo e a colagem, certos aspectos da cultura do surrealismo etc. Simultaneamente, o movimento foi dissociado nessa manobra do seu contexto e entrechoques históricos reais (choques de classe e fatos congêneres), de modo a conjugá-lo e explicá-lo segundo pseudoatavismos (o caráter empreendedor, o individualismo de plantão etc).

A despeito dessas interpretações culturalistas, permeadas de nacionalismo e calibradas (como chamarizes) para o comércio de luxo no neófito mercado de arte dos Estados Unidos – e para além ainda do debate acerca da circulação dessa arte, levantado por Serge Guilbaut –,[vi] restam não obstante questões históricas decisivas acerca da formação do movimento.

Tais questões concernem diretamente à constituição da forma específica de negatividade inerente ao curso relativo das formas pictóricas precedentes. À parte e além disso, isto é, antes e acima dos atavismos imaginários, das linhagens culturais de prestígio e das pressões da Guerra Fria (examinadas por Guilbaut), a constituição dialética e histórica do movimento pictórico repercutiu objetivamente várias fatores e influxos de grande escala, que eram extrínsecos à esfera artística e inerentes às pressões desencadeadas pela hipertrofia da economia circundante, levada (pelo esforço de guerra e as conquistas militares) a uma expansão sem precedentes.

Contra esse fundo histórico e vasto, ressalta a atenção crítica de Pollock, distinguida pelo seu discernimento da forma-contrato e do assalariamento como novos limiares de referência estética. Consciência de classe, pode-se dizer, contemporânea e inseparável do seu recrutamento como assalariado pela galeria de arte; e enriquecida pela atenção do artista para o novo modo de circulação de suas obras, concretamente dispostas ao lado de outras mercadorias (ler a esse respeito os artigos sobre Jackson Pollock nas revistas da época: Life, Vogue, Artnews, etc.).

Ademais, explorando e inquirindo tanto o canteiro quanto o modo de trabalho, distingue-se a medida precisa de Jackson Pollock (registrada pelas fotos de Hans Namuth [1915-1990]) na ação de pintar mediante drippings (cuja origem prende-se às mesmas circunstâncias).

Tais atos (praticados como se aparentemente instantâneos e improvisados) traziam, não obstante, uma reflexão a propósito da concepção de forma, indissociável de fatores quantitativos oriundos do âmago do boom econômico, caracterizado pela superprodução da economia norte-americana expandida à escala mundial.

Vale dizer, de fato, esse processo traduziu-se, dito resumidamente e em termos concretos, num novo modo pictórico implicando a acumulação de camadas sobrepostas (não apenas nos drippings de Jackson Pollock, mas igualmente nas práticas pictóricas de outros pintores do movimento). Mas também trouxe, em síntese e como a priori, a noção do excedente como forma, ou noutras palavras e para dizer por inteiro, do excedente convertido em lógica nova da forma, no processo de fabricação da pintura no bojo do regime de trabalho fordista-taylorista.

O novo modo foi engendrado igualmente mediante a dinâmica corporal interveniente como um todo, na produção como na recepção da pintura. Logo, pintura-operária, por um lado, quanto à escala corporal e quanto à ausência de maestria ou de virtuosismo pictórico. E também, por outro lado, obra (qualitativa) objetivamente reflexiva, da quantidade ou do excedente transformado em pintura nascida da oferta abundante de matérias, inclusive detritos, e então de algum modo em sincronia – dialética e objetiva – com o ritmo econômico expandido à hiperatividade.

Nesse sentido, e sem pretender em absoluto desacreditar o caráter estético e negativo das obras em questão ante o triunfo militar e imperialista, o movimento nova-iorquino constituiu o oposto simétrico, sob muitos aspectos, da lógica da penúria e da crise, tanto quanto do espanto individual e da impotência civil, ligados à iminência de guerra.

No caso, foram tal lógica e tais fatores que impregnaram a colagem cubista, conferindo a esta o tom genuinamente dramático – que tanto a distinguiu de derivados tardios e geralmente insípidos realizados com a mesma técnica. Nesse sentido, compare-se, por exemplo, as colagens cubistas com as assemblages, “combine paintings”, serigrafias etc., de Robert Rauschenberg (1925-2008). Estas últimas mostram-se vizinhas, a muitos títulos, da publicidade, das revistas ilustradas, das cenas de comércio e dos bazares de quinquilharias; isto é, de uma história rebaixada ou miniaturizada, sem escala ou termo de comparação com aquela totalizada, da qual floresce o augúrio trágico intrínseco às colagens cubistas pré-1914.

