Por GERSON ALMEIDA*
O verdadeiro conflito não é sobre déficits comerciais ou vinganças políticas, mas sobre quem ditará as regras do século XXI: o unilateralismo americano ou o multilateralismo que o Brasil representa nos BRICS
A conversa telefônica entre Donald Trump e Lula é o movimento mais recente de uma disputa que está longe de ser concluída. Como líder na nação dominante econômica, militar e culturalmente, mesmo que em declínio, cabe à Trump a iniciativa das ações. E ele tem costuma usar esta prerrogativa de forma incisiva.
Desde os primeiros dias do seu governo, ampliou de forma abusiva o uso de meios econômicos para atingir objetivos políticos e decidiu aumentar tarifas, fazer embargos, sancionar países, controlar a exportação de alguns produtos para países competidores (como impressoras de chips para a China), definir subsídios anticompetitivos, etc.
Quase ninguém escapou, sejam os tradicionais alvos, como Rússia, China, Irã, Venezuela; ou amigos de longa data, como os países da Europa, Canadá, Índia e Japão. Isso mostra que está em curso um movimento geopolítico em escala global que, pode utilizar a sedução como meio de obter seus objetivos, mas deixa sempre o porte à mostra e pronto para ser utilizado. Como movimento geopolítico global, por si só, as razões locais nunca são suficientes para explicá-lo de forma adequada.
A direita brasileira reivindica o mérito dos brasileiros terem sido duramente atingidos pelas tarifas de 50% sobre os produtos exportados aos EUA, virando criadouro de um bizarro personagem: o traidor orgulhoso. Foram, no entanto, preciso poucos dias para ficar claro que a “questão Bolsonaro” está longe de ser a motivação questão central das ações americanas contra o Brasil, tanto quanto o argumento do déficit comercial, que não resistiu 24 horas.
A questão central destas ações já havia sido parcialmente captada na foto da posse de Donald Trump, na qual os barões da tecnologia aparecem perfilados e sorridentes ao seu lado: Mark Zuckerberg (Facebook, Instagram, WhatsApp, Threads, Messenger), Jeff Bezos (Amazon), Elon Musk (Tesla, Space X, X, xAI) Sundar Pichai (Google), Tim Cook (Apple), Sam Altman (Open AI) e tantos outros executivos do setor que estavam presentes à cerimônia.
O valor de mercado das chamadas “sete magníficas”, que inclui a Nvidia e a Microsoft, foi estimado em US$ 18,25 trilhões em junho de 2025. Para termos uma ideia de grandeza, o PIB brasileiro está entre os dez maiores do mundo e alcança US$ 2,13 trilhões.
Foi uma mensagem clara de que a tradicional aliança entre os interesses econômicos, políticos e militares (as Big Techs colaboram ativamente no esforço de guerra na Ucrânia) americanos se tornará ainda mais solidez, na tentativa de recuperar a perdida posição de líder unipolar. Mark Zuckerberg, por exemplo, logo depois da posse anunciou o fim da política de checagem de fatos em todas as empresas da Meta, um claro alinhamento com Donald Trump, que inúmeras vezes ameaçou a empresa.
2.
Há duas questões chave que verdadeiramente movem os atores centrais desse embate geopolítico, entre o Brasil e os EUA: o papel relevante do Brasil nos BRICS e a regulação das Big Techs. Nos Brics, o Brasil está construindo relações cada vez mais estratégicas com a China, a Rússia, a Índia e tantas outras nações de relevância para o comércio mundial, que possuem grande população e reservas minerais estratégicas.
Essa rede de interações ampliou a interdependência e o crescimento do comércio em moedas que não o dólar. Entre 2005 e 2021, as exportações totais dos membros dos Brics saltou de US$ 1,7 trilhão, para US$ 5,7 trilhões: um crescimento de 229%. O comércio do Brasil com os países dos Brics já corresponde à 35% do total e continua em expansão. Foram essas relações e a insistente ação do governo em abrir novos mercados, que permitiu minimizar as consequências nefastas do tarifaço no Brasil.
Além de diminuir o ímpeto brasileiro na relação com os Brics, Donald Trump quer impedir a regulação das Big Techs no Brasil. A regulação das plataformas digitais está sendo discutida desde 2002 no Congresso Nacional e foi defendida por Lula na campanha de 2022. Simultaneamente ao projeto enviado pelo governo sobre o tema (2023), tramita o projeto das “Fake News”, cujas correlações são evidentes.
O hoje secretário de Estado, Marco Rúbio, já havia criticado a suspensão do twitter (X) no Brasil, determinada pelo juiz Alexandre de Moraes, do STF. Na época, ele afirmou que “A proibição nacional do X no Brasil levanta sérias preocupações sobre liberdade de expressão e excesso de poder judicial”, em postagem que continha a foto de Alexandre de Moraes ao fundo.
A política do porrete foi utilizada, mas a reação do governo abrindo novos mercados e a compreensão da sociedade de que isso foi um injustificado ataque contra a soberania nacional, mostrou que a política do porrete não foi suficiente para colocar o governo Lula de joelhos. E, ainda, gerou uma solidariedade na sociedade favorável à defesa da soberania e contrária aos ataques internos e externos, o que fez Donald Trump realinhar a sua estratégia e passou a investir na química da sedução. O que não significa deixar o porrete de lado, vide a manutenção das tarifas e a frota deslocada para águas muito próximas.
3.
Esse é o contexto que justifica os movimentos pendulares, de força e negociação, típicos das disputas geopolíticas entre países relevantes. O governo Lula foi assertivo na resposta interna às agressões, ao defender a soberania nacional e rapidamente abrir novos mercados e não ceder às pressões internas dos quintas-colunas, como o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas.
Ele, em evento promovido pela corretora Warren Investimentos, ostentando um boné pedindo para que se “Faça a América Grande de Novo”, sugeriu que “se Donald Trump está querendo colecionar vitórias. Então, por que não entregar algumas vitórias?”. Qual frase melhor diria um traidor orgulhoso?
Essa disputa, no entanto, está longe de seu desfecho. Mas é interessante notar que o ambiente interno e externo parece estar crescentemente se modificando em favor da postura de defesa da soberania e do interesse nacional que o governo Lula firmemente adotou, sem deixar de negociar o que pode ser negociado.
Há muito pela frente, mas ao não fazer a circunflexão ao império e impor ao governo de Donald Trump a necessidade de negociar, o governo Lula colocou a direita e seus satélites no seu decido lugar: a de traidores, mesmo que orgulhosos disto.
*Gerson Almeida, sociólogo, ex-vereador e ex-secretário do meio-ambiente de Porto Alegre, foi secretário nacional de articulação social no governo Lula 2.
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