Constructo trágico-crítico: não uma capela, mas uma ágora

Ante o caráter do trabalho e o desfecho dramático da vida de Mark Rothko, a negatividade essencial da proposta – a um só tempo trágica e épica – de Baudelaire para a arte moderna[vii] apresenta, enquanto programa sistêmico, o que talvez seja sua última prova relevante de atualidade. (Em contrapartida, ao relegarem o projeto de transformação do mundo e da vida como instância estranha à pintura e às artes, os movimentos subsequentes, principalmente nos Estados Unidos (Pop-Art, Color field painting, etc.), originários seja das vertentes analítica, minimalista ou outras – em suma, da corrente dita, nos países anglófonos, do linguistic turn –, seja da efemeridade e trivialidade das sensações do consumo, ou das tendências doméstico-decorativas, vieram a se destituir, espontaneamente ou por iniciativa própria, de todo caráter trágico ou totalizante. E, portanto, pode-se dizer, renunciaram a todo elo com o núcleo histórico, épico e trágico, da arte moderna – originado e instituído, como tanto insistiu Baudelaire, a partir do processo republicano revolucionário na França).

Diversamente, ainda em ligação com o coração histórico e a aptidão totalizante inerentes à arte moderna, o movimento nova-iorquino – do qual a obra de Mark Rothko é indissociável – apareceu como caso de formação artístico-cultural tardia, talvez o derradeiro nas economias centrais, de uma arte nacional. Desse modo, sua dinâmica intensa, e às vezes aparentemente contraditória, na diversidade apresentada, não proveio de caminhos criativos atomizados ou individuais, mas, de fato, de um processo coletivo de formação. Nesse sentido, o movimento respondeu sintética e tardiamente, no seu próprio contexto e com meios próprios, ao desafio que lhe foi concretamente posto nas circunstâncias de ausência de tradição pictórica própria e definida. O que estava em jogo em tal desafio histórico?

Com efeito, formada de início, ainda nos anos 1930 – sob ideias e valores próprios ao éthos público do New Deal rooseveltiano, tanto quanto marcada histórica e culturalmente pelo exemplo consumado da épica da pintura mural ligada organicamente à revolução mexicana –, o objetivo estratégico dessa geração de pintores era o de conduzir a pintura norte-americana a conquistar sentido além do campo, já exangue, da dita (segundo o léxico construtivista-produtivista) “pintura (entelada e emoldurada) de cavalete”.

Em etapas anteriores de sua obra, o rigor histórico-filosófico bem como a orientação crítica materialista do trabalho de Mark Rothko o haviam impulsionado a revisitar algumas das questões centrais da tradição pictórica: a luminosidade, o tonalismo, a transparência, a contemplação, a unidade orgânica da obra etc.

Essas questões se conjugaram dialeticamente à exigência de verdade, segundo prisma ético materialista que se traduziu concretamente na busca, para a sua obra, de condições de circulação e exposição concordantes com aquelas verificadas no próprio ato de produção da pintura.

Simultaneamente, a crítica da “pintura de cavalete” levou Mark Rothko a postular uma certa refundação crítica e uma nova refuncionalização da pintura, como discurso (não abstrato, mas dotado de poder semântico e de totalização), para o qual a arquitetura e o teatro exerceram o papel de modelos dialógicos. Contrariamente ao que pretendeu a crítica formalista, o pintor sublinhou esse objetivo de vida e trabalho, de maneira recorrente em seus escritos e em muitas ocasiões.

Nesse sentido, o projeto de Houston, realizado principalmente devido às lutas intensas travadas por Mark Rothko, e ao seu comprometimento com uma filosofia materialista e trágica da arte, logo, como uma espécie de obra total e de objetivo existencial ímpar, também comportou e desenvolveu, a seu modo, o impulso coletivo original do movimento nova-iorquino.

Sua concretização singular, na contramão do projeto arquitetônico alegórico, místico e eclesiástico de Phillip Johnson (com quem o pintor entrou em conflito aberto e que antes da guerra foi um dos fundadores do partido nazista dos Estados Unidos), ofereceu a Mark Rothko a possibilidade concreta de realizar seus objetivos.

De fato, o projeto redefinido da Rothko Chapel (assim batizada após a morte do pintor), para a Menil Foundation (de Houston) – sob o patrocínio de um casal católico mas de espírito ecumênico e próximo da “teologia da libertação”–, outorgou ao pintor os meios e a ocasião de buscar obter uma síntese estética, ao modo de uma construção filosófica, entre pintura, arquitetura e teatro. Com isso, propiciou a ocasião para que Mark Rothko elegesse, como função principal de sua pintura, a transformação espacial da instalação numa ágora.

*Luiz Renato Martins é professor-orientador do programa de pós-graduação em Artes Visuais da ECA-USP. Autor, entre outros livros, de The Conspiracy of Modern Art (Chicago, Haymarket/ HMBS).

** Segunda parte do cap. 13, “Economia política da arte moderna I”, da versão original (em português) do livro La Conspiration de l’Art Moderne et Autres Essais, édition et introduction par François Albera, traduction par Baptiste Grasset, Paris, éditions Amsterdam (2024, prim. semestre, proc. FAPESP 18/ 26469-9). Agradeço o trabalho de revisão do original por Gustavo Motta.

Para ler a primeira parte dessa série clique em https://aterraeredonda.com.br/economia-politica-da-arte-moderna/

Notas


[i] Ver parte 1 deste texto, publicada no site A Terra É Redonda: https://aterraeredonda.com.br/economia-politica-da-arte-moderna/

[ii] Ver Jonathan CRARY, Techniques of the Observer/ On Vision and Modernity in the Nineteenth Century, Cambridge (MA), October Book/ MIT Press, 1998; [ed. br. : Técnicas do Observador/ Visão e Modernidade no Século XIX, Rio de Janeiro, 2012]. Ver também idem, “Modernizing Vision”, in Hal FOSTER (ed.), Vision and Visuality, Seattle, Dia Art Foundation/ Bay Press, 1988, pp. 29-49.

[iii] Ver Pepe KARMEL, Picasso’s Laboratory/ The Role of his Drawings in the Development of Cubism, 1910-14, a dissertation, requirement of the degree of Doctor of Philosophy, Institute of Fine Arts, New York University, New York, May 1993; posteriormente, publicado em livro: idem, Picasso and the Invention of Cubism, New Haven, Yale University Press, 2003.

[iv] “…Order his paintings made over the telephone”, teriam sido as palavras exatas de Rothko, relatadas por Harold Rosenberg (1906-78). Cf. H. ROSENBERG, “Rothko”, in idem, The De-definition of Art, Chicago and London, The University of Chicago Press, 1983, p. 107.

[v] Cf. Walter Benjamin, Passagens, [N2, 6], org. da ed. bras. Willi Bolle, a partir da ed. orig. por Rolf Tiedemann, trad. Cleonice P. B. Mourão, Belo Horizonte, Editora UFMG/ Imesp, 2006, p. 503. Benjamin 2006, [N2, 6], p. 503; [trad. fr.: «Un problème central du matérialisme historique qui devrait enfin être aperçu: la compréhension marxiste de l’histoire doit-elle être nécessairement acquise au détriment de la visibilité de l’histoire elle-même? Ou encore: par quelle voie est-il possible d’associer une visibilité (Anschaulichkeit) accrue avec l’application de la méthode marxiste? La première étape sur cette voie consistera à reprendre dans l’histoire le principe du montage. C’est-à-dire à édifier les grandes constructions à partir de très petits éléments confectionnés avec précision et netteté. Elle consistera même à découvrir dans l’analyse du petit moment singulier le cristal de l’événement total. Donc à rompre avec le naturalisme vulgaire en histoire. A saisir en tant que telle la construction de l’histoire. Dans la structure du commentaire. *Rebut de l’histoire* [N 2, 6] », Paris, Capitale du XIX Siècle/ Le Livre des Passages, traduit de l’allemand par Jean Lacoste d’après l’édition originale établie par Rolf Tiedemann, Paris, Cerf, 1993, p. 477].

[vi] Serge GUILBAUT, How New York Stole the Idea of Modern Art/ Abstract Expressionism, Freedom, and the Cold War, trans. by Arthur Goldhammer, The University of Chicago Press, 1983.

[vii] Ver L.R. MARTINS, “A conspiração da arte moderna” in Revoluções: Poesia do Inacabado 1789 – 1848, vol. 1, pref. François Albera, São Paulo, Ideias Baratas/ Sundermann, 2014, pp. 27-44.


